Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Silviano Santiago revisita o clássico 'Em liberdade', que ganha nova edição



Coincidências existem? Fernando Sabino, um obcecado com o assunto, jurava que não. Quem conviveu com o escritor conta que o papo era recorrente nas suas conversas. Para Fernando, elas nunca existiram. Lembrei-me da obsessão de Sabino quando reli a nova edição de “Em liberdade”, de Silviano Santiago. Lançado em 1981, quando o país dava os primeiros passos para se livrar do pesadelo da ditadura civil militar, o livro está de volta às livrarias. E exatamente no ano em que eleições presidenciais poderão, ou não, nos libertar do mais recente pesadelo. É mesmo muita coincidência.



Estamos em janeiro de 1937. Depois de preso de forma arbitrária, sem processo, em Alagoas, Graciliano é finalmente solto no Rio. Por iniciativa de amigos, e com a ajuda de Sobral Pinto, Graça deixa o cárcere após quase um ano.

O que passou pela cabeça do autor de “Vidas secas” nos primeiros dias de liberdade? Silviano imagina um diário, escrito por Graciliano, a respeito do que viu e viveu nos primeiros três meses fora do cárcere. Para escrever o livro, ele estudou a vida do gênio alagoano: pesquisou jornais, revistas e livros da época e consultou mapas da cidade do Rio de Janeiro de então.

O Pensar conversou com Silviano Santiago sobre a nova edição do livro. Na entrevista com o escritor, nascido em Formiga, no ano de 1936, ele falou, entre outros assuntos, do livro, sobre literatura brasileira, de sua entrada para a Academia Mineira de Letras e de nossa antiga tradição autoritária.



 “Em liberdade” transita pelo ensaio, ficção e (auto)biografia.  Quando lançou o livro, em 1981, você o definiu como prosa-limite. “É biografia e não o é; é crítica literária e não o é; é ficção e não o é.” Quarenta anos depois, como vê o livro?

O autor não tem o direito de enxergar o livro antigo com olhos novos. Não em vão, muita água passou por debaixo da ponte. Hoje, para mim, e espero que para o leitor, “Em liberdade” faz parte de uma trilogia de biografias de escritor. Ele deu o chute inicial e deixou a bola rolar. Em 1993, ele ganhará a companhia do romance “Viagem ao México”, protagonizado pelo francês Antonin Artaud. Em 2017, estará ao lado do romance “Machado”, que narra os últimos anos da vida do mestre carioca.

Permita-me, pois, que, aos 85 anos, eu fixe os olhos no espelho retrovisor. Nele enxergo “Em liberdade” e mais duas ou três obsessões minhas. A primeira: as três vidas de artistas sempre focam os três corpos, suas presenças físicas no processo da respectiva criação artística. A segunda: os três romances focam também a força e a fraqueza do corpo humano em três situações existenciais de risco. Liberto do cárcere, o rosto irreconhecível no espelho de Graciliano. Em processo fracassado de desintoxicação, o corpo em exílio de Artaud, consumido pelas drogas. Tomado pela epilepsia, o corpo já alquebrado pela idade de Machado de Assis. Com esses elementos bem significativos, por três vezes reagi às leituras de obras literárias que não levam em consideração a vida do autor.

E eis a quarta e final obsessão, reagia também à tradição imposta pelo gênero biografia, que remonta aos tempos greco-latinos e se acelera, sob a forma de verbete, nos tempos da enciclopédia francesa. A biografia tradicional não se vale de algo que tenho em matéria de conhecimento do ser humano. Minha formação acadêmica em literatura. Por que a arte do romance não teria o direito de invadir o terreno circunscrito pela biografia?  Por que não trabalhar de maneira imaginativa e analítica o corpo físico do artista, sua fisiologia, o papel dela na composição dos romances e, de modo geral, da arte? Por que não compreender o risco de escrever obras-primas com o perigo de viver? Qual a relação do corpo de Graciliano com a literatura que escreve e com o poder nacional? Qual a do corpo de Artaud com o teatro que faz e com as leis universais, repressoras do comportamento humano? Qual a relação do corpo de Machado com sua literatura e com os limites da doença e da dor?

Por um aforismo de Artaud, respondo às três perguntas sobre o que representa o ato de viver para os três artistas. Ao se bater contra a lei francesa de 1916 que proibia o uso de substâncias, Artaud escreve: “Se pelo excesso de dor perco a minha lucidez, a medicina só tem uma tarefa: fornecer-me as substâncias que me permitam recobrar o uso dessa lucidez”. Regresso a “Em liberdade”. Graciliano nos legou uma obra-prima, as “Memórias do cárcere”. Mas não nos deixou um diário de seus primeiros dias em liberdade. Numa cidade estranha, sem a família, sem emprego e sem dinheiro. Tocou-me compor o diário que ele teria escrito ao sair do cárcere político em 1937. Narrar os dois meses e poucos dias em que vive de favor em casa de Lins do Rego ou numa pensão vagabunda no Catete.



