“De tudo fica um pouco. Não muito.” O verso do amigo Carlos Drummond de Andrade foi escolhido por Lygia Fagundes Telles para ser uma das epígrafes de “As horas nuas”, romance lançado em 1989. A obra da escritora, contudo, desmente o poeta. De tudo o que Lygia deixa após a sua morte, no último domingo, muito permanecerá nas lembranças e nas emoções dos admiradores da escritora e das colegas de diferentes gerações que concederam depoimentos para esta edição especial do Pensar em homenagem a uma das maiores escritoras de todos os tempos.
No posfácio da edição de “Os contos” (2018), que reúne todas as histórias curtas da escritora, Walnice Nogueira Galvão destaca a força do olhar da autora: “É inclemente, impiedoso, lúcido, não isento de compaixão, mas sem permitir que se turve a lucidez; com ela nada de piegas, de sentimental, de lacrimoso – ela é dura e sagaz em seus diagnósticos”, analisa a crítica literária em “O olhar de uma mulher”, classificando Lygia como uma “cortante observadora da relação entre as pessoas”.
Outra especialista em literatura brasileira, Stefania Chiarelli destaca o talento de Lygia para batizar seus livros com títulos “que convocam e ao mesmo tempo intrigam”. “Engenhosa na criação de imagens, a escritora oferece uma constelação de palavras que segue pulsando, significando”, observa a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Talvez porque exista um movimento ali: horas nuas, bolhas de sabão, cirandas, bailes, luas crescentes, sombras, aquários, caçadas. Um mundo que Lygia coloca em ação, nos convidando a participar dessa prosa que atravessou mais de cinco décadas absolutamente viva, já que ela teve e tem leitores, desejo explicitado em várias entrevistas”, complementa.
Stefania Chiarelli faz uma observação importante em relação ao uso da expressão “grande dama” para denominar Lygia Fagundes Telles. “Essa alcunha não ajuda muito: hierarquiza, coloca no pedestal, e na realidade ela está próxima, como se percebe na forma como muitas pessoas se manifestam agora. Cada um de nós tem sua Lygia – um conto preferido, uma cena biográfica, uma memória de leitura em que ela se faz presente”, pontua, elegendo “As meninas” como um dos livros que permanecem na memória.
Voltemos à voz da autora para compreender a gênese do romance citado por Stefania. Também ganhador do Prêmio Jabuti, “As meninas” é um dos primeiros romances brasileiros a reproduzir uma cena de tortura durante a ditadura militar: “Comecei a planejar esse livro em 1970. Como eu poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970?”, afirmou Lygia a O Estado de S. Paulo, em 1995. “Somos testemunhas e participantes deste tempo e desta sociedade com todos os seus vícios e raras virtudes”, complementou a escritora: “Uns lutam com o cimento armado, com as leis. Outros, com os bisturis. Com as máquinas – tantas e tão variadas lutas. Eu luto com a palavra. É bom? É ruim? Não interessa, é a minha vocação”. Sobre a construção da identidade das protagonistas do livro, ela revelou: “Parti da realidade para a ficção. Sei que, em estado bruto, as minhas meninas existem, estão por aí. O amor teve uma importância definitiva na estrutura das personagens principais que são jovens e amam e desamam e nesse desandar emocional fui também me comovendo, mas sem perder as rédeas no galope, um galope perigoso porque poderia descambar para o sentimentalismo.”
Ao lado, alguns trechos de entrevistas e de depoimentos que ajudam a reconstituir a trajetória literária da paulistana Lygia Fagundes Telles (“Sou uma escritora urbana”, fazia questão de frisar) e a entender a origem de suas histórias, invenções, memórias e espantos. Com um alerta: compreender é possível, decifrar é desaconselhável. Melhor se render ao encanto e ao assombro. Porque, na noite mais escura, se houver um livro de Lygia, haverá mistério. E não haverá solidão.
O último mistério
Lygia Fagundes Telles, que morreu no domingo passado, teria 103 anos, e não 98, como era divulgado. Dois dias depois da morte, o genealogista Daniel Taddone, conforme ele revelou ontem em suas redes sociais, divulgou fotos de documentos da escritora, como a certidão de seu casamento com o primeiro marido, Gofredo Telles, em 17 de abril de 1947, na qual consta que ela nasceu em 19 de abril de 1918, e não em 19 de abril de 1923. A Academia Brasileira de Letras, que também registrava 1923 como data oficial, divulgou nota informando que a “escritora preferia manter a discrição”.
