A filmografia do cineasta grego Theo Angelopoulos, um dos mais celebrados do cinema europeu pós-1968, é marcada pela tessitura mítica da Grécia, berço da civilização ocidental, pela sua enorme herança artística, histórica, cultural e pela história contemporânea. O cineasta morreu em janeiro de 2012, aos 76 anos, atropelado por um motociclista em Pireu, nos arredores da capital grega, onde buscava locais para seu novo filme, que pretenderia discutir as consequências da crise europeia no país.
Angelopoulos deixou importante legado no cinema ao realizar um diálogo com a memória, que, no campo da linguagem cinematográfica, está representada pela utilização de enquadramentos, longos e silenciosos planos, abertos ou médios e planos sequenciais, de modo a recortar as cenas em pequenas unidades, quase autônomas, com extremo rigor e sensibilidade.
Angelopoulos deixou importante legado no cinema ao realizar um diálogo com a memória, que, no campo da linguagem cinematográfica, está representada pela utilização de enquadramentos, longos e silenciosos planos, abertos ou médios e planos sequenciais, de modo a recortar as cenas em pequenas unidades, quase autônomas, com extremo rigor e sensibilidade.
O cineasta realizou 15 longas-metragens e, em seus filmes, é possível identificar aspectos recorrentes, como viagem, história, memória e testemunho, sobretudo a partir de “Viagem a Cítera” (1984) e nos filmes que se sucedem, como “Paisagem na neblina” (1988), “Um olhar a cada dia” (1995), “A eternidade e um dia” (1998), “O passo suspenso da cegonha” (1991) e “A poeira do tempo” (2009).
Obras marcadas por temáticas de forte dimensão dramática, ética e humanista, por impasses históricos, neblina, fronteiras, deslocamentos e abordagens subjetivas, bem como alegorias, referências mitológicas e desilusões acerca da civilização moderna. Filmes que guardam ecos do passado e estilhaços do presente.
Em “Paisagem na neblina”, os irmãos Voula, de 11 anos, e Alexander, de 6, saem da casa materna, na Grécia, à procura do pai desconhecido, que supostamente vive na Alemanha. Juntos, lançam-se em uma jornada cheia de riscos, contato com o obscuro e perda da inocência, atravessada por errância e por desterritorialização – vista aqui não só como deslocamento de espaço geográfico, mas como território em sua versão existencial. Vida que é feita em trânsito, na fronteira, em meio à neblina.
A narrativa é marcada pela tragédia, e isso se materializa no ofuscamento das imagens em camadas de neblina, no desamparo e na brutalidade do estupro sofrido por Voula. A memória do pai ausente é o fio condutor da jornada empreendida, uma viagem em busca de um passado que dê sentido ao presente. Mesmo estando frente ao mundo hostil e violento, os irmãos prosseguem o percurso em meio ao sonho e ao desejo pelo reencontro. A carta imaginária, escrita pelo pequeno Alexander, é um dos momentos mais ternos do filme: “Estamos viajando, soprados como folhas ao vento. Um mundo estranho. Palavras e gestos que não entendemos. E a noite nos assusta, mas estamos felizes e vamos em frente.”
Um poema cinematográfico. Assim pode ser definido o filme “A eternidade e um dia”, que condensa, em duas horas, a vida de Alexander, consagrado poeta e escritor grego, paciente terminal que luta contra a morte. Do encontro com o menino que foge da polícia grega e de traficantes de crianças para retornar ao seu país de origem, Albânia, nasce uma amizade marcada pela urgência do tempo.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 1998, o filme trabalha o tempo, a ternura, a alteridade e a descoberta do amor não só na breve relação com o garoto, mas nas cartas deixadas pela falecida mulher. Uma obra extremamente sensível na qual vida, memória, neblina e morte revelam camadas temporais.
Um cinema errático
“Le regard d’Ulisses”, que no Brasil recebeu o nome de “Um olhar a cada dia”, tem como protagonista A., um cineasta grego que partiu para o exílio nos EUA, lá permanecendo por 35 anos. Angelopoulos retoma a “Odisseia”, um dos principais poemas épicos da Grécia Antiga atribuídos a Homero, para narrar a trajetória de Ulisses na contemporaneidade, situando-a no conflito na primeira metade dos anos de 1990 do século 20. No filme, a “Odisseia” funciona como referência principal, mas várias outras são utilizadas pelo cineasta, como o mito de Orfeu, frases de Platão, fragmentos de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, e versos dos poetas T. S. Eliot e Rainer Maria Rilke.
O cineasta refaz a trajetória dos irmãos Manakis, pioneiros nos primeiros registros cinematográficos dos Bálcãs, apresentando um olhar contemporâneo sobre a Grécia.Não por acaso, o filme se inicia com a voz em off que questiona: “Mas é verdade? É o primeiro olhar? O primeiro filme?”. O caminho que esse olhar percorrerá é o da viagem, da “Odisseia” de Ulisses ou de A.
A busca dos três rolos de filme dos irmãos Manakis – jamais revelados até então – tem início em Florina, cidade grega, e transforma-se no pretexto que o conduz em sua viagem existencial e ao seu próprio passado, em meio aos conflitos de um presente dilacerado. Mas o que atravessa “Um olhar a cada dia”? Seria possível o reencontro de um olhar primeiro e transcendente? De um olhar que ultrapassasse as imagens contemporâneas e que permitisse ir além, algo como recuperar nossa capacidade de enxergar o invisível? O filme tem como epígrafe a seguinte frase de Platão: “Se a alma quer se reconhecer/ Deve-se olhar dentro de uma alma”.
A viagem tem seu ponto final em Sarajevo, em plena guerra, onde estão os três rolos de filme. Não por acaso, a narrativa é conduzida para esse cenário de barbárie e de morte. É lá que Ulisses ou A. vai encontrar os filmes perdidos, guardados com enorme zelo por Ivo Levi, diretor da cinemateca da cidade, um colecionador de imagens desaparecidas.
Mas é em meio à neblina, presente no filme, um momento de trégua e durante um passeio no rio, que toda a família de Ivo é executada, sob o olhar incrédulo de Ulisses. Não se vê nada nesse momento, apenas a tela branca ou sob efeito da neblina.
Ver ou rever os filmes de Angelopoulos é fazer um mergulho nas muitas possibilidades de reflexões acerca da humanidade apresentadas pelo cineasta em suas obras que tanto dialogam, dialeticamente, com a memória, o passado, o presente e com as questões existenciais. Na analogia dos filmes perdidos e na busca para encontrá-los, um outro sentido para a existência humana. Brilhante esforço para tratar temas tão caros e delicados.
*Mestre em artes visuais pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Márcia Mendonça é professora, pesquisadora e jornalista.