O cinema pode ser sinônimo de diversão e escapismo – os bilhões arrecadados pelas superproduções da Marvel comprovam a face mais lucrativa do negócio audiovisual. Mas o cinema também inquieta e provoca. Mesmo sob o impacto das transformações ocorridas com a massificação do streaming, filmes podem nos fazer enxergar as tensões da sociedade. E, por meio da releitura de gêneros cinematográficos estabelecidos inicialmente no exterior, apontar as contradições e impasses de um país.
Foi o que conseguiram, mais recentemente, realizadores de diferentes origens e propostas, ainda que não tenham atingido um público tão expressivo como alguns títulos da chamada “geração da retomada”, que reativou nos anos 1990 a produção audiovisual brasileira.
Leia:
Walter Salles: 'A sensação é de exílio em nosso próprio país'
Um dos principais nomes da retomada, Walter Salles dirigiu dois longas-metragens (“Terra estrangeira” com Daniela Thomas, e “Central do Brasil”) que, mesmo duas décadas depois do lançamento, ainda são capazes de espelhar a inquietação de muitos brasileiros, insatisfeitos com os rumos do país e que têm condições de especular sobre duas possibilidades. Sair do Brasil ou mergulhar no Brasil?
Não é função do cinema oferecer respostas, mas é possível aguçar esses questionamentos. Produções premiadas em festivais internacionais e direcionadas para o grande público retomam as perguntas dos filmes de Salles e indicam duas formas de tentativa de superação de impasses em um país despedaçado: intensificação de conflitos (“Bacurau”), exacerbação de afetos (“Deserto particular”).
Não é função do cinema oferecer respostas, mas é possível aguçar esses questionamentos. Produções premiadas em festivais internacionais e direcionadas para o grande público retomam as perguntas dos filmes de Salles e indicam duas formas de tentativa de superação de impasses em um país despedaçado: intensificação de conflitos (“Bacurau”), exacerbação de afetos (“Deserto particular”).
As cicatrizes deixadas pela necessidade de mudança para uma nação europeia apareceram também em outros dois longas que fizeram carreira internacional. Sob o ângulo da necessidade da afirmação de identidade, em “Praia do Futuro” (2014), de Karim Äinouz; do ponto de vista da iminência do desalinhamento da célula familiar em “Benzinho” (2018), de Gustavo Pizzi. Em ambos, a reconstrução e a consolidação de laços de família são o que resta para personagens impelidos a deixar o país.
Sem pressa e sem paternalismo
Para os milhões de brasileiros a quem não é oferecida a chance de procurar no exterior uma vida menos ordinária, como aos personagens de “Terra estrangeira”, “Praia do Futuro” e “Benzinho”, a sobrevivência é uma luta diária, que pode ser travada em meio a afetos conflitantes envolvendo até a disputa pelo sentimento de maternidade (“Que horas ela volta?”, de 2015, de Anna Muylaert) ou sem catarse, com suor na testa e pés fincados no chão. É o que ocorre com a personagem Juliana, interpretada de forma acertadamente contida pela extraordinária Grace Passô no igualmente extraordinário “Temporada” (2018), de André Novais Oliveira, vencedor do Festival de Brasília de 2018.
Assim como no ganhador do Candango de melhor filme do ano seguinte, “A febre”, de Maya Da-Rin, não há a espetacularização do melodrama. Prevalece a observação atenta, sem pressa e sem sentimentalismo, de transformações quase imperceptíveis ocorridas na vida de uma agente de saúde depois que ela sai de sua cidade natal, Itaúna, para Contagem, na grande Belo Horizonte.
“Não é um filme de ‘denúncia’, embora toda a brutalidade de uma sociedade injusta transpareça a cada cena: temas como o racismo, a opressão social e o desprezo ao meio ambiente aparecem de maneira ao mesmo tempo sutil e contundente”, observa José Geraldo Couto na crítica “A poesia das pequenas coisas”, publicada no blog do Instituto Moreira Salles (IMS). “O interesse maior do diretor parece ser o de mostrar aquilo que resiste e sobrevive à desumanização e à violência circundantes. Seu olhar mais atento é para a sagacidade e a coragem com que cada um ‘se vira’, dá a volta por cima, criando uma rede de solidariedade e afeto”, complementa o crítico.
Assim como no ganhador do Candango de melhor filme do ano seguinte, “A febre”, de Maya Da-Rin, não há a espetacularização do melodrama. Prevalece a observação atenta, sem pressa e sem sentimentalismo, de transformações quase imperceptíveis ocorridas na vida de uma agente de saúde depois que ela sai de sua cidade natal, Itaúna, para Contagem, na grande Belo Horizonte.
