“– Percebi que o senhor gosta de Bob Dylan – disse, indicando a coleção de CDs.
– Quase tanto quanto droga, uísque, cigarro, rock, blues e sexo.
Ele parou. Peguei um copo d'água e dei a ele. Ele olhou a barata morta na pia antes de aceitar. Mas pegou o copo e bebeu.
– O que mais é a vida, Blue?
– Um tiro curto.
– Tiro curto? Como assim?
– Um tiro curto. Um tiro de revólver calibre 38 à queima-roupa. Um relâmpago.
Um livro curto. Um conto. A vida é um amontoado de tiros curtos. O nascimento. Uma paixão. Uma paixão proibida. Uma paixão não correspondida. Dor. O nascimento de um filho. Uma alegria. Uma tristeza. Um caminho, uma escolha. São tiros curtos que vão formando a vida. O inesperado. A curva na estrada. A cidade. A morte. Uma traição, a tempestade. Um momento bom. Um momento ruim. A noite. A solidão. Esta entrevista. Um momento de luz. Um momento de sombra. Uma notícia no jornal. A raiva. A insanidade. Os tolos pensam que a vida é um tiro longo de rifle, onde se mira no alvo e se dispara na certeza de acertar. Não é. São pequenos tiros curtos. Todos nós damos tiros curtos. E recebemos tiros curtos dos outros. No final, vence quem ficar de pé.
– O senhor continua de pé?
– Ainda, garoto. Pelo menos até a próxima curva. Até vir o carro que vai me atropelar.
– Que carro, Sr. Blue?
– Não sei. Não ainda. Mas já posso ouvir o barulho das rodas.
– E como é o barulho das rodas?
– É como o diabo cantando ópera no inferno.”
É assim que o protagonista de “Tiro curto – Confissões de Johnny Blue”, o primeiro livro do jornalista mineiro Paulo B. Paiva, manifesta sua visão de mundo ao repórter que entrevista escritores que publicaram apenas uma obra de sucesso e sumiram. O autor buscou inspiração em fonte bem original, o escritor americano John Fante (1909-1983). E de tabela em seu principal seguidor, o escritor alemão, naturalizado americano, Charles Bukowski (1920-1994). Fante escreveu uma série de obras autobiográficas, como destaque para “Pergunte ao pó”, na qual seu alter ego, Arturo Bandini, é um escritor fracassado, afundado em dívidas, que vive um inusitado romance com uma garçonete mexicana que sonha conhecer um americano rico, mas esbarra num homem miserável, em todos os sentidos da palavra.
“Pergunte ao pó” foi “ouro no lixo” para Bukowski, em sua própria definição, depois de encontrar um exemplar do livro na Biblioteca Pública de Los Angeles. Ele inspirou parte de suas obras em Bandini para criar um dos seus protagonistas, Henry Chinaski, beberrão, briguento, que pula de emprego em emprego e de mulher em mulher. Bukowski revela essa influência em “Pedaços de um caderno manchado de vinho”, livro em que mostra sua atração por Bandini e que marcou, definitivamente, sua literatura visceral, escrachada e ácida, sempre com pitadas autobiográficas.
Pois, agora, Belo Horizonte também tem sua espécie de Bandini e Chinaski na pele de Johnny Blue. É um jornalista de meia-idade, abandonado pela mulher, que vive no baixo Centro da cidade, na região da Praça Raul Soares, literalmente mergulhado no fracasso dentro de uma quitinete imunda na Avenida Augusto de Lima, regado a sexo, uísque (é claro, afinal seu nome de guerra é Johnny Blue) falsificado, cocaína, maconha e cigarro, sempre no embalo de rock e blues, estimulado nada menos do que pelas canções de Bob Dylan e um painel rasgado na parede com a foto de Edgar Allan Poe e uma versão de sua obra máxima, “O corvo” e seu mantra “Nunca mais”, uma expressão que vira maldição em sua vida, porque não consegue mais escrever e vive de frilas e bicos.
Com frases curtas e diálogos enxutos, sem rodeios, indo direto ao ponto, isto é, como um tiro curto, Paulo B. Paiva consegue prender a curiosidade do leitor do início ao fim das 199 páginas com a conturbada e inacreditável sina de Johnny Blue, escritor de um livro de sucesso há mais de 20 anos e só. Enquanto tenta escrever algo que preste de novo, é descrente da vida e do amor, mas viciado numa paixão fatalista pela prostituta Melinda, que apenas faz sexo, e a quem pretende dar uma vida melhor. Blue tem paixão, não amor, porque neste ele não acredita: “O amor é uma grande merda. Não serve para nada. É um conceito superestimado para medir outros conceitos superestimados e inventados pelo homem”, diz.
