Paulo Paniago
Especial para o EM
Mário de Andrade e Oswald de Andrade não podiam ser mais diferentes um do outro, embora dividissem o mesmo sobrenome, sem ser parentes, e apesar de terem se unido para organizar a Semana de Arte Moderna, movimento que mudou o panorama da literatura nacional. Um, Mário, era sério, estudioso, organizado. Outro, Oswald, debochado, criativo, bagunçado. Juntos, formaram a comissão de frente e verso da Semana.
Nas comemorações do centenário do Modernismo, livro com correspondência de Mário de Andrade e reedições de romances de Oswald de Andrade ajudam a compreender o papel de ambos na cultura brasileira
No rastro das comemorações do centenário, as revisões do movimento incluem tanto ângulos inusitados na revisão dos romances mais impactantes escritos por Oswald de Andrade — “Memórias sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande” —, quanto mergulhos na intimidade das cartas trocadas por Mário de Andrade com o grande amigo Paulo Duarte, afinal o responsável por indicar Mário para ocupar o posto de diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, o que o escritor fez, entre 1935 e 1938.
O livro organizado por Paulo Duarte chama-se “Mário de Andrade por ele mesmo” e mergulha no universo da política cultural desenvolvida durante a transição entre dois momentos do governo de Getúlio Vargas, a passagem do primeiro golpe, de 1930, e do segundo, quando a ditadura foi instalada, em 1937, com a implantação do Estado Novo. Mas também entrega um Mário afetuoso e angustiado, como somente as cartas permitem revelar. No balanço geral, ainda há muito Modernismo a ser desdobrado.
O que é revelado nas cartas de Mário
Existem dois modernismos brasileiros, aquele um que todo mundo conhece, do estardalhaço da Semana de Arte Moderna, e outro que repercute todos os desdobramentos possíveis, passado o fogo de ignição, nos anos subsequentes. Como balanço desse segundo momento consta o livro de Paulo Duarte que reúne a troca de cartas que mantiveram os amigos quando Mário de Andrade foi diretor, por indicação de Paulo, do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, “Mário de Andrade por ele mesmo”, na quarta edição (a primeira pela editora Todavia).
Trata-se, portanto, do modernismo que tem projeto, que procura não ficar refém das oscilações da vida pública brasileira e, de quebra, tem a sempre bem-vinda informalidade de Mário de Andrade, com seu escrever tão afetuoso e brasileiro. O livro tinha sido lançado em 1971, reeditado em 1976 e 1985, e estava esgotado. É importante estudo a respeito de uma época específica, rica e conturbada (é algo redundante dizer isso em relação a qualquer período que diga respeito a Brasil, mas vá lá), da história nacional e de como se implanta uma política cultural de respeito.
Quando criado, na década de 1930, o Departamento de Cultura fez uma aposta elevada de transformar o estado de São Paulo, num primeiro momento, e depois se espalhar pelo Brasil, com um mergulho profundo nas águas da cultura, esse elemento que é tão importante quanto desprezado em terras nacionais. Teria dado certo, não fosse a falta de previsão e cálculo que leva em conta a vida política nacional e seus respectivos terremotos, tão previsíveis e calculáveis quanto parecem inevitáveis. Cada novo grupo que entra no poder destrói qualquer avanço que o anterior, de saída, tinha feito (ou, no caso da guinada de Getúlio Vargas em 1937, um recrudescimento do golpe dentro do golpe anterior). A vida se torna, dessa maneira, eterno recomeço. Brasil como Sísifo, eis um estudo que faz falta.
Paulo Duarte, como diz Antonio Candido no prefácio, era “literariamente conservador”, em 1922, mas “culturalmente renovador”. Amigo de Mário de Andrade, foi responsável pelo convite ao escritor de “Macunaíma” para que dirigisse o Departamento de Cultura. Tratava-se do outro Mário, não o modernista interessado nos avanços da linguagem, mas o estudioso sério e compenetrado, capaz de tocar um projeto de implementação de cultura nacional — porque a ideia era fazer, do Departamento paulista, um Instituto Brasileiro de Cultura que se espalhasse por todo o país. Duarte foi o responsável por estruturar o projeto e convencer o prefeito Fábio Prado e o, primeiro interventor, depois governador Armando de Sales Oliveira.
