Jornal Estado de Minas

TRIBUTO

Ex-alunos e amigos homenageiam Eneida Maria de Souza


Quando, em novembro de 2021, lançou “Narrativas impuras” (Cepe Editora), a professora Eneida Maria de Souza, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, vinculada à Faculdade de Letras (Fale), mirava o centenário do modernismo. Maior especialista brasileira na obra de Mário de Andrade, uma das principais referências do movimento marcado pela Semana de Arte Moderna, realizada entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, Eneida pretendia homenagear a data e contribuir com a revisão crítica desse importante movimento cultural. 



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Ao mesmo tempo, “Narrativas impuras” é um testamento literário. A obra apresenta, na escolha dos artigos, a trajetória acadêmica da autora, coerente, pautada pela diversidade de interesses e curiosidade intelectual. “As ideias surgem e desaparecem rapidamente no meio acadêmico, contaminadas pela insurgência do novo e pelo apelo das redes sociais. É um desafio entregar aos leitores os ensaios produzidos ao longo de duas décadas”, declarou ela por ocasião do lançamento. 

O livro apresenta, a partir dos anos 1970, um rico painel do desenvolvimento dos estudos literários no Brasil, orientado em favor de uma visão genealógica, em que os conceitos do presente são articulados àqueles desenvolvidos pelas correntes fundadoras da teoria da literatura, das quais a autora revela privilegiado domínio. Está dividido em quatro seções, apresentando um acervo sempre em movimento, que promove a releitura da história do modernismo e suas contradições, o trajeto das disciplinas de teoria da literatura e literatura comparada e a sua contribuição para a fuga aos necrosados regimes duais de pensamento, a abertura promovida pelos estudos culturais e outros assuntos.

Eneida foi uma das fundadoras do doutorado em literatura comparada da Faculdade de Letras da UFMG, ao lado de Ana Lúcia Gazzola, Vera Casanova e Ruth Silviano Brandão. O curso representou um ponto de inflexão nas pesquisas e estudos culturais, destacando-se pela transdisciplinaridade.





Ao trabalhar a sua última obra, “Narrativas impuras”, Eneida não sabia que estava doente: o câncer de endométrio foi descoberto um mês depois do lançamento, evoluindo rapidamente a óbito em 1º de março de 2022. Aos 78 anos, a última entrevista de Eneida Maria de Souza, ainda inédita, foi concedida à Cepe Editora, momento em que ela falou de sua trajetória, de como se sentia próxima de Mário de Andrade, que valorizava a cultura popular em suas mais variadas formas, traço presente na vida profissional dela e marcante em seu último livro.

“Conheço as publicações da Cepe e admito que a crítica brasileira está muito bem representada pela edição de obras críticas, como as de Silviano Santiago, Wander Miranda, Italo Moriconi, entre outros. A minha experiência tem sido a melhor possível, tendo em vista o cuidado da edição, o requinte da diagramação, ao lado da seriedade de seus editores”, elogiou. Eneida também descreveu a sua participação no projeto interinstitucional “Minas mundo e o cosmopolitismo brasileiro”, que vem sendo desenvolvido há um ano por pesquisadores do Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e a Universidade de Princeton.

Nas palavras de Eneida: “um projeto, que elabora o lugar pioneiro de Minas Gerais na discussão sobre a relação entre metrópole e província, no sentido de desconstruir lugares hegemônicos de produção de saberes, pelo deslocamento e a relatividade interpretativa”. A seguir, trechos da entrevista:  


O que a senhora quis dizer com “Narrativas impuras”?
“Impuras” conservam, como tentei aqui demonstrar, alto grau de miscigenação entre autores, narrativas e tempos distintos de suas realizações. A inusitada comparação entre teorias e conceitos, os quais, a princípio, não representariam matéria de aproximação comparativa, encontra eco na conjunção heteróclita de princípios defendidos por filósofos, escritores e historiadores de arte. O procedimento da montagem ilustra e incentiva o teor impuro das manifestações artísticas, pela liberdade experimentada nas associações, no diálogo entre formas e autores, em que são respeitadas tanto as diferenças quanto as semelhanças entre os objetos.