“Não é um filme de ‘denúncia’, embora toda a brutalidade de uma sociedade injusta transpareça a cada cena: temas como o racismo, a opressão social e o desprezo ao meio ambiente aparecem de maneira ao mesmo tempo sutil e contundente”, observa José Geraldo Couto na crítica “A poesia das pequenas coisas”, publicada no blog do Instituto Moreira Salles (IMS). “O interesse maior do diretor parece ser o de mostrar aquilo que resiste e sobrevive à desumanização e à violência circundantes. Seu olhar mais atento é para a sagacidade e a coragem com que cada um ‘se vira’, dá a volta por cima, criando uma rede de solidariedade e afeto”, complementa o crítico.
A utopia no sertão
Se a protagonista de “Temporada” não precisou sair de Minas Gerais para passar por uma transformação, em outras ocasiões o cinema nacional impôs um deslocamento maior para se obter o efeito dramático pretendido. Foi assim o caminho traçado pelo roteiro de João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein para os personagens de “Central do Brasil”, vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim de 1998. Em seu livro, Lúcia Nagib destaca “Central” entre os filmes que buscam a utopia no sertão do Nordeste.
“É o epítome da redescoberta apaixonada do Brasil, com a nostalgia romântica que sai de uma pátria indefinida para a euforia da pátria reencontrada”, analisa Nagib, lembrando que a narrativa se desloca do universo moderno e repleto de ameaças da metrópole carioca para o “isolamento seguro e confortável do Brasil arcaico, perfazendo assim o movimento contrário dos migrantes brasileiros”.
“É o epítome da redescoberta apaixonada do Brasil, com a nostalgia romântica que sai de uma pátria indefinida para a euforia da pátria reencontrada”, analisa Nagib, lembrando que a narrativa se desloca do universo moderno e repleto de ameaças da metrópole carioca para o “isolamento seguro e confortável do Brasil arcaico, perfazendo assim o movimento contrário dos migrantes brasileiros”.
Não há nada seguro ou confortável no povoado nordestino de Bacurau, título do mais provocativo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho. Muito pelo contrário. A morte ronda os personagens desde os primeiros minutos, com os caixões arremessados na estrada que leva a médica Teresa (Barbara Colen) de volta à sua cidade, no interior pernambucano. No livro publicado pela Companhia das Letras com os roteiros dos três longas-metragens que dirigiu em 10 anos, Mendonça Filho reconhece que, do primeiro (“O som ao redor”) para o terceiro (“Bacurau”, com Juliano Dornelles), “houve uma subida de tom, que acompanhou as alterações de rota observadas no Brasil na sua história recente”. Ele define os longas, escritos entre 2008 e 2018, como “retratos brasileiros” e “frutos inevitáveis e indissociáveis do país”.
Se em “O som ao redor” a violência é latente, mas não explicitada, criando um clima de fogo brando chamado pelo autor de “tensão difusa”, os embates em “Aquarius” são mais diretos – basta lembrar as discussões ásperas de Clara (Sônia Braga) com Diego (Humberto Carrão), playboy do setor imobiliário. A temperatura ferve de vez em “Bacurau”. É pau, é pedra, é tiro na cara, é criança morta, é cabeça cortada, é o fim do caminho da conciliação. Exagero? Nem tanto. Basta lembrar que, no início deste ano, um menino de 9 anos, filho do líder de uma associação de agricultores, foi assassinado a tiros por homens encapuzados em uma região de Pernambuco com histórico de violentas disputas agrárias.
Em “Central do Brasil”, o sertão era o lugar da conciliação e do apaziguamento dos contrários, como define o crítico Luiz Zanin Oricchio no livro “Cinema de novo: um balanço crítico da retomada” (Estação Liberdade, 2003); em “Bacurau”, o interior nordestino volta a ser o espaço “da expressão máxima da divisão e da dissonância”, como fizeram Ruy Guerra (“Os fuzis”), Glauber Rocha (“Deus e o diabo na terra do sol”) e outros expoentes do cinema novo nos anos 1960. Os conflitos nacionais – recentes e seculares – explodem nas paredes das casas, da escola e do museu de Bacurau.
Coube aos diretores, por meio da união dos códigos do cinema de gênero (ficção científica, horror, filme de guerra, faroeste) com elementos que misturam o passado e o presente (o cangaceiro queer Lunga, encarnado por Silvero Pereira), proporcionar, por meio da catarse, a possibilidade imaginária de um acerto de contas de milhões de brasileiros com as desigualdades do país. Vingança sangrenta, justiça com as próprias mãos. Mais fortes são os poderes da bala e do facão.
