“Viver é muito perigoso.” Publicado em 1956, “Grande sertão: Veredas”, um dos maiores clássicos da literatura brasileira, continua provocando inúmeras reflexões. Possivelmente, João Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, estaria assustado com o momento em que vivemos. É verdade que a vida quer da gente coragem, mas tanto assim? Depois de dois anos de muita tristeza e apreensão provocadas pela COVID-19, a expectativa era de que as coisas entrassem novamente nos eixos. Afinal de contas, graças à vacinação, os números de casos e óbitos provocados pela doença começaram a cair. Porém, logo em seguida, com o mundo ainda convalescente, a Rússia decidiu invadir a Ucrânia. Uma guerra pandêmica em um planeta doente.
Assim como no surgimento do novo coronavírus, quando as pessoas queriam saber o que havia provocado o início do surto da doença e quais poderiam ser as melhores formas de proteção, agora as dúvidas passaram a ser sobre os motivos que levaram o presidente russo Vladimir Putin a iniciar uma invasão ao território ucraniano. Entre as questões apontadas por especialistas estão a possível adesão da Ucrânia à Otan, a aliança militar de 30 países liderada pelos EUA, e o desejo de Putin em restabelecer a zona de influência da extinta União Soviética. Enquanto isso, imagens de mísseis, tanques de guerra e bombas, paralelamente ao desespero de milhares de refugiados que buscavam abrigo em outros países, são divulgadas pelos veículos de imprensa e nas redes sociais.
Infelizmente, a lista de conflitos recentes não é pequena. Ainda está fresca na memória a tomada de Cabul, capital do Afeganistão, organizada pelo grupo Talibã. As guerras do Iraque, da Síria e da Bósnia também são exemplos de crises da história contemporânea. Se pesquisarmos mais a fundo, veremos que, nas últimas décadas, o homem, sistematicamente, vem recorrendo às armas para “resolver” seus problemas. Há cerca de 70 anos, por exemplo, o padrão se repetia: começava a Guerra do Vietnã, que se estenderia por muito tempo. O livro “Vietnã: uma tragédia épica”, do jornalista britânico Max Hastings, lançado no Brasil pela editora Intrínseca, mostra com riqueza de detalhes o que estava por trás de todo esse problema na região.
“Stop, com Rolling Stones / Stop, com Beatles songs / Mandado foi ao Vietnã / Lutar com vietcongs.” Na década de 1990, a versão brasileira da música “Era um garoto, que como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones”, interpretada pela banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, foi um grande sucesso em todo o país. A letra fala de um jovem convocado para servir aos EUA na guerra e que acaba morrendo. Artistas como Bob Dylan, Marvin Gaye, Jim Morrison e John Lennon também gravaram músicas sobre a guerra. Agora, sem os solos de guitarra, mas com a mesma empolgação, Max Hastings contextualiza em uma única obra todo aquele conflito, que provocou a morte de, aproximadamente, três milhões de pessoas.
Tudo começou com a Guerra da Indochina, quando vietnamitas ligados ao Vietminh, um movimento revolucionário, lutaram contra as tropas francesas para colocar fim ao domínio colonial dos europeus na região. Anos depois, com a Conferência de Genebra, ficou estabelecida a independência do Vietnã, um país pobre do Sudeste Asiático, formado por montanhas, florestas e arrozais. O território foi dividido em dois: a capital do Norte era Hanói, aliada à União Soviética. A do Sul, Saigon, alinhada aos EUA. A ideia era que eleições fossem realizadas em 1955 para a unificação definitiva do país, mas a grande rivalidade entre as duas partes deu início a um novo conflito: a Guerra do Vietnã.
O exército norte-vietnamita era composto por guerrilheiros vinculados à Frente Nacional de Libertação, conhecidos como vietcongues, os soldados regulares enviados pelo governo e o apoio da União Soviética. Os sul-vietnamitas também tinham muitos combatentes, além da ajuda de tropas americanas, que ainda ofereciam armas e treinamento. Os dois grupos carregavam características ditatoriais, onde eram frequentes as violações aos direitos humanos. Para ilustrar toda essa batalha, o autor apresenta em “Vietnã: uma tragédia épica” vários relatos emocionantes de guerrilheiros, paraquedistas, estudantes e soldados narrando a situação política da época, o que permite ao leitor mergulhar profundamente em toda a história.
