Cesare Pavese não é um nome novo para nós. Figura plural, intelectual central do panorama italiano no século 20 pelas múltiplas e interligadas atividades desenvolvidas ao longo de seus 42 anos de vida, além de escritor, poeta, consultor da Einaudi (importante editora italiana), teve um papel importante de mediador da literatura em língua inglesa, ao lado de Elio Vittorini.
Nos anos pesados do fascismo, traduzir e olhar para a literatura americana representava um desvio, talvez necessário, para se voltar depois para as questões mais localizadas dentro da Itália. Mesmo sem nunca ter se deslocado para a América, é nesse mundo “outro” que ele e outros encontram possibilidades de viagens, mediadas pela literatura e pela tradução. Como o próprio Pavese afirma, num artigo de 20 de maio de 1945, “nos nossos esforços para compreender e para viver sorriram para nós vozes estrangeiras”. Pavese foi tradutor de Melville, Defoe, Dickens, Stein, dos Passos, S. Lewis, Joyce.
A experiência do regime, da guerra e da resistenza são indeléveis, como se lê também em narrativas como “A lua e a fogueira”, em que aparecem as famosas colinas de sua região natal (Langas, perto de Turim), repletas de cadáveres que pareciam quase não suportar a sepultura. As mortes existem, elas estão ali, basta procurá-las.
Descrição que também ecoa na “Trilha dos ninhos de aranha”, de Italo Calvino, no poema “Os companheiros que correram na frente; em “Vocativo”, de Andrea Zanzotto, e em tantos outros textos que tratam da espoliação violenta causada pela guerra e da relação entre orgânico e inorgânico que ela mesma impõe. Já em 21/11/1937, lê-se no diário do próprio Pavese: “Se é verdade que a gente se acostuma à dor, por que com o passar dos anos sofre-se cada vez mais?”.
Descrição que também ecoa na “Trilha dos ninhos de aranha”, de Italo Calvino, no poema “Os companheiros que correram na frente; em “Vocativo”, de Andrea Zanzotto, e em tantos outros textos que tratam da espoliação violenta causada pela guerra e da relação entre orgânico e inorgânico que ela mesma impõe. Já em 21/11/1937, lê-se no diário do próprio Pavese: “Se é verdade que a gente se acostuma à dor, por que com o passar dos anos sofre-se cada vez mais?”.
O perfil sinuoso das colinas é uma das paisagens mais marcantes em sua obra. Há nessa escrita uma relação intensa com a paisagem e com o landscape. É Natalia Ginzburg, escritora e companheira de trabalho na Einaudi, quem vai sublinhar esse aspecto na descrição que ela oferece do amigo, pelas lentes do território: “[...] nossa cidade é melancólica por natureza”.
Duas traduções
Em 2022, completam-se 70 anos da morte de Pavese e, com os direitos liberados, algumas editoras aproveitam para lançar novos títulos ou relançar traduções de sua obra, como é o caso da Companhia das Letras com “Trabalhar cansa”, que havia sido publicado numa dobradinha pela 7Letras e CosacNaify em 2009, com tradução de Maurício Santana Dias, e um aparato de grande relevância, inclusive o texto assinado pelo tradutor.
E esse livro de estreia na poesia de Pavese chega, agora, também pela recentíssima Colenda, de Brasília, na tradução de Andréia Riconi: pode-se dizer que é um luxo duas traduções de uma mesma obra! A tradução é a sobrevida do texto, poderíamos pensar com Walter Benjamin, ou seja, é um retorno que é diferença e recarga de vida.
Mas também podemos dizer com Steiner, toda tradução é insuficiente, é uma aproximação com muitas tangentes, que possibilitam inúmeras incursões – inclusive contingenciais – na leitura de um texto. A edição da Colenda traz um apêndice com os textos que fazem parte da história de “Trabalhar cansa”, “O ofício do poeta” e “A propósito de certos poemas ainda não escritos” – já presentes na edição de 2009.
E esse livro de estreia na poesia de Pavese chega, agora, também pela recentíssima Colenda, de Brasília, na tradução de Andréia Riconi: pode-se dizer que é um luxo duas traduções de uma mesma obra! A tradução é a sobrevida do texto, poderíamos pensar com Walter Benjamin, ou seja, é um retorno que é diferença e recarga de vida.
Mas também podemos dizer com Steiner, toda tradução é insuficiente, é uma aproximação com muitas tangentes, que possibilitam inúmeras incursões – inclusive contingenciais – na leitura de um texto. A edição da Colenda traz um apêndice com os textos que fazem parte da história de “Trabalhar cansa”, “O ofício do poeta” e “A propósito de certos poemas ainda não escritos” – já presentes na edição de 2009.
A edição italiana de “Lavorare stanca” é de 1936, quando Pavese estava no confinamento acusado de antifascismo, e não recebeu muita atenção da crítica, o que se dá só a partir da segunda edição, em 1943. Na escolha por uma “poesia-conto” – adversa ao hermetismo –, com versos longos, com tipos de personagens, as temáticas giram em torno da antítese cidade-campo, do mundo do proletariado, do sexo, de certo sentimento de desolação, com pitadas rea- listas e mítico-simbólicas, que aparecem inclusive em outros livros.
