A honra de uma amizade
“É uma amizade dedicada, só me deu alegrias essa amizade, e muita honra. Foi uma amizade que me deu muita honra porque foi recíproca e de grande lealdade, ambas amávamos a literatura, um amor tão bonito por essa arte extraordinária que se reveste de grande humanismo. Acho que Lygia Fagundes Telles, além da grande escritora que ela é, porque a obra fica, foi um ser exemplar, digna, leal ao Brasil, uma grande cidadã. E era uma pessoa que tinha um espírito cívico, tinha noção do que é uma pátria, uma nação. Ela ingressou, com todas as glórias e pompas, no panteão da pátria. Um país tão carente quanto o Brasil de grandes feitos e vidas exemplares que deixam lastro nas novas gerações… Lygia é capaz de deixar esse patrimônio, essas pegadas históricas.
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Os contos de Lygia são primorosos. O conto é muito difícil; para atingir a culminância de qualquer obra, tem que ser um escrito de exceções. Além de dominar a língua, tem que ter uma capacidade extraordinária de ver a realidade de forma singular. A boa literatura combina a visão do mundo, a visão da realidade e uma linguagem adequada, original, imageticamente original, com extremo bom gosto literário. E Lygia tinha filigranas estilísticas, combinava certa transparência do real com o concreto brutal da realidade. O texto dela podia ser fino e cruel ao mesmo tempo. Quando criamos o primeiro manifesto da sociedade civil contra a ditadura e censura, o Manifesto dos 1000, precisávamos entregar o documento em Brasília, ao então terrível (ministro da Justiça) Armando Falcão. Ela aceitou ir comigo, Hélio Silva e Jefferson de Andrade. Ela foi corajosa, porque não sabíamos como seríamos recebidos. Fomos com muita coragem e irmandade. O convívio dela na Academia (Brasileira de Letras) foi fantástico. Ela e Jorge Amado foram as pessoas que me estimularam a me candidatar. Devo meu ingresso na Academia inicialmente aos dois. Só posso me despedir dela emocionada, pensando o quanto nós brasileiros devemos agradecer a ela todo o patrimônio que nos deixou com a obra e a personalidade que foi.”
Nélida Piñon, autora de “A república dos sonhos”
A marca da elegância
“Penso que a obra de Lygia é fundamentalmente marcada pela elegância. Sem deixar de tratar de temas complexos, como o abandono, a solidão e o feminismo, ela consegue manter, ao longo de seus contos e romances, uma sutileza na linguagem, pouca adjetivação, concisão e quase nenhum transbordamento. Isso se demonstra também na precisão com que ela sabia escrever contos, um gênero que a caracterizou sobremaneira. Suas narrativas curtas são redondas como a bolha de sabão, de que ela fala num de seus contos mais conhecidos. Penso que ela é uma espécie de contraparte de Clarice Lispector, de quem foi amiga, porque aquilo que Clarice explora com a verticalidade do subjetivo e do misterioso, Lygia também aborda, mas com mais objetividade e clareza. É como se as duas partes fossem necessárias para uma compreensão da alma humana e, principalmente, da alma feminina.”
Noemi Jaffe, autora de “Lili: novela de um luto”
Nenhuma palavra sobra
“Eu penso em Lygia e vejo o sorriso, por vezes a gargalhada. A liberdade que só quem se sabe uma grande escritora pode ter. Me lembro do espanto ao descobrir ‘Antes do Baile Verde’, a aula de escrita que esse conto é: nenhuma palavra sobra, nenhum ponto fora do lugar. Ali, e em tudo o que Lygia escreveu, as construções são cuidadosamente pensadas, o mistério na medida certa, o lapidar de todas as frases, para se conseguir o efeito exato que ela sempre conseguiu: o impacto de uma história contada com perfeição. Lygia ensinou isso. É genial, é necessária, é absoluta. E nem assim precisou subir num pedestal, a aura inatingível daqueles escritores que sabem que escreveram o que vamos ler para o resto das nossas vidas. Celebremos essa vida com leveza, ainda que a sua obra não tenha sido nada disso. Todo texto na sua medida, sem concessões ao leitor, sem atalhos banais, e, ao que parece, sem sofrimento. Com a maestria e a ousadia de uma mulher que sempre soube onde ia.”