Mário de Andrade, além de dirigir o Departamento de Cultura, foi diretor também da Divisão de Expansão Cultural. Sérgio Milliet ficou na Divisão de Documentação Histórica e Social. O bibliófilo e bibliotecário Rubens Borba de Moraes ficou com a Divisão de Bibliotecas (veja quadro das realizações do Departamento). Entre 1935 e 1938 a coisa funcionou bem. Nem é preciso lembrar que em novembro de 1937, com o autogolpe de Getúlio Vargas e a implantação do Estado Novo, a coisa sinalizava novos ares e houve a implosão deliberada do projeto de cultura em andamento na capital paulista. Mário terminou se mudando para o Rio de Janeiro por uns tempos. E nunca mais disse o que tanto costumava repetir: “Sou um homem feliz!”.
Origem e exílio
Um grupo de amigos se reunia, praticamente toda noite, entre 1926 e 1931, num apartamento da avenida São João: Mário de Andrade, Paulo Duarte, Antônio de Alcântara Machado, Tácito de Almeida, Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, Nino Gallo, dentre outros. Ali foi o embrião do Departamento de Cultura. “O nosso capital eram sonhos, mocidade e coragem”, diz Paulo Duarte.
Paulo Duarte tinha sido expulso do país uma primeira vez, em 1932, no rescaldo da Revolução Constitucionalista. Em 1938, Mário vai para o Rio de Janeiro e Paulo Duarte, para novo exílio. As trocas de cartas, portanto, entre eles, são desses períodos em que os amigos estiveram afastados um do outro. “Sei é que estou num estado catastrófico”, diz, por exemplo, Mário de Andrade numa carta de novembro de 1938. Ele não pôde ir se despedir do amigo que embarcava para o segundo exílio, por ter ido até São Paulo comemorar o aniversário da mãe. “O mais trágico pra mim é ter desse jeito uma imensa felicidade emoldurada numa tristeza intensa, você. Não se misturam, é curioso, nem se combatem: tristeza de um lado, felicidade de outro.”
São dois documentos fascinantes, um que mostra a tentativa de Mário de Andrade de traduzir o modernismo teórico e literário em política cultural avançada e outro que mostra a intimidade, o humor e o desespero, a alegria da troca de assuntos diversos entre amigos afetuosos. Em que pesem as minúcias na descrição dos acontecimentos na primeira parte do livro ser importante, é fato Paulo Duarte não teve editor de mãos firmes que lhe mergulhasse no texto para retirar as reiterações, inúmeras e por vezes bem cansativas. Por se tratar de reedição, a Todavia ficou sem escolha a não ser manter o livro como estava. Mas ao editor original de Paulo Duarte faltou essa sagacidade. Fique o registro. No entanto, as redundâncias que por vezes dificultam um pouco a leitura da primeira parte são compensadas com sobra na segunda, a da troca de correspondência propriamente.
Salvação pela intimidade
O Mário gentil, preocupado, em franco desespero, ou debochado, ao lado de um amigo que tenta permanecer à altura da verve, gera correspondência riquíssima de informações, temperada pela dicção toda especial de Mário. Saber que o escritor se torna, na temporada no Rio de Janeiro, consultor técnico do Instituto Nacional do Livro, dirigido na ocasião por Augusto Meyer, e que ficou encarregado de fazer os projetos da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional, é muito interessante, para ver como Mário de Andrade se vira na barafunda nacional depois de ter ajudado a organizar a viravolta da literatura brasileira com a Semana.
Numa carta de abril de 1941, ele escreve que está num cotidiano de desgraça: “Desgraça que era mais ou menos como ovo-de-colombo, bastou que numa noite de porre imenso eu batesse com o punho na mesa do bar e me falasse pra mim mesmo: ‘Vou-me embora pra São Paulo, morar na minha casa’. E eis que num zás, num átimo e de supetão minha desgraça diminuiu de seus sete décimos — que os outros três décimos são a dor humana, universal eterna pelos outros homens, coisa sem cura nem ovo-possível”.