Em “Central do Brasil”, o sertão era o lugar da conciliação e do apaziguamento dos contrários, como define o crítico Luiz Zanin Oricchio no livro “Cinema de novo: um balanço crítico da retomada” (Estação Liberdade, 2003); em “Bacurau”, o interior nordestino volta a ser o espaço “da expressão máxima da divisão e da dissonância”, como fizeram Ruy Guerra (“Os fuzis”), Glauber Rocha (“Deus e o diabo na terra do sol”) e outros expoentes do cinema novo nos anos 1960. Os conflitos nacionais – recentes e seculares – explodem nas paredes das casas, da escola e do museu de Bacurau.
Coube aos diretores, por meio da união dos códigos do cinema de gênero (ficção científica, horror, filme de guerra, faroeste) com elementos que misturam o passado e o presente (o cangaceiro queer Lunga, encarnado por Silvero Pereira), proporcionar, por meio da catarse, a possibilidade imaginária de um acerto de contas de milhões de brasileiros com as desigualdades do país. Vingança sangrenta, justiça com as próprias mãos. Mais fortes são os poderes da bala e do facão.
Deslocamento geográfico e íntimo
Integrante do elenco de “Bacurau”, Antonio Saboia é um dos protagonistas de “Deserto particular” (2021), o longa-metragem escrito por Aly Muritiba e Henrique dos Santos e indicado pelo Brasil para tentar uma vaga ao Oscar de melhor produção não falada em inglês. Se, no filme dos cineastas pernambucanos, Saboia interpreta um dos “sudestinos” que descobrem, tardia e tragicamente, que os invasores estrangeiros não o consideram como um semelhante, no longa de Muritiba ele dá vida a Daniel, personagem que, por meio de um deslocamento geográfico e íntimo, consegue uma segunda chance.
Produto de uma família marcada pelo autoritarismo da figura paterna e afastado das ruas depois de cometer um ato de violência, o policial mora com o pai e a irmã em uma casa habitada por monólogos e silêncios. Atraído pelo desejo de se relacionar com Sara, que conhece apenas virtualmente e mora no interior da Bahia, Daniel deixa a frieza de Curitiba e atravessa o país até chegar à quentura baiana de Sobradinho, cidade nascida com a represa homônima, em 1973. Já no seu destino, ele tem a chance de repetir a trajetória de Dora de “Central do Brasil” e, mesmo com a “consciência pessoal em crise”, como definiu Zanin Oricchio a respeito da personagem de Fernanda Montenegro, ressignificar seus afetos.
Para isso, porém, terá de se permitir uma transformação ao ser provocado pela existência de Robson (Pedro Fasanaro, impressionante), jovem carregador de frutas que, massacrado pela opressão familiar e religiosa, planeja deixar a sua cidade. “É um filme de amor, feito em um país conflagrado, dividido e pautado pelo discurso do ódio”, definiu o diretor baiano à época do discreto lançamento nos cinemas, em novembro de 2021.
Produto de uma família marcada pelo autoritarismo da figura paterna e afastado das ruas depois de cometer um ato de violência, o policial mora com o pai e a irmã em uma casa habitada por monólogos e silêncios. Atraído pelo desejo de se relacionar com Sara, que conhece apenas virtualmente e mora no interior da Bahia, Daniel deixa a frieza de Curitiba e atravessa o país até chegar à quentura baiana de Sobradinho, cidade nascida com a represa homônima, em 1973. Já no seu destino, ele tem a chance de repetir a trajetória de Dora de “Central do Brasil” e, mesmo com a “consciência pessoal em crise”, como definiu Zanin Oricchio a respeito da personagem de Fernanda Montenegro, ressignificar seus afetos.
Para isso, porém, terá de se permitir uma transformação ao ser provocado pela existência de Robson (Pedro Fasanaro, impressionante), jovem carregador de frutas que, massacrado pela opressão familiar e religiosa, planeja deixar a sua cidade. “É um filme de amor, feito em um país conflagrado, dividido e pautado pelo discurso do ódio”, definiu o diretor baiano à época do discreto lançamento nos cinemas, em novembro de 2021.
O início da concretização da paixão de Daniel por Sara em “Deserto particular” se dá ao som de canção romântica dos anos 1980 “Total eclipse of the heart”, na voz de Bonnie Tyler, uma das preferidas dos karaokês. Curiosamente, o mesmo hit radiofônico embala o momento decisivo do encanto despertado pelo adolescente Eduardo (Gabriel Leone, notável) em uma mulher mais velha, Mônica (Alice Braga, à vontade no papel), na feliz adaptação de René Sampaio para a música de Renato Russo.
O cineasta, nascido em Brasília e radicado no Rio de Janeiro, havia levado às telas outro sucesso da Legião Urbana, “Faroeste caboclo”. Mas o êxito de René na comédia romântica “Eduardo e Mônica” é ainda maior – desta vez, ele nos oferece um espelho para enxergarmos não a doença, mas a possibilidade de cura.