Marcela Dantés, autora de “Nem sinal de asas”
A fúria da delicadeza
“Me leia enquanto estou quente. Esse é o pedido que Lygia Fagundes Telles fez aos leitores em 1977, no fim de uma entrevista concedida à sua amiga Clarice Lispector, que morreria mais tarde nesse mesmo ano. Além do erotismo latente nesse chamado, há a ideia de valorizar quem escreve em vida – e nisso, acredito, Lygia teve absoluto sucesso. Lida e celebrada em vida como poucas escritoras, a herança que ela deixa pra nós que escrevemos é imensa, incalculável. O projeto estético de Lygia Fagundes Telles tem um trunfo muito seu: ela organiza a linguagem até atingir um impressionante caos exato. Literatura é a ordem desordenada, e Lygia domina como ninguém o equilíbrio preciso entre tensões: ordem & desordem, dever & prazer, encontro & desencontro. As personagens lygianas andam nessas cordas bambas com elegância, conscientes tanto do medo de altura quanto da graça em cair. Declaradamente feminista e socialista, ela nunca teve medo de se posicionar politicamente, sempre tocando em problemas sociais em suas obras, mesmo correndo o risco da censura durante a ditadura militar. Quando falava do seu ofício, lembrava sempre do pai jogador, que, apesar de perder continuamente, dizia: amanhã a gente ganha. Jogadora implacável na fúria de sua delicadeza, Lygia Fagundes Telles se foi, mas o legado que ela deixa é a sua derradeira vitória. É o jogo, é o jogo.”
Bruna Kalil Othero, autora de “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas”
A luz que não se apaga
“Pessoalmente, para minha sensibilidade leitora, é uma escritora do meu coração e minha mente. Amo e admiro sem restrições e com entusiasmo — e continuo falando dela no presente, pois é eterna. Discretíssima nestes tempos midiáticos; o fato de estar longe dos holofotes não a diminui. Sua luz própria não se apaga, está cada vez mais forte.”
Ana Maria Machado, autora de “Bisa Bia Bisa Bel”
A potência máxima da linguagem
“Na literatura, dar títulos também é uma arte, como nos mostra Lygia Fagundes Telles. Repare como são imagéticos e sugestivos alguns de seus títulos: ‘A estrutura da bolha de sabão’. ‘Antes do baile verde’. ‘Seminário dos ratos’. ‘Meia-noite em ponto em Xangai’. ‘Crachá nos dentes’. ‘Durante aquele estranho chá’. ‘A noite escura e mais eu’. Isso aponta uma escritora que não desperdiçava nada, sempre incansável na tarefa de tirar da linguagem e da forma a sua potência máxima. O narrador de um de seus contos, ‘Verde lagarto amarelo’, diz em certo momento: ‘Asim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto’. Nem sempre a opinião de um narrador reflete a opinião do autor, mas aqui creio ser Lygia quem falava. Quis ir até a alma. E como conseguiu.”
Giovana Madalosso, autora de “Suíte Tóquio”
Aprender a amar
“Sinto-me privilegiada porque, no ano em que ganhei o Jabuti, a homenageada era a Lygia e eu pude vê-la ao vivo, cumprimentá-la, vê-la falando. Fico muito feliz de ter podido escrever ao mesmo tempo que ela, de ter sido influenciada pelos contos especialmente dela, por aprender a amar a literatura com as coisas que ela escrevia. Me lembro do meu espanto ao ver a Lygia sentada duas fileiras à frente de onde a gente estava. Foi bem emocionante.”