No meio de informações de bastidores — reclamações contra, por exemplo, Gilberto Freyre, Candido Portinari e Orígenes Lessa (esta, injustificada e depois esclarecida), por parte de Paulo Duarte, que revelam condutas um tanto ambíguas ou questionáveis — é possível delinear uma trajetória de pensamento de Mário de Andrade, a preocupação dele em não se perder em vaidades e produzir trabalho sério, o que parece ter sido sempre a pauta principal a lhe guiar os caminhos.
Quando recebe convites para ir aos Estados Unidos, Mário registra para o amigo, que justamente nessa ocasião morava exilado nesse país: “Não vou por milietas de razões. Antes de mais nada não tenho vontade de ir, e isto basta”. E logo depois: “Tenho assim meio a impressão de que estou me suicidando aos poucos e vou acabar um pouco antes do tempo, pois desejava viver até os 55 anos”. De fato, não conseguiu realizar o desejo: Mário morreu aos 51 anos, em 1945. Anos antes, porém, ele lista em minúcias ao amigo o programa do curso de história da poesia popular brasileira, que pretendia fazer na Faculdade Livre de Sociologia e Política. Nem tudo dá certo como planejado, mas é um alento ler o bom humor de Mário numa das cartas: “Ando vivendo muito e bem melhorzinho de minhas crises morais Andrade. Trabalho muito, me divirto muito”. É esse humor corrosivo que torna tudo muito fascinante. De Mário também: “Se diria que tenho uma angústia formidável lá no eu profundo, mas nas partes mais profundas e impenetráveis, lá no inconsciente, uma angústia prodigiosa”. Em maio de 1943, o tema volta, mas não mais temperado pelo humor: “O pior é a melancolia de viver, um desânimo que não permite quaisquer vontades, tudo o que faço é mecanicamente”.
Doente, ele termina depois por constatar: “Imagino que numa possível biografia minha, o biógrafo teria que botar: ‘O ano de 1943 não existiu’”. E em junho do ano seguinte, anota ao amigo: “Vamos bem, isto é, quer dizer, você sabe”.
O livro também traz um conjunto de cartas de Mário enviadas a Sérgio Milliet (sem as respostas, infelizmente). Numa delas, bem antiga, ainda de 1923, vê-se um Mário provocador: “Desânimo. E este desejo invejoso de ser motorista, garçom, milionário, boi, tudo, menos artista”. Também em 1923, um comentário a respeito de Oswald de Andrade, quando ainda eram amigos, a respeito de um jantar na casa de Paulo Prado, um dos financiadores da Semana de Arte Moderna. A grafia abrasileirada do nome do amigo era parte do projeto de Mário. “O Osvaldo leu o novo romance ‘Serafim Ponte Grande’. Muito fraco. Muitíssimo inferior às ‘Memórias sentimentais [de João Miramar]’”.
O fato que transparece de toda essa troca de correspondência é que não está concluído por inteiro o inventário do Modernismo e muita informação resta por ser trazida à tona nessa espiral que se chama normalmente de cultura brasileira, enquanto ela ainda existe.
Paulo Paniago é professor de
jornalismo da Universidade de Brasília
Oswald em dose dupla
“Serafim Ponte Grande”, reeditado agora pela Companhia das Letras no andamento das comemorações da Semana de Arte Moderna, é livro um tanto desigual, o que o torna ainda mais ambicioso e modernista talvez do que “Memórias sentimentais de João Miramar”, também reeditado pela editora, mas antes, em 2016. Ambos vêm acompanhados de ótima fortuna crítica (embora o ensaio de Antonio Candido —confira comentário adiante sobre ele — devesse passar a ser considerado, da próxima vez que se cogitar reedições) e cronologia.
