Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Em coletânea, Philip Roth revisita valores que guiaram trajetória literária


A vantagem do mágico, do ventríloquo, é dizer na sua cara que vai te enganar e você, mesmo sabendo que isso deve acontecer, ainda assim acha tudo muito fascinante no espetáculo. Não é muito diferente da função do escritor. Ele também te engana, você tem consciência de que está sendo enganado, o contrato entre vocês tem regras claras e a verdade é que todo mundo termina mais ou menos contente com a relação. Mas de vez em quando o tipo de ruído provocado por um escritor fica alto demais. 





É o caso do escritor norte-americano Philip Roth, que desde que publicou o primeiro livro de contos, “Adeus, Columbus”, sofreu acusações de antissemitismo e entrou numa roda viva de debates em arena pública. A essas acusações agregou-se mais tarde a de misoginia, aversão a mulheres. Fruto de más leituras, de interpretações pobres e de um clima crescente de desconfiança generalizada, que ergue tarjas de perigo a qualquer aviso de controvérsia potencial.

É preciso coragem para enfrentar a oposição, quando se tem certeza de que se está fazendo a coisa certa. No caso, escrever a respeito da complexidade da vida. Por isso, o lançamento de “Por que escrever?”, que reúne sobretudo trechos dos dois livros de não ficção do escritor, vem em boa hora. Numa entrevista do volume, ele mesmo dá a dica: “Quem quer que busque encontrar o pensamento do escritor nas palavras e nos pensamentos de seus personagens está olhando no lugar errado”. 

Primeiro, um esclarecimento. Logo na abertura do volume, Roth alega que dos 31 livros que publicou, 27 foram de ficção, uma conta intencionalmente embaralhada. Na verdade, há dois claramente de não ficção, “Lendo o que eu e outros escreveram”, que reúne ensaios, e “Entre nós”, uma série de entrevistas de Roth com colegas de profissão e alguns ensaios (um deles absolutamente brilhante e impecável, a respeito de Saul Bellow, a quem Roth admirava muito).



Os outros dois livros que ele coloca na conta, bem, são “Patrimônio”, um relato do fim da vida do próprio pai, e “Os fatos”, uma breve autobiografia “sobre a minha evolução como escritor”, alega. O primeiro pode ser lido como uma manifestação de um dos mais conhecidos alter egos de Roth, justa e provocativamente um certo “Philip Roth”. Os demais alter egos são David Kepesh, que aparece em “O seio”, “O professor de desejo” e “Animal agonizante”, e o mais longevo deles, Nathan Zuckerman, que comparece em nove livros, desde “O escritor fantasma” até “Fantasma sai de cena”, e rendeu alguns dos grandes livros, talvez os melhores, de Roth.

Mas por cinco vezes ele usou a si mesmo ou familiares mais próximos para ficcionalizar a própria vida, começando justamente com “Patrimônio” e indo até “Complô contra a América”. E, portanto, essa conta anunciada pelo escritor não fecha bem. Além disso, no fim de “Os fatos” ele acrescenta uma carta de Zuckerman endereçada a Roth a lhe dizer que não publique a alegada autobiografia, porque o texto está não apenas insuficiente, mas claramente ruim e problemático. O que deixa ao leitor o papel de separar o que é o quê e quem está certo nessa história (e, sim, o livro foi publicado, o que significa que Roth, ou “Philip Roth”, esse peculiar alter ego, se sobrepõe a Zuckerman, cujo recado não foi levado em conta, ou talvez deva ser lido como apenas mais uma diatribe de escritor a exibir talento e criar biombos e disfarces por trás dos quais esconde as verdadeiras intenções).

Não à toa, Roth diz numa entrevista que o que pode ser considerado “pelos ingênuos” como autobiografia pura é “mais provavelmente uma autobiografia falsa, uma autobiografia hipotética ou uma autobiografia grandiosamente ampliada”. Durma-se com a barulheira. 




De volta à ativa

A vantagem clara de “Por que escrever?”, além da reunião de alguns textos fundamentais em que Roth explica os próprios processos e decisões narrativas, está em algumas palestras que profere depois de 2009, quando anunciou que não ia mais escrever, ficção ou qualquer outra coisa. Ora, esses textos de palestras são, de algum modo, a escrita de Roth ainda em atividade, embora não mais como ficcionista praticante, bem mais como memorialista de si.

Na última das palestras, aliás, ele termina lendo um trecho de “O teatro de Sabbath” – em minha opinião, o melhor de todos os seus livros. E na apresentação do volume, o escritor ecoa uma frase de Sabbath, quando deixa uma pedrinha em cima das lápides de seus parentes no cemitério à beira-mar onde se encontram os restos dos familiares. Sabbath diz a seus mortos: “Aqui estou”. Pois Roth o secunda: “Aqui estou, tendo saído de detrás do biombo de disfarces, invenções e artifícios do romance”. Numa entrevista em outra parte, ele diz: “Para mim, o trabalho de escrever significa transformar a loucura do eu na loucura do ele”. 