Qual sua proposta com a obra?
Na escolha dos artigos, a intenção foi reunir o que de mais representativo poderia justificar minha trajetória acadêmica, construída de forma coerente, embora pautada pela diversidade de interesses e motivada pela curiosidade intelectual. Na abordagem de obras de literatura ou de outra ordem, como correspondência, teoria e crítica, prevalece o enfoque biográfico, na relação metafórica produzida entre criação e vida. O gênero ensaístico preenche os requisitos desta categoria crítica, pelo aspecto experimental da linguagem, a liberdade em assumir o traço inacabado dos discursos, os quais incluem a estreita relação entre ficção e teoria.

A senhora é considerada uma das mais importantes autoridades em Mário de Andrade. Li na revista da UFMG uma definição bem-humorada do professor Wander Melo Miranda a respeito de sua afinidade com o pensamento do escritor: ‘Se Mário de Andrade vestisse saias, seria Eneida Maria de Souza’. O modernista é seu alter ego?
A minha relação com a obra de Mário de Andrade corresponde à maior parte de minhas pesquisas, iniciada com a tese de doutorado defendida na Universidade de Paris VII, sobre “Macunaíma”. O que resultou no livro “A pedra mágica do discurso”, de 1988. No correr dos anos, passei a me interessar pela análise de sua obra ensaística e pela correspondência com os amigos escritores de Minas Gerais e do Brasil. A afirmação de Mário sobre a crítica como obra de arte me levou a refletir sobre o aspecto literário e ensaístico da crítica, associando-a também à biografia. Não me considero um Mário de Andrade de saias, pois seu lugar na cultura brasileira é inigualável e difícil de ser seguido. Mas me sinto muito próxima de seu empenho em valorizar a cultura popular em suas mais variadas formas. Meu livro contém, em grande parte, textos que analisam obras literárias e de outra ordem, em que são discutidas questões acerca da cultura popular.

“Narrativas impuras” surge no início das comemorações do centenário do modernismo. A referência é uma homenagem?
O ano de 2022 representa muito para a cultura brasileira no que se refere à comemoração e à revisão do modernismo. A publicação de meu livro neste momento corresponde a essa comemoração, não só por me sentir muito vinculada aos princípios do modernismo como à sua revisão crítica.  Faço parte também de um projeto interinstitucional, chamado “Minas mundo e o cosmopolitismo brasileiro”, que está sendo desenvolvido há um ano por pesquisadores do Rio, São Paulo, Campinas e da Universidade de Princeton. O objetivo é  apontar o lugar pioneiro de Minas Gerais na discussão sobre a relação entre metrópole e província, no sentido de desconstruir lugares hegemônicos de produção de saberes, pelo deslocamento e a relatividade interpretativa. Estamos todos empenhados nessa reflexão, sendo que há ensaios no livro que discutem essa situação. A necessidade também de retomar manifestações artísticas que fogem um pouco dos valores instituídos pelo cânone.





No prefácio, a senhora explica que reuniu ensaios produzidos nos últimos 20 anos, representativos de sua trajetória acadêmica. Qual a lógica na sequência das partes? A primeira faz referência a Mário de Andrade e a segunda, por exemplo, fala sobre a experiência da leitura em voz alta nas fábricas de charuto em Havana.
A divisão dos ensaios em tópicos independentes diz respeito à variedade de temas estudados no livro. Preferi prestigiar as análises da obra de Mário de Andrade como abertura para futuras reflexões. As outras partes contemplam minha tendência ao trabalho crítico de cultura, abarcando vários assuntos, mas mantendo a posição de questionamento do lugar interdisciplinar da crítica literária. Os demais ensaios refletem as pesquisas como a crítica biográfica, pela abordagem de autores como Silviano Santiago e seu lugar pioneiro na introdução, entre nós, da literatura de natureza autoficcional, o que é igualmente encontrado na sua atividade crítica. A última parte conduz a leitura para minha experiência como defensora da crítica autobiográfica e biográfica, com a inserção do autor como peça importante das reflexões. 