Lygia sobre Lygia
Chão da infância
“Comecei a escrever quando aprendi a escrever – tinha sete, oito anos? E se falo naquele tempo descabelado, selvagem é porque acho importante o chão da infância.”
Verde e vermelho
“Sou do signo de Áries, domicílio do planeta Marte. A cor do meu signo é o vermelho (a guerra), mas também aposto no verde. A minha bandeira (se tivesse uma) seria metade vermelha, metade verde, o verde da esperança de mistura com a paixão não destituída de cólera: sou uma escritora do Terceiro Mundo.”
Ofício e condição
“Sou escritora e sou mulher – ofício e condição duplamente difíceis de contornar, principalmente quando me lembro como o país (a menta- lidade brasileira) interferiu negativamente no meu processo de crescimento profissional.”
Libertação pessoal
“Eu era reprimida, tímida em meio à imensa carga de convenções cristalizadas na época. Penso que minha libertação foi facilitada durante as extraordinárias alterações pelas quais o Brasil passou desde a minha adolescência até os dias atuais.”
Espécies em extinção
“Em 1982, no meu livro ‘A disciplina do amor’ escrevi num fragmento que há três espécies de processo em extinção: a árvore, o índio e o escritor. Mas resistimos, testemunhas e participantes deste tempo e desta sociedade com o que tem de bom e de ruim. E tem ruim à beça.”
Origem da inspiração
“Algumas das minhas ficções se inspiraram na simples imagem de algo que vi e retive na memória, um objeto, uma casa, uma pessoa... Ou- tros contos (ou romances) nasceram de uma simples frase que ouvi ou mesmo disse e lá ficou registrada na minha natureza mais profunda.”
Verdade e invenção
“Tantas vezes me esforcei por esclarecer alguns pontos mais obscuros e confesso que acabei fazendo ficção em cima da ficção, ah, o intangível mistério com seu grão de imprevisto e de loucura. Sei que a ficção vira realidade e a realidade vira ficção. Se inventei este depoimento, essa invenção agora é verdade.”
Trechos do depoimento “No princípio, era o medo”, incluído na edição de “Invenção e memória” (Companhia das Letras)
Cachoeira e artesanato
“Escrevo de uma vez. Quando vem, sai assim encachoeiradamente, com muita paixão. Depois deixo dormir, deixo amadurecer como um fruto amadurece. Em seguida, eu volto e retorno. Esse seria como um trabalho de artesanato. O primeiro impulso é importantíssimo que fique gravado como eu escrevi. Depois, então, eu tiro uma palavra aqui, corto outra ali adiante, acrescento uma, substituo outra. É justamente como um artesanato.”
Rotina de escrita
“Não tenho rotina nenhuma. Sou uma indisciplinada. Mas não escrevo diariamente. Às vezes, escrevo seguidamente sem parar. Depois faço pausas, aí entro novamente. É aquilo que o Eclesiastes dizia: Tudo depende do tempo e do acaso. Muitas vezes estou cansada porque fui a uma festa ou a um compromisso, mas me dá aquela vontade desesperada de escrever. Então eu deixo tudo e lá vou. Eu sei que é preciso pegar aquele instante quente, como no amor. Acho que escrever é um ator de amor. E o amor não pode ser adiado.”
Sem inocência
“Cada livro meu é uma forma de prestar, de uma forma ambígua, um serviço ao meu país. Tenho procurado, por caminhos tortos, fazer as minhas denúncias. Meu texto é comprometido. Não é inocente.”
Quebra-cabeça
“Eu estou nas minhas personagens. Se quiserem fazer minha biografia, basta expor minhas personagens como num jogo de puzzle. Você vai juntando os pequenos blocos, vai compondo, vai encaixando. Talvez dê um quadro com mais ou menos o meu perfil.”
Vencer o medo
“Eu falo muito do medo. Medo da morte, da loucura, medo do amor. Tem sempre essa vontade de vencer o medo. Porque o medo avilta, o medo enfraquece.”
Trechos de entrevista concedida a Sérgio de Sá e publicada, em março de 1998, na série “A arte de escrever”, do Correio Braziliense