“O que trazemos conosco do passado?”, pergunta a irmã da personagem de “Anna e os insetos”, um dos nove contos de “Gótico nordestino”. O autor, Cristhiano Aguiar, buscou respostas nos livros que leu e nas histórias que escutou quando morava na cidade natal, Campina Grande, no agreste paraibano. “Em Campina, eu lia um cordel com uma mão e um romance de ficção científica com a outra”, conta em entrevista ao Estado de Minas, resumindo a formação eclética, que inclui os clássicos da literatura fantástica, cinema, séries de tevê, videogames, quadrinhos. Veio, por sinal, de uma HQ, a saga “American Gothic” (de Alan Moore), a inspiração para o título do livro.
Sempre marcadas por imagens fortes, as histórias de Cristhiano Aguiar misturam fantasmas, zumbis e vampiros com cangaceiros, pesadelos urbanos e com os horrores da realidade brasileira – de um passado não muito distante e dos dias de hoje. “São contos ambientados em diferentes épocas da nossa história, passando pelos tempos atuais e chegando a um futuro próximo: uma história sombria do Brasil e que explora, ao mesmo tempo, as dimensões obscuras de cada um de nós”, define o autor, formado em letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor dos livros “Narrativas e espaços ficcionais: Uma introdução” (Mackenzie, 2017) e “Na outra margem, o Leviatã” (Lote 42, 2018).
Uma das referências de “Gótico nordestino” é a antologia “Assombrações do Recife Velho”, de Gilberto Freyre (1900-1987). “Esse livro me deu uma chave importante ao me mostrar as raízes sobrenaturais do imaginário social nordestino”, conta, referindo-se às histórias reunidas nos anos 1950 pelo sociólogo pernambucano. “Não há sociedade ou cultura humana da qual esteja ausente a preocupação dos vivos com os mortos”, lembrou Freyre na primeira edição.
Para a capa de “Gótico nordestino”, o designer Kiko Farkas escolheu reproduzir “A luta dos anjos”, de Gilvan Samico (1928-2013), expoente maior da xilogravura e definido por Ronaldo Correia de Brito (na crônica “Conversa com o artista que vai morrer”) como autor de obras com “muito escondido no mínimo”. “Foi uma total surpresa para mim”, reconhece Aguiar.
“A obra de Samico é um cruzamento do mítico, do popular, do narrativo, do sombrio, da espiritualidade, da metamorfose”, acredita o escritor. “E a imagem escolhida para a capa traduz com perfeição um dos temas do meu livro, que é uma reflexão sobre o mal, ou melhor, sobre a dualidade, dentro da alma humana, do mal e do bem, da paz e da violência”, acrescenta. A seguir, mais trechos da entrevista com Cristhiano Aguiar sobre a origem de suas histórias e influências, entre elas clássicos de José Lins do Rego, como “Menino do engenho”, e produções audiovisuais como “Arquivo X”, “a maior de todas as séries trevosas”:
“A obra de Samico é um cruzamento do mítico, do popular, do narrativo, do sombrio, da espiritualidade, da metamorfose”, acredita o escritor. “E a imagem escolhida para a capa traduz com perfeição um dos temas do meu livro, que é uma reflexão sobre o mal, ou melhor, sobre a dualidade, dentro da alma humana, do mal e do bem, da paz e da violência”, acrescenta. A seguir, mais trechos da entrevista com Cristhiano Aguiar sobre a origem de suas histórias e influências, entre elas clássicos de José Lins do Rego, como “Menino do engenho”, e produções audiovisuais como “Arquivo X”, “a maior de todas as séries trevosas”:
Como surgiram as histórias reunidas em “Gótico nordestino”?
“Gótico nordestino” começou ser escrito em 2018, mas principalmente ao longo de 2020 e 2021. É um livro nascido de um momento de crise e da minha tentativa de responder, metaforicamente, ao contexto social no qual vivemos. Por isso, tive que abandonar parcialmente o realismo intimista do meu livro anterior, porque senti que tempos de delírio e violência precisavam ser interpretados por mim através de uma imaginação insólita, que no meu caso é o diálogo com o gótico, o horror, a ficção científica, a literatura fantástica do século 19... Eu queria também voltar para “casa”, dar conta de recriar um Nordeste a partir do qual eu proponho ao leitor dos meus contos um passeio pelo darkside da nossa vida enquanto brasileiros e latino-americanos.
Onde é possível encontrar o gótico, palavra geralmente associada às sombras e à noite, em uma região predominantemente ensolarada como o Nordeste?
Há um livro maravilhoso escrito por Gilberto Freyre, “Assombrações do Recife Velho”, que me deu, anos atrás, uma chave importante, porque me mostrou as raízes sobrenaturais do imaginário social nordestino. Freyre me ajudou a abraçar isso, entende? Veja bem: o Brasil é permeado por mitos e monstros imaginários, de norte a sul, e o Nordeste não seria diferente. O gótico se relaciona com o contraste entre luz e sombras. É uma estética das ruínas. Do desolado. Da teatralidade trágica. Dos tabus. E, principalmente, de um passado, de um trauma, recalcado e que ameaça vir à tona. Para encontrar o gótico do Nordeste, também foi importante a minha releitura recente dos grandes narradores de 1930: José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado. Há ecos góticos em um livro como “Fogo morto”, por exemplo, nos contos de “Insônia”, ou mesmo em “O quinze”. Já “Quincas Berro D’Água”, por exemplo, embora não tenha influências góticas, nem do terror, brinca com os limites entre a vida e a morte, tal como a literatura fantástica tradicional.