Como provocação de abertura, Oswald escreveu que “Serafim” tem “direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas”. No mesmo ano em que lançou “Miramar” (1924), Oswald de Andrade fez leitura de trechos de “Serafim” (só lançado em livro em 1933) na casa de Paulo Prado. Não foi apenas Mário de Andrade quem não gostou; Manuel Bandeira, em texto para a revista “Literatura”, disse a respeito do livro de Oswald: “O romance não acrescenta nada à obra do Andrade. Quase não interessa depois do ‘João Miramar’. É uma repetição”.
Entre idas e vindas, o tempo transcorreu e a opinião da crítica mudou um bocado. Antonio Candido tem um ensaio chamado “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, que faz parte do livro “Vários escritos”. Nele, Candido argumenta que achou por longa data “Serafim” inferior a “Miramar”. Com o tempo, no entanto, passou a achar “Miramar” mais comportado, “na medida em que preserva certa unidade de tom — admirável, seja dito”. No entanto, “Serafim” tem a vantagem de justapor “diversas soluções estilísticas, saltando de um tom para outro, cortando os fios e quebrando os rumos. É a devoração e a mobilidade em grau máximo, comportando uma carga maior de sarcasmo e agressão, culminados na apoteose da liberdade absoluta”. No conjunto da obra oswaldiana, é o “par-ímpar”, para usar a expressão empregada por Candido, que se sobressai.
Num ensaio a respeito de “Serafim” quando ele foi reeditado em 1971, chamado “Serafim: um grande não livro”, Haroldo de Campos diz ter recebido um exemplar das mãos do autor, no qual ele riscou a palavra “romance” que consta na capa para substituí-la pela palavra “invenção”.
Embora tenha interesse como potencial “livro compósito, híbrido, feito de pedaços ou ‘amostras’ de vários livros possíveis”, ou como “livro de resíduos de livros”, o romance posterior de Oswald não fica à altura da concisão e impacto potencial que o “Miramar” consegue desencadear e manter como experimento radical de linguagem. No confronto entre ambos, na opinião deste resenhista, o primeiro dos romances do dueto par-ímpar leva vantagem clara.
Os avanços se apoiam numa tríade, assinalada por Haroldo de Campos num ensaio que também é sempre lembrado, “Miramar na mira”: estilo telegráfico, prosa cinematográfica e estética do fragmentário.
Do ponto de vista do narrador, menino, ele relata a doença e morte do pai numa sucessão de parágrafos sintéticos de um dos capítulos (ou episódio-fragmento, como chama Campos): “Papai estava doente de cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim”, diz o primeiro parágrafo. “Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela”, avança o segundo, numa sucessão veloz de relato e mudanças de situação, que preparam o terceiro e último parágrafo do episódio-fragmento: “No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai”. Parece um caleidoscópio de efeitos vibrantes, mecanismo de sobrepor várias camadas da realidade dentro de um mesmo e compacto bloco textual.
Um pouco para puxar a brasa para a sardinha do argumento, Haroldo de Campos aproxima o livro de Oswald do “Ulysses”, de James Joyce, e assinala o débito de Mário de Andrade, sobretudo o do “Macunaíma” (1928), com o livro oswaldiano.
Seja como for, o fato é que os dados estão lançados e o leitor pode escolher o que mais lhe agradar, depois de fazer leitura cuidadosa de ambos.
(Paulo Paniago)
“Mário de Andrade
por ele mesmo”
Paulo Duarte
Todavia
Prefácio de Antonio Candido
576 páginas
R$ 99,90 e-book: 64,90
“Memórias sentimentais
de João Miramar”
Oswald de Andrade
Companhia das Letras
Fortuna crítica: Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Haroldo de Campos, Antonio Arnoni Prado
168 páginas
R$ 57,90 e-book: 30,90
“Serafim Ponte Grande”
Oswald de Andrade
Companhia das Letras
Fortuna crítica:Paulo Roberto Pires, Haroldo de Campos, Saul Borges Carneiro e Múcio Leão
224 páginas
R$ 74,90 e-book: 39,90