Obviamente, qualquer cenário de guerra é cruel, mas o Vietnã também apresentava dificuldades peculiares. No verão, as temperaturas chegavam aos 49°C e a umidade relativa do ar a 85%. Os homens sofriam muito por causa de doenças como a malária e o beribéri, eram vítimas de úlceras e insônias crônicas. A alimentação sempre foi extremamente precária, muitas das vezes apenas abóbora, espinafre e bananas. Mosquitos, sanguessugas, lacraias e cobras atacavam os dois lados, enquanto soldados febris com roupas encharcadas guerreavam com tiros de AK-47, AR-15 e M-16.
Destruição da natureza
Houve, também, a destruição sistemática da natureza com finalidade tática. Ao todo, cerca de 20 milhões de galões de desfolhantes foram despejados na Indochina, quase metade contaminada com dioxina, “o agente laranja”, produto químico altamente tóxico. O objetivo era privar os comunistas de rotas de comunicação na selva, especialmente nos manguezais ao longo do Rio Saigon. Mas a perversidade não parava por aí: além de ataques com gás lacrimogêneo, granadas e bombas, o napalm, gel composto por líquido inflamável que gruda na pele, foi muito utilizado durante a guerra no país.
“À noite, a floresta era um sem-fim de soluços e uivos carregados pelo vento. Dava para ouvir pássaros gritando como seres humanos. Eles jamais voavam, apenas gritavam entre os ramos. E em nenhum outro lugar era possível encontrar brotos de bambu de cor tão horrível. Aqui, quando escurece, as árvores e plantas gemem em espantosa harmonia. Quando começa essa música fantasmagórica, a alma fica transtornada. Não é um lugar para medrosos”, disse um soldado do exército norte-vietnamita.
O abuso de drogas era um problema que afligia, sobretudo, os mais jovens. Devido ao grande sofrimento, muitos deles se tornavam alcoólatras. Sabendo disso, milhares de adolescentes americanos passaram a criar estratégias para evitar o recrutamento. A corrupção era endêmica no Vietnã do Sul, onde redes de falsificação acabaram se institucionalizando. “Tudo, de cimento a congeladores, veículos, armas e munição estava à venda.” A promoção por mérito, tanto no Exército quanto na vida civil, era praticamente impossível. Oficiais ficavam décadas no mesmo cargo por falta de influência ou de dinheiro.
A guerra custou aos EUA algo próximo de US$ 150 bilhões, bem menos do que a do Iraque duas gerações depois. Porém, o verdadeiro preço não foi pago em dinheiro, mas com o trauma que ela causou. “Muita gente morreu em troca de nada. Todos os monumentos de guerra homenageiam vitórias. O Vietnam Memorial comemora tristeza e desperdício”, diz o jornalista Neil Sheehan. É impossível falar dessa guerra sem lembrar a fotografia de terror e desespero protagonizada por uma menina nua, com o corpo queimado, e que fugia, ao lado de outras crianças, dos efeitos de uma bomba química. A dúvida agora é: qual imagem angustiante ficará da guerra na Ucrânia?
TRECHO
“O comandante do Corpo de Fuzileiros Navais lamenta profundamente informar que seu filho faleceu em 2 de junho de 1968. Ele foi ferido por estilhaços de um bombardeio aéreo amigo que não acertou o alvo. Seus restos mortais serão preparados, encaixotados e despachados sem qualquer custo para os senhores, acompanhados de um escolta, para um funerária ou cemitério nacional de sua escolha. Além disso, os senhores serão reembolsados por gastos não superiores a quinhentos dólares com despesas de funeral e sepultamento. Por favor, informem ao Corpo de Fuzileiros Navais, por telegrama a cobrar, os seus desejos nesse sentido.” No fim daquele ano, milhares de telegramas desse tipo tinham sido recebidos nos Estados Unidos.
Vietnã: uma tragédia épica 1945 -1975
• De Max Hastings
• Tradução de Berilo Vargas
• Editora Intrínseca
• 848 páginas
• R$ 79,90 (impresso)
• R$ 27,48 (e-book)