Algumas das histórias se referem a um passado esquecido, às casas arruinadas, às cidades que não cuidaram de seu patrimônio cultural. “O Recife de verdade morreu ali pelos anos 40, 50” é dito em um dos contos. Contar essas histórias também é uma forma de reviver esse passado?
Se você me perguntar o que é o meu livro, eu diria que é uma sombria história íntima do Brasil, já que ele inicia nos anos 1930 e tem contos ambientados em diferentes épocas da nossa história, passando pelos tempos atuais e chegando a um futuro próximo. Uma história sombria do Brasil e que explora, ao mesmo tempo, as dimensões obscuras de cada um de nós, as faces ocultas do medo, da fé, do desejo e principalmente da família.
Um dos contos, “Lázaro”, cita a COVID-19. Em outros, de forma indireta, há referências ao passado e à situação atual do país. Como a realidade recente influenciou a sua criação? Estamos vivendo em um filme de terror?
A gente vive uma realidade que é um terço “Black mirror”, um terço Zé do Caixão e um terço “Zorra total”. “Gótico nordestino” foi todo escrito sob o impacto dos acontecimentos dos últimos anos e, portanto, a pandemia não poderia ficar de fora. No processo de escrita dos contos, eu decidi que o contemporâneo fluiria com uma liberdade que eu não me permitia antes. Por outro lado, eu acredito em uma literatura escrita na contramão do tempo presente, portanto, cada conto do livro busca equilibrar isso. Cabe ao leitor julgar se fui, ou não, bem-sucedido.
Racismo e violência produzem no Brasil episódios de horror extremo e inimaginável. O que a literatura pode fazer?
O suposto terror das minhas páginas muitas vezes empalidece diante de realidades como a nossa, não é mesmo? No entanto, acredito no poder das narrativas e da literatura. É o que continuarei fazendo, tanto como escritor, quanto como professor e crítico literário.
Você nasceu em Campina Grande (PB). Que histórias escutou de familiares e de amigos sobre eventos sobrenaturais em sua cidade? O que mais o impressionava nas narrativas orais? Chegou a avistar algum vampiro na Serra da Borborema?
Campina Grande é um lugar fascinante. Desde seus primórdios, é um lugar de partidas, de chegadas e de reinvenções. A cidade é um polo universitário, um polo comercial, um polo tecnológico e ao mesmo tempo é um dos lugares onde a poesia popular nordestina se mantém mais forte. Em Campina, eu lia um cordel com uma mão e um romance de ficção científica com a outra. Infelizmente, nunca vi um vampiro na minha terra, mas já passei na frente de umas casas que todo mundo jura serem mal-assombradas... Sua pergunta me fez lembrar de um movimento messiânico chamado Borboletas Azuis, surgido em Campina Grande. Na minha infância, ainda conheci alguns deles. O movimento teria profetizado que o mundo acabaria em um dilúvio em 13 de maio de 1980. Como já estamos em 2022 (embora em tempos pandêmicos-apocalípticos), bem, a profecia não se cumpriu. Curiosamente, eu nasceria quase um ano depois, em 18 de maio de 1981.
Como outras artes – cinema, TV, quadrinhos – influenciaram a sua literatura? “Gótico nordestino” é uma reação, ao menos no título e na epígrafe, à HQ “Gótico americano”?
Tirei o título do livro dessa HQ que você menciona. Os quadrinhos, cinema e a TV foram referências fundamentais no processo de escrita de “Gótico nordestino”. Games também, em especial no conto “As onças”, em que faço homenagem a “Resident Evil 2”, e “Firestarter”, inspirado no fenômeno do “Pokémon Go”. No caso dos quadrinhos, como você bem apontou, existe um arco da HQ da DC Comics “Monstro do Pântano”, escrito por Allan Moore, chamada de “Gótico americano”, onde o Monstro do Pântano e o mago John Constantine viajam pelos Estados Unidos profundo. Cada edição desse arco é uma homenagem a vertentes do horror. Reler os quadrinhos me ajudou a entender melhor meu livro. Por isso, decidi usar o título “Gótico nordestino”. Ainda nos quadrinhos, boa parte das HQs publicadas pela DC Comics sob o selo Vertigo foram referenciais para mim. Mas também mangás de horror, em especial os de Junji Ito e Suehiro Maruo. O último conto do livro, “Vampiro”, foi escrito sob o impacto da minha releitura de “Menino de engenho”, de José Lins do Rego, e escrito com imagens de quadrinhos japoneses na cabeça. Enquanto escrevia, eu enxergava cenas como se desenhadas por um mangaká. No passado, eu reprimiria essas referências e minha escrita. Hoje, não mais. No caso da TV, “American horror story”, “Penny Dreadful” e “A maldição da Residência Hill” foram importantes, assim como a maior de todas as séries trevosas, “Arquivo X”.
“Gótico nordestino”
• Cristhiano Aguiar
• Alfaguara
• 136 páginas
• R$ 54,90