O primeiro dos textos de “Lendo o que eu e outros escreveram” contido neste volume dá um toque da embocadura especial utilizada por Philip Roth. Chama-se “‘Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum’, ou Contemplando Kafka” e está dividido em duas partes, a primeira delas um ensaio a respeito do escritor tcheco a quem Roth (e qualquer escritor que se preze) admira, a segunda um conto em que ele transforma Kafka num professor severo que ele, menino de nove anos, um dia teve, e que chegou inclusive a ter um breve namoro com uma de suas tias.



Ou seja, a ideia de misturar as instâncias, ficção e não ficção, faz parte do projeto do escritor em qualquer que seja a modalidade em que investe – o que deve no mínimo levantar suspeitas a respeito do que ele diz nas entrevistas. E é importante saber que, quando dava aulas a respeito de Kafka na Universidade da Pensilvânia no mesmo momento em que brincava “com as ideias que se cristalizaram em ‘O complexo de Portnoy’”, isso ajuda a entender o alcance que o livro adquiriu.

Foi o mais vendido e é ainda o mais conhecido da carreira do escritor, em que pese ele ter feito coisas melhores e ainda mais provocativas depois. Há inclusive vários textos dele a respeito especificamente desse romance, além de uma entrevista sobre o assunto concedida a George Plimpton, nada menos que o fundador da revista literária “The Paris Review”. O volume tem, aliás, a entrevista oficial de Roth para a revista, na qual ele comenta que escreve às vezes cem ou mais páginas antes que apareça o parágrafo que será o início do próximo livro. E sim, ele descarta as páginas anteriores sem piedade.

Na parte das conversas com outros escritores, o que se sobressai nem é tanto o contato com nomes do primeiro time, como Primo Levi, Aharon Appelfeld, Ivan Klíma ou Milan Kundera. É a capacidade analítica de se posicionar enquanto parece fazer uma entrevista. Algumas são brilhantes em toda a sua plenitude e desenvolvimento e é importante para saber, por exemplo, o que aconteceu com alguns escritores obrigados a viver sob regime da Cortina de Ferro ou submetidos às agruras de campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Ajuda o fato de Roth ter coordenado a série Escritores da Outra Europa para a editora Penguin, que se concentrou em lançar livros de escritores do Leste europeu. 




Autocontrole a toda prova

A argumentação de Roth como ensaísta é tão brilhante quanto sua prosa de ficção e, no frigir dos ovos, o que se sobressai de tudo é a decisão dele de ter controlado com mão de ferro a própria carreira para emitir, de forma até econômica, os 31 livros que lançou, entre 1959 e 2010. “Por que escrever?” é, não apenas um adendo, um apêndice, com pouco mais de uma dúzia de textos realmente inéditos, mas também um novo ângulo para enxergar a não ficção desse grande prosador, morto em 2018.

Depois de explicar, por exemplo, a repercussão provocada pela única coletânea de contos da carreira, “Adeus, Columbus”, ele lista os adjetivos que recebeu na época: a obra seria “perigosa, desonesta e irresponsável”, segundo seus detratores. Não com enfado, mas na verdade com enorme disposição para luta, ele pondera: “Às pessoas que sentem que finquei meus dentes em suas carnes, é difícil, se não impossível, explicar que muitas vezes elas nem foram mordidas”. Não à toa, ele termina por cunhar uma expressão sintética que dá conta da postura de seus detratores: ele fala em “leitura equivocada imaginativa”. Em outro ponto, afirma que apartada da ficção, “a sabedoria de um romancista não passa de conversa pura”. E como gosta de conversar, talvez de jogar conversa fora. Se bem que ele se comporta como se nada do que diz fosse (e não é) banal.

Nem sempre Roth conviveu com os adversários usando bons modos e moderação. Numa entrevista concedida a Joyce Carol Oates, ele conta a respeito do trabalho que teve para responder, de forma pública e extensa, a toda sorte de acusações que angariou, e que lhe custou muito tempo e empenho. “Fora isso, eu me enfureço e esqueço; e continuo a esquecer até que – milagre dos milagres – esqueço de verdade.”