O cineasta, nascido em Brasília e radicado no Rio de Janeiro, havia levado às telas outro sucesso da Legião Urbana, “Faroeste caboclo”. Mas o êxito de René na comédia romântica “Eduardo e Mônica” é ainda maior – desta vez, ele nos oferece um espelho para enxergarmos não a doença, mas a possibilidade de cura.
“Faroeste caboclo” chegou aos cinemas em 2013, pouco antes da eclosão das manifestações que levaram milhões de pessoas às ruas para protestar contra a classe política. Era um país eriçado, aceso, altamente inflamável. Naquele cenário, tornava-se impossível o apaziguamento – também inviável para João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira, inesquecível), o homem que se deslocou da Bahia para Brasília porque “queria falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”.
Santo Cristo é vítima de discriminação “por sua classe e sua cor”, mas também é alvo porque sabia dançar “com ódio de verdade”, como diz a letra de outra música da Legião, citada na cena luminosa com o encontro dos protagonistas dos dois filmes.
Santo Cristo é vítima de discriminação “por sua classe e sua cor”, mas também é alvo porque sabia dançar “com ódio de verdade”, como diz a letra de outra música da Legião, citada na cena luminosa com o encontro dos protagonistas dos dois filmes.
Em “Eduardo e Mônica”, o clima é bem diferente da tensão social e racial de “Faroeste”. Os dois jovens brancos, de classe média, podem brincar na cúpula do Congresso Nacional sem ser importunados por militares ou seguranças – como, diga-se de passagem, foi possível até os anos 1980. Manifestação política, para o imaturo Eduardo, desperta somente estranhamento: “Esse povo não trabalha?”, questiona o adolescente, ao se deparar com um protesto no Parque da Cidade.
“Dá trabalho consertar o Brasil”, rebate a intelectualizada Mônica, nas palavras escritas pelo roteirista Matheus Souza com as colaborações de Cláudia Souto, Jessica Candal Sato e Michele Franz. Tendo apenas a diferença de idade como barreira, os dois podem deixar a porta aberta para a paixão como ela deve ser vivida. Exercitam a empatia, buscam um no outro, como se não houvesse amanhã.
“Eu quero que você se coloque no meu lugar, tenta imaginar como se fosse eu”, diz o secundarista ao pedir uma chance à estudante de medicina. No Brasil enfermo e exausto, histórias de superação de diferenças por meio de sorrisos, abraços e beijos, como “Deserto particular” e “Eduardo e Mônica”, são um bálsamo para as retinas. Se a ficção conseguiu antever a realidade e viveremos em um país menos cindido e mais afetuoso, ao menos capaz de oferecer melhores condições de trabalho e de vida a brasileiros como os personagens de “Temporada”, “Que horas ela volta?” e “A febre”, somente os dias – e, talvez, as urnas – irão nos trazer a resposta.
“Deserto particular”
“Dá trabalho consertar o Brasil”, rebate a intelectualizada Mônica, nas palavras escritas pelo roteirista Matheus Souza com as colaborações de Cláudia Souto, Jessica Candal Sato e Michele Franz. Tendo apenas a diferença de idade como barreira, os dois podem deixar a porta aberta para a paixão como ela deve ser vivida. Exercitam a empatia, buscam um no outro, como se não houvesse amanhã.
“Eu quero que você se coloque no meu lugar, tenta imaginar como se fosse eu”, diz o secundarista ao pedir uma chance à estudante de medicina. No Brasil enfermo e exausto, histórias de superação de diferenças por meio de sorrisos, abraços e beijos, como “Deserto particular” e “Eduardo e Mônica”, são um bálsamo para as retinas. Se a ficção conseguiu antever a realidade e viveremos em um país menos cindido e mais afetuoso, ao menos capaz de oferecer melhores condições de trabalho e de vida a brasileiros como os personagens de “Temporada”, “Que horas ela volta?” e “A febre”, somente os dias – e, talvez, as urnas – irão nos trazer a resposta.
SAIBA ONDE ASSISTIR A FILMES QUE INTERPRETAM O BRASIL
“A febre”
Netflix
“Aquarius”
“Aquarius”
“Bacurau”
“Central do Brasil”
Não está disponível nas plataformas de streaming. Saiu de cartaz em BH.
“Eduardo e Mônica”
Em BH, está em cartaz no Cineart Shopping Del Rey, Una Cine Belas Artes, Cineart Ponteio Lar Shopping e Cineart Boulevard Shopping. Recomenda-se conferir previamente a programação das salas.“Faroeste caboclo”
“Praia do Futuro”
“Que horas ela volta?”“Temporada”