“Narrativas impuras”
• De Eneida Maria de Souza
• Cepe Editora
• 412 páginas
• R$ 60


Outras obras

• “A pedra mágica do discurso: jogo  e linguagem em Macunaíma” (1988)

• “Presença de Henriqueta” (1992)

• “Modernidades tardias” (1998)

• “Crítica cult” (2002)

• “Pedro Nava, o risco da memória” (2004)

• “Janelas indiscretas: ensaios de       crítica biográfica” (2011)


À mestra, com carinho

Depoimentos de ex-alunos e colegas 
acadêmicos a respeito da vida e obra 
de Eneida Maria de Souza 


Delicadeza e disponibilidade

“Fui aluno da professora Eneida Maria de Souza na década de 1960, no curso de letras da Fale-UFMG. Éramos quase da mesma idade e encantavam-me o domínio que Eneida mostrava da teoria da literatura e a clareza com que expunha seus conhecimentos.  Poucos anos depois, tornei-me professor de literatura brasileira na mesma instituição e pude ser colega da Eneida por muitos anos. Fui novamente aluno dela no curso de doutorado em literatura comparada, quando ela já era uma referência nacional e internacional na área da literatura. Beneficiei-me de novo de toda a erudição dessa infatigável estudiosa e pesquisadora. Tudo isso sem perder a simplicidade, a delicadeza e a disponibilidade para atender a quem dela se apro- ximasse. A morte da grande mestra é uma perda imensa não só para seus colegas, alunos e amigos, mas para o nosso país, principalmente neste momento de tanta desvalorização da cultura e da inteligência no Brasil.”




Antônio Sérgio Bueno, professor aposentado de literatura brasileira da UFMG


Vizinha e conselheira

“A imensa erudição da mestra Eneida Maria de Souza cabia na figura amável da minha vizinha Eneida, que morava no bloco B do prédio onde moro desde 1967, na rua que ostenta o nome de Benvinda de Carvalho, professora do curso primário de Fernando Sabino. Destino? Lembro-me dela hospedando em seu apartamento o escritor Autran Dourado, fazendo compras na padaria ou estacionando o carro complaca de Manhuaçu na sua garagem, carro este em que ela me deu carona para irmos à Reitoria da UFMG prestigiar a inauguração de algumas salas do Acervo dos Escritores Mineiros, que ela ajudou a criar. Abusando de sua generosidade, convidei-a para integrar o conselho editorial do Suplemento Literário de Minas Gerais, para o qual ela selecionou e indicou ensaios e artigos para publicação, sempre levando em conta o alto nível deles. Minha vizinha, minha amiga, minha conselheira. Minha gratidão.”
Jaime Prado Gouvêa, escritor e diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais, do qual Eneida foi conselheira


Investigação crítica

“Eneida Maria de Souza possuía muitas das qualidades que todos os pesquisadores de literatura deveriam ter: a sensibilidade ao tratar um texto literário, o conhecimento sólido de uma ampla base bibliográfica, o rigor teórico, a busca constante por novas abordagens, um texto gentil e convidativo, claro e profundo, nunca hermético e pedante. Com isso, produziu uma obra diversa, mas que tem como característica essencial uma investigação crítica das modulações do literário e de suas abordagens. Eneida sempre enfrentou o debate teórico em busca de desdobramentos do pensamento, nunca como uma forma de só reafirmar o já consolidado: era uma construtora de saberes. E fez tudo isso ainda com humor, gentileza e disponibilidade tão raros hoje.”
Pedro Kalil, professor e ensaísta