Sua vida é um inferno e o diabo seu interlocutor. “O diabo mora na Raul Soares. Mora nas ruas da cidade. Mora em qualquer lugar onde tenha uma alma fracassada e cansada da vida. O diabo nunca sai de férias e, ao contrário de Deus, não descansa nem no sétimo dia”, afirma Blue ao repórter, garantindo que, quando está “cheirado”, bebe com o diabo, que não tem chifre nem rabo, usa terno branco e gomalina no cabelo e fuma charuto. Fracassado e endiabrado, o que sobra então para esse homem desiludido se o amor e a vida não têm o menor sentido? Seriam as músicas de Bob Dylan, que ele sempre está curtindo em sua quitinete? Ele segue ouvindo o cantor e compositor americano: “It's all over now, Baby Blue... Strike another match, go start anew.” Está tudo acabado. Acerte outro lance. É o que resta a Johnny Blue para sobreviver. Será que ele consegue? Sem spoiler.
TRECHO DO LIVRO
“– O mundo acredita no amor. Estão todos errados?
– Acho que não estamos falando do mesmo mundo, garoto. No mundo em que vivo não há amor. Há pessoas vazias e estúpidas que precisam de um preenchimento. Precisam de conforto para suas vidas mesquinhas. Precisam partilhar suas almas pequenas em outras almas pequenas.
– O que então move o mundo?
– A imbecilidade. Todos os dias, bilhões de pessoas se levantam fazendo sonhos e traçando planos. Até vir a morte e acabar com tudo. Bilhões de pessoas são movidas por vaidades tolas. Algumas, mais espertas, tentam aproveitar as coisas boas, como o sexo. Até ficarem velhas ou doentes e morrerem podres. No fim acabamos todos debaixo da terra. Isso é a vida. Tiros curtos.
– O que move Johnny Blue? O que o faz levantar-se todos os dias?
– O sol. Quando o sol bate na minha cara, eu acordo. Posso virar para o lado e dormir ou me levantar e beber. Tanto faz.
– Não há mais nada no mundo, além disso?”
TIRO CURTO
Confissões de Johnny Blue
• De Paulo B. Paiva
• 199 páginas
• Editora Viseu
• RS 43 (impresso)
• R$ 10 (digital)
• Venda: Amazon e www.editoraviseu.com.br
ENTREVISTA
PAULO B. PAIVA
Jornalista e escritor
Johnny Blue é o alter ego de Paulo B. Paiva como Arturo Bandini é o de John Fante em “Pergunte ao pó” e Henry Chinaski o é de Bukowski?
Bandini e Chinaski são 100% alter egos de Fante e Buk. Blue pode ser considerado um alter ego, mas não 100%. Digamos que é 70%, principalmente na forma cinzenta de ver a vida, na descrença, no pessimismo. Mas os atos dele são puramente ficcionais.
Johnny Blue é o suprassumo dos uísques. O personagem do livro é culto, mas devasso, bebe uísque falsificado, vive na lama, entre sexo e drogas. Não é um pouco demodê esse modelo hoje em dia?
Não acho que Blue seja demodê. É muito mais comum que imaginamos. É possível encontrar alguns Blues numa simples rodada pelo baixo Centro de BH
“O amor é uma grande merda. Não serve para nada. É um conceito superestimado para medir outros conceitos superestimados e inventados pelo homem. A vida não tem sentido algum.” É o que diz Johnny Blue ao repórter. Blue, então, é uma grande contradição, só discurso da boca pra fora? Menospreza o amor, mas é capaz de matar por ele?
Blue não é contraditório. Ele não ama Melinda. O que ele sente por ela é uma paixão e, mais que isso, ele vê nela e na vontade de tirá-la da prostituição a sua própria redenção na vida de merda em que ele vive. Uma forma de deixar o inferno menos incandescente.
Em seu mais famoso livro, “Cleo e Daniel”, o escritor e psicanalista Roberto Freire diz que “é o amor o contrário da morte, não a vida”. Dessa forma, então a vida teria sentido e Johnny Blue seria uma espécie de herói da resistência?
Blue está se lixando pra vida e para o amor. Não o vejo como herói de nada, nem da resistência. Ele é só um fracassado num mundo de fracassados.
“Somos todos personagens. Definimos um papel, um personagem do que seremos na vida. Às vezes, desempenhamos mais de um papel. Um para cada gosto. Deixamos nosso lado verdadeiro enterrado nas sombras. Somos todos assim.” É o que diz também Johnny Blue na entrevista, confessando ser personagem de si mesmo. O amor também desmascara todo mundo, inclusive Blue?
Blue não ama verdadeiramente. Ele simplesmente é tomado por um misto de paixão e redenção. Ele assume sua miséria. Ele já não usa mais máscaras.
“Os tolos pensam que a vida é um tiro longo de um rifle, onde se mira no alvo e se dispara na certeza de acertar. Não é. São pequenos tiros curtos. Todos nós damos tiros curtos. E recebe os tiros curtos dos outros. No final, vence quem ficar de pé.” Afinal, o que seria um tiro curto. Uma vida sem rodeios? Arriscar-se? Matar ou morrer?
Tiros curtos são os pequenos fatos e acontecimentos que nos bombardeiam todos os dias. E pode ser que a sequência, a continuidade dos pequenos fatos, nos levem a matar ou morrer. Quem sabe?