É interessante pensar que numa resposta concedida nesta mesma entrevista ele termine por responder, indiretamente, a quem lhe acusa de misoginia, quando Oates lhe pergunta se ele gostaria de viver como homem ou como mulher e ainda lhe oferece a possibilidade de assinalar “outro”, que sua opção seria por ambos os sexos: “Como a personagem central de ‘Orlando’ . Quer dizer, sequencialmente, e não ao mesmo tempo”. É esse o papel do escritor, entender a variedade humana. Como ele mesmo diz em outra parte, “estamos escrevendo versões inventadas de nossa vida o tempo todo, histórias contraditórias porém mutuamente entrelaçadas, histórias que, falsificadas de forma sutil ou grosseira, constituem nosso domínio sobre a realidade e são a coisa que temos mais próxima da verdade”. 

A terceira parte é toda constituída por palestras, discursos em prêmios ou para comemorar aniversários. É a parte mais recente e mistura em doses mais ou menos iguais memória, avaliação e nostalgia. Uma vida literária passada em revista pelo mecanismo emocional. Tem ainda a discussão tornada pública, quando Roth tentou corrigir distorções da Wikipédia e os editores exigiram “fontes secundárias”. Meus amigos e amigas, se o autor que escreveu aquelas coisas não puder atestar a veracidade das informações... bem, este é o mundo que afinal Roth ajudou a construir, de desconfianças perpétuas. 

A belicosidade com que precisou enfrentar uma série de adversários ao longo da carreira parece ter desviado um pouco da energia que ele poderia ter empregado escrevendo outros tantos livros. Mas também é verdade que se alimentava de controvérsias, que isso o tornou um dos mais judeus entre os escritores judeus, e, afinal, ele demonstrava gostar de sua dose cotidiana de veneno.



Como um pactuário que aceitou o preço estipulado pelo Diabo, ele precisou enfrentar uma briga que lhe atravessou a vida inteira, o mais longo round de duração. Aliás, o escritor disse que judeus não gostam de virar lutadores de boxe justamente pelo risco de ter a mandíbula quebrada e não poderem mais falar por uns tempos, algo inimaginável. Em contrapartida, Roth pôde embaralhar o quanto quis as marcas fronteiriças entre o real e a ficção, fazendo uso indiscriminado de “gradações expressivas de comicidade”. Não é pouco. O tempo dirá se ele acertou nas escolhas. Na última entrevista recolhida no volume diz que todas as manhãs, durante cinquenta anos, “encarei a página seguinte indefeso e despreparado”. Para concluir: “Foi a obstinação, e não o talento, que salvou minha vida.” Um grande número de fãs discorda que tenha sido só obstinação. 

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília

TRECHO

“Escrever para mim não é uma coisa natural, que eu simplesmente vou fazendo, como um peixe nada ou um pássaro voa. É algo feito sob uma espécie de provocação, uma urgência especial. É a transformação, mediante uma personificação complexa, de uma emergência pessoal num ato público (nos dois sentidos da palavra ‘ato’). Pode ser um exercício espiritual muito exasperante filtrar através do seu ser qualidades que são estranhas à sua constituição moral – tão exasperante para o escritor como para o leitor. O escritor às vezes se usa de modo bem cruel a fim de alcançar o que está, literalmente, mais além dele. O imitador não pode se entregar aos instintos humanos comuns que determinam o que as pessoas querem exibir e o que querem ocultar.”

LINHA DO TEMPO

Os livros de Philip Roth em ordem cronológica. O ano de publicação corresponde ao texto original. Os títulos em inglês são dos livros ainda sem tradução. 

1959  - “Adeus, Columbus”

1962  - “Letting Go”

1967 -“Quando ela era boa” 

1969 - “O complexo de Portnoy”  

1971 - “Our Gang” 

 1972 -  “O seio” David Kepesh (1)

1973  - “The Great American Novel”

1974 - “Minha vida de homem”

1975 - “Lendo o que eu e outros escreveram”*

1977  -  “O professor de desejo” 

1979 - “O escritor fantasma” 

1981  - “Zuckerman libertado” 

1983  - “Lição de anatomia”

1985 - “A orgia de Praga” 

1986 - “O avesso da vida”

1988  - “Os fatos: a autobiografia de um romancista”

1990  - “Mentiras”

1991  - “Patrimônio: uma história verdadeira” 

1993  - “Operação Shylock: uma confissão” 

1995  - “O teatro de Sabbath”

1997  - “Pastoral americana” 

1998  - “Casei com um comunista” 

2000  - “A marca humana”

2001  - “O animal agonizante” 

2001 -  “Entre nós”

2004 - “Complô contra a América” 

2006  - “Homem comum” 

2007 - “Fantasma sai de cena” 

2008  - “Indignação”

2009 - “Humilhação”

2010 -  “Nêmesis”

“POR QUE ESCREVER? — CONVERSAS E ENSAIOS SOBRE LITERATURA (1960-2013)”
Philip Roth
• Companhia das Letras
• Tradução de Jorio Dauster
• 568 páginas
• R$ 89,90 e-book: 39,90