“Verrà la morte e avrà i tuoi occhi”, volume publicado póstumo, em 1951, dividido em duas seções, com 20 poemas, sai por duas editoras, a Jabuticaba e a K casa editorial. “A morte virá e terá seus olhos” é a tradução da K casa editorial, a cargo de Francisco De Matteu e Cristiano Passos. Já em circulação e com tiragem reduzida a 100 exemplares, o livro conta com a introdução de Mariarosa Masoero (responsável por obras de Pavese na Itália) e contém fotos que ela mesma cedeu de seu arquivo pessoal. O projeto tradutório é um desafio ao problematizar a tradução da segunda pessoa, o “tu”.
“Virá a morte e terá os seus olhos” é o título da Jabuticaba, na tradução de Elena Santi e Cláudia Alves. A edição traz três cartas endereçadas a Bianca Garufi e Constance Dowling, que também está presente no diário do poeta (6/3/50) e é seu último amor.
O título do livro cita o primeiro verso de um poema que trata da inevitabilidade da morte, vista por meio dos olhos da artista americana C. Dowling. Para uma parte da crítica, o tom desses poemas já aparece no final de alguns textos de “Trabalhar cansa”.
Antologia de microcontos
E teremos também a prosa de Cesare Pavese, porque os volumes de poesia chegam acompanhados de uma antologia de microcontos e do diário, que é talvez o grande livro. “Trabalhar é um prazer” é a antologia que reúne 14 microcontos, escritos entre 1941 e 1942, com lançamento previsto para abril pela 7Letras.
Esses microcontos retomam as atmosferas da poesia e narrativa pavesiana e ainda fazem um contraponto, uma espécie de passagem entre “Trabalhar cansa” e “Virá a morte e terá os seus olhos”. A solidão do confinamento em Brancaleone Calabro (que é quando começa a escrever seu diário), os campos de trigo, as videiras, as colinas estão ao lado das sensações da primeira juventude, das concreções memoriais de símbolos infantis. Essa tradução contou com a colaboração de vários tradutores e a organização ficou a cargo de Francisco Degani.
Esses microcontos retomam as atmosferas da poesia e narrativa pavesiana e ainda fazem um contraponto, uma espécie de passagem entre “Trabalhar cansa” e “Virá a morte e terá os seus olhos”. A solidão do confinamento em Brancaleone Calabro (que é quando começa a escrever seu diário), os campos de trigo, as videiras, as colinas estão ao lado das sensações da primeira juventude, das concreções memoriais de símbolos infantis. Essa tradução contou com a colaboração de vários tradutores e a organização ficou a cargo de Francisco Degani.
São livros e traduções que vão formando uma teia: cicatrizes da guerra, das relações pessoais, imaginário e imagens da infância e adolescência que passam de uma escrita para outra modificam-se e refazem-se. Tudo isso se entrelaça com a escrita mais íntima, desviante que é aquela do diário: “O ofício de viver”, que também está chegando na tradução de Davi Pessoa, pela Cultura e Barbárie, no segundo semestre.
A primeira tradução do final da década de 1980 é de Homero Freitas de Andrade, para a Bertrand Brasil. As anotações do diário iniciam no final de 1935 e se interrompem em 18/8/1950, um dia antes do suicídio. As folhas encontradas numeradas, organizadas por I. Calvino, M. Mila e N. Ginzburg para a sua primeira edição em 1952, na Itália, tocam em temas como a reflexão sobre a poesia e a relação com a prosa, sobre a própria escrita, o sofrimento, a visão da realidade racional e laica, anotações de leituras feitas, a cidade de Turim.
Todas essas publicações ajudam a delinear um retrato quebrado – sempre insuficiente –, que expõe o salto profundo nas intempéries, nas formas de tentar se reencontrar. Enfim, tetos também incômodos, vistos muitas vezes pelo filtro de uma simbologia da origem perdida, que se inscreve e pulsa nas diferentes incursões da escrita de Cesare Pavese.
* Patricia Peterle é crítica literária, tradutora, professora de literatura italiana da UFSC, autora de "no limite da palavra" (7Letras, 2015) e "A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni" (Rafael Copetti Editor, 2017)
“A morte virá e terá seus olhos”
Cesare Pavese
Edição bilíngue
Tradução de Francisco De Matteu, Daniel Delatin e Cristiano Passos
Coleção Outro Lugar
Casa editorial K edições
104 páginas
R$ 30 + postagem
Encomendas: casaeditorialk@gmail.com
“Trabalhar cansa”
Cesare Pavese
Companhia das Letras
Tradução de Maurício Santana Dias
384 páginas
R$ 74,90; e-book: 39,90
“Trabalhar cansa”
Cesare Pavese
Colenda
Tradução de Andréia Riconi
192 páginas
R$ 37,90