Natália Borges Polesso, autora de “A extinção das abelhas”
Corajosa e consistente
“Lygia Fagundes Telles foi uma escritora magnífica, que se dedicou intensamente à literatura desde muito cedo e construiu uma obra corajosa e consistente. Conheci seus livros ainda na adolescência, quando passei a cultivar uma enorme admiração por ela e tudo o que escrevia. Foi ao ler “Ciranda de pedra” que escrevi minha primeira resenha para um jornal estudantil que criamos em Patos de Minas, no final dos anos 1970. O romance “As meninas” também teve uma presença incisiva em minha formação, sobretudo por seu viés revolucionário. É impressionante sua habilidade em sondar os meandros psíquicos de suas personagens, com uma destreza ímpar no manejo da narrativa. Ela foi também uma exímia contista. Permanecerá viva em meu imaginário e no de quem teve o privilégio de ler sua obra.”
Maria Esther Maciel, autora de “Pequena enciclopédia de seres comuns”
Exata e sensível
“Lygia Fagundes Telles foi uma das minhas primeiras paixões literárias, é de uma época em que mulheres na literatura eram minoria e que não havia muitos modelos para quem estava começando e queria escrever. Uma das coisas que aprendi com a literatura dela foi que sempre me fascinou essa capacidade que ela tinha, de forma muito aparentemente simples, de falar de coisas muito complexas e criar climas, ambientes, como se houvesse uma espécie de cenário ou de música ambiente, ou de uma peça teatral onde aqueles personagens caminhavam e era sempre muito vívido, muito imagético. Ela foi para mim, uma luz que guiava um caminho muito difícil e com poucas vozes de mulheres que pudessem abrir caminhos, guiar, servir como modelo e ajudar a gente que estava começando a pensar ‘para onde quero ir?’, ‘quais são as possibilidades?’. Além disso, acho que ela falava muito de temáticas relacionadas a esse olhar para esse mundo das mulheres de uma forma tão exata e sensível e ao mesmo tempo sem nunca explicar mais do que o necessário. Nunca nada era explicado mais do que o necessário. Acho que foi uma das coisas mais bonitas que a gente teve e tem na nossa literatura.”
Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”
Entrelaçamento entre o político e o pessoal
“Li ‘As meninas’, de Lygia Fagundes Telles, aos 18 anos, e reli muitas vezes depois, como se aquelas personagens continuassem dialogando comigo e de vez em quando eu precisasse encontrá-las novamente. Tempo depois, entendi, quando já escrevia os meus primeiros contos, que era o entrelaçamento entre o pessoal e o político na obra dela que me fascinava tanto, o comprometimento com o seu tempo vivo nas subjetividades dos personagens. Lygia nos dizia de uma forma muito corajosa, inteligente e sutil que não podemos fugir do nosso tempo, que o que ele nos traz é nosso, e o que fazemos com isso somos nós, nos define. Eu sou leitora da Clarice e da Lygia desde adolescente, dois faróis para qualquer jovem escritora brasileira. Saber que foram amigas me dava uma felicidade imensa, como companheiras na mesma luta de escrever literatura, as nossas questões, as nossas histórias, num meio literário dominado pelo masculino em todos os sentidos, conteúdo, forma e definição de cânone. Elas ousaram muito, e Lygia fez isso sempre sorrindo, apesar de Clarice aconselhar o contrário. Mas Lygia não abriu mão da coragem nem do riso. Clarice infelizmente partiu muito cedo e saber que a Lygia permanecia entre nós era uma lembrança constante dessa coragem e alegria.”