Quatro anos inesquecíveis

“Conheci Eneida Maria de Souza nos anos 1980, quando era estudante de letras, na antiga Faculdade Dom Bosco, de São João del-Rei, hoje Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Posteriormente, nos encontramos na UFMG, nas aulas inesquecíveis no mestrado e doutorado. Congressos, palestras, suas instigantes conferências, as viagens. O programa de mestrado em letras da UFSJ teve a alegria e a honra de contar com a presença de Eneida por meio do Programa Professor Vi- sitante Nacional Sênior. Durante quatro anos, ela esteve na UFSJ: ministrou aulas, orientou alunos de mestrado, participou de inúmeras bancas com riquíssimas contribuições, organizou colóquios e seminários, viabilizou a publicação de livros com artigos dos professores e alunos, criou laços de afeto e amizade, viabilizou pesquisas. Sua atuação foi fundamental na consolidação do programa de mestrado em letras da UFSJ. Mais do que a intelectual, a pesquisadora instigant  conhecida no Brasil e no exterior, o seu trabalho apaixonado pela literatura e crítica da cultura, construímos uma amizade, atravessada por conversas e trocas. Sua generosidade, carisma, inteligência e simplicidade deixam suas marcas em cada de nós que tivemos o privilégio de conhecer a Eneidinha, como alguns alunos do mestrado da UFSJ chamavam-na carinhosamente.”




Maria Ângela de Araújo Resende, doutora em literatura comparada (UFMG) e professora e pesquisadora na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) no programa de mestrado em letras

De Manhuaçu ao doutorado

“Quando fui ao lançamento de ‘Narrativas impuras’, em novembro do ano passado, não sabia que seria a última vez que veria a Eneida. Pensando nisso, lembro-me de quando a conheci em Manhuaçu, por volta de 1984, quando trabalhei no jornal A Vitória, dirigido pela Cibele Souza, irmã da Eneida. Àquela altura, ela já era uma referência para todos nós. Mais tarde, já em BH, tive o privilégio de ser seu aluno no doutorado da Faculdade de Letras da UFMG e trabalhar com ela em alguns projetos, constatando a presença elegante, a mestra sem afetação, o olhar amplo e ge- neroso que marcou gerações de estudantes e professores. Uma trajetória, como ela mesma disse, ‘construída de forma coerente, embora pautada pela diversidade de interesses e motivada pela curiosidade intelectual’.”
Fabrício Marques,  jornalista e escritor, membro do conselho editorial do Suplemento Literário de Minas Gerais

Olhar arguto e sensível

“Eneida Maria de Souza deixa um substancioso legado, tanto no campo das ideias, como educadora e intelectual competente, quanto no campo dos afetos, nos firmes laços de amizade e na delicada atenção que confiava generosamente a alunos e colegas. Seu compromisso com a arte literária lhe permitiu desbravar caminhos inovadores de teoria e crítica (Eneida formou gerações de pesquisadores). E seu olhar arguto e sensível na atividade do ‘saber ler’, em harmonioso consórcio com o trabalho sério e rigoroso, gerou obra publicada que constitui sólido suporte para os estudos literários, que se desdobram em ampla perspectiva no território dos estudos culturais. Lá se foi a amiga, colega, confidente, interlocutora e parceira em cursos, congressos, viagens. Estará sempre presente nos lugares onde morou (Ma- nhuaçu, Belo Horizonte e Paris), como nos outros lugares por onde circulou, Brasil afora e por tantas cidades de países que puderam conhecer e admirar a sua pessoa e o seu trabalho. Saudades hoje e para sempre.”
Nadia Gotlib, escritora, biógrafa de Clarice Lispector 

Encontro definitivo

“Tive o privilégio de ser aluna da Eneida no curso de letras da UFMG; foi uma honra ‘aprender a ler’ com Eneida. Jamais esqueci a aventura que foi fazer um curso sobre Jorge Luis Borges, por meses, e o quanto aquela aventura mudou o meu jeito de ler ficção – e foi pela Autêntica, inclusive, que ela lançou ‘O século de Borges’, em comemoração ao centenário do autor, anos depois. Eneida foi a primeira pessoa que procurei quando desejei abrir uma editora, e foi por meio dela que publiquei o primeiro livro da Autêntica, por isso eu a considerava a madrinha da editora, e dizia isso sempre a ela. Há encontros que mudam a nossa vida para sempre, e o encontro com a professora Eneida foi definitivo.” 
Rejane Dias, fundadora da Autêntica Editora