Claudia Lage, autora de “O corpo interminável”
Machismo resistiu por 80 anos na ABL
Lygia Fagundes Telles, que morreu no domingo passado, foi a terceira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (eleita em 1985 e empossada na cadeira 16, em 1987). Mas, de 1897, quando a academia foi fundada por Machado de Assis e contemporâneos ilustres, a 1977, foram oito décadas de absoluto machismo, que acabou se curvando ao talento feminino quando a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), finalmente, assumiu uma cadeira. Mesmo assim, até hoje, 125 anos depois, são apenas nove mulheres na academia, incluindo também Dinah Silveira de Queiroz (1981), Nélida Piñon (1990 – hoje com 84 anos), Zélia Gattai (2002), Ana Maria Machado (2003 – hoje com 80 anos), Cleonice Berardinelli (2010 – hoje com 105 anos), Roziska Darcy de Oliveira (2013 – hoje com 78 anos) e Fernanda Montenegro (2022 – com 92 anos). No ano do centenário, Nélida Piñon se tornou presidente da academia.
Em “Tantos anos”, seu livro de memórias, Rachel de Queiroz conta como foi alvo de machismo logo no início da carreira, em 1930, quando lançou seu primeiro livro, “O quinze”, aos 19 anos. E se vingou, de maneira inusitada, de um escritor e poeta “brilhante” (ela não revela o nome), que tinha publicado artigo desmerecendo o livro e o atribuindo ao seu pai, Daniel de Queiroz. “Naquela hora da tarde fazia um sol terrível. Abri a sombrinha e ia sozinha pela calçada deserta, a fim de pegar a condução lá perto do passeio público, e eis que avistei, vindo do lado da Santa Casa, o tal cara. (…) Quando íamos nos cruzando, na calçada estreita, quase colidimos. Ele parou, assim de repente. (…) Sei que fechei a sombrinha, segurei o cara pela gola do paletó e bati nele nos ombros, na cabeça, até quebrar a sombrinha. Depois o larguei, joguei fora a sombrinha quebrada e nunca dissemos a ninguém nenhuma palavra sobre isso”, conta ela no livro.
Na mesma época, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), que em 1938 lançaria “Vidas secas”, surpreso com a qualidade de “O quinze”, romance de realismo social que trata do drama de retirantes da grande seca de 1915, disse: “Uma garota assim fazer romance. Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”. Anos depois, ele se redimiu ao reconhecer o próprio preconceito e admitir o talento da então jovem Rachel de Queiroz.
A primeira candidatura feminina rejeitada na ABL foi a da pi auiense Amélia Beviláqua (1860-1946), em 1930, que, do ponto de vista da academia, não tinha valor literário, porque apenas os homens recebiam essa qualificação. Em 1950, a escritora paulista Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) fez a primeira tentativa de ingressar na ABL, mas também foi barrada. A regra era clara: apenas o gênero masculino era permitido. Foi só em 1981 que Dinah acabou aceita na porta aberta por Rachel de Queiroz quatro anos antes.
PRECONCEITO
Mas o caso mais absurdo envolvendo escritoras na ABL foi o da carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1930). Hoje, ela é desconhecida do grande público brasileiro, mas suas obras, de conteúdo feminista, eram “fenômeno de sucesso editorial”, no fim do século 19 e no início do 20, nas palavras do jornalista e biógrafo Ruy Castro. No seu livro “Metrópole à beira-mar – O Rio moderno dos anos 20”, ele fala da importância da literatura e do papel feminista de Júlia. Autora de cerca de 40 obras, entre romances, contos e peças de teatro – com destaque para “A falência” –, e até livros sobre viagens, ela estava entre os 40 fundadores da ABL, mas o machismo impediu que ocupasse uma cadeira na entidade recém-criada.
“A explicação era que, a exemplo da Academia Francesa, em que se inspirava, a Brasileira não podia admitir mulheres. À macaquice os acadêmicos acrescentaram o ridículo: em lugar de Júlia, deram a vaga ao seu menoríssimo marido, o parnasiano Filinto – cujos livros de poesia era Júlia quem organizava e ajudava a publicar. (…) Mas nunca se ouvira queixa de Júlia a respeito. Mesmo porque ela teria outra bandeira com que se ocupar: a luta das mulheres”, conta Ruy Castro.