Não era suficiente a narrativa dos fatos, banais na aparência. Tinha de conhecer bem todos os personagens que o rodearam. Cada uma e cada um tinha de ter vida própria. Entreguei-me à pesquisa em documentos e jornais. Reli a obra dos romancistas nordestinos. Anotei detalhes.

Foram quatro anos de muita pesquisa...

Exato. Este formiguense, nascido em 1936, precisava conhecer bem a capital federal, no ano de 1937. Dois meses e meio era tempo suficiente para fazer um perfil. Um perfil de ativista político que ganha novo colorido e outro ideário pela experiência de vida que o corpo ferido ganhou na cadeia e continuará a ganhar, à sua saída, pela fatalidade do Estado Novo. O diário anuncia o próximo livro, “Vidas secas”. E aborda outras sombras terríveis da história política brasileira. No passado, o “suicídio” de Cláudio Manoel da Costa na Casa dos Contos, em Ouro Preto. No futuro, o “suicídio” de Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi paulista. Competia-me escrever o diário de Graciliano no próprio estilo dele. Um pastiche respeitoso, à maneira do jovem Marcel Proust. O narrador nasce no estilo único do personagem.

Na nova edição, você acrescentou “Todas as coisas à sua vez”, que se encontra na coletânea “Histórias mal contadas”. Você já disse que esse conto “tenta mostrar como se dá o processo de heroificação do sujeito Graciliano pelo próprio Graciliano às vésperas da morte”. Poderia explicar melhor? O porquê do acréscimo.




Ao continuar a viver, a ler e a escrever, você aprende mais sobre arte que a reler o livro que escreveu e já publicou. É uma lição que aprendi com Graciliano e Machado de Assis. Eles não se repetem. Na obra completa do alagoano, tudo indica que o livro seguinte não será o produto de um saber que ele já divulgou. O conto “Todas as coisas à sua vez”, acrescido ao romance, não é um repeteco dele. Tem sua novidade. Visa dar voz ao corpo físico de Graciliano nos meses finais de vida. Tem a ver com “A morte de Ivan Ilyich”, de Tólstoi. Em Graciliano, a dor imposta pela repressão reaparece, então sob a forma da iminência da morte. Há experimento no romance e no conto.

Não precisa ser romancista de vanguarda para escrever ficção experimental. A produção artística é um “ensaio”, para retomar um conceito em que o experimento se associa ao caminho em direção à possibilidade ou de êxito ou de fracasso. Nesse sentido, fazer literatura é sempre atividade experimental. Apesar de mínimo, o conto não é apenas uma aproximação descritiva dos dias finais de Graciliano. É também a aproximação de um corpo estoico que sempre buscou nos “excitantes” (a palavra é dele e se refere à rotina do cafezinho, associada ao cigarro e à cachaça) a paz interior que açula a escrita artística. E é corresponsável pela obra de arte. Tudo indica que, para os três biografados, a dor física tem de se pacificar, ainda que de maneira artificial, para que a arte se libere em plenitude.

Acredito que o conto traduza o desejo de mostrar como chega um momento na vida de qualquer humano em que a dor não se pacifica. O corpo se abre, então, a “todas as coisas à sua vez”. Inventei uma palavra para traduzir isso: o corpo vira “seringaita” (acoplo seringa a sirigaita). Fala e imagina a torto e a direito. Graciliano tinha regressado de Buenos Aires, aonde fora para uma cirurgia delicada, que ainda não se fazia no Brasil. A cirurgia não surtiu efeito. Isso no plano individual. No plano alegórico, o conto explora o niilismo (a não ser confundido com pessimismo) do ativista político à beira da morte. Na sala de visitas do apartamento, destaco o corpo vestido com robe de chambre vermelho. Fotos são conhecidas. O robe é semelhante ao capote de Marx. O autor de “O capital” penhora o capote de inverno porque precisa de dinheiro para comprar o papel, ou por que se obriga a ficar em casa para escrever?

Nos últimos dias, Graciliano termina dois livros. Tanto Machado quanto Graciliano, niilistas de carteirinha, põem fé na vaidade, como leitores do “Eclesiastes”. Não há epifania em texto de Graciliano. Ele coloca a esperança no plano das ideias que, sabe, não se concretizarão plenamente no mundo em que vivemos. Em Graciliano, esse mix está no uso do verbo no tempo condicional (hoje, futuro do pretérito). Exemplifico com as últimas linhas de “Vidas secas”: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos”. Destaco: “ficariam presos” na terra desconhecida. Que êxodo é esse? Um eterno retorno ao mesmo. Não são, ainda e sempre, os “paus de arara” e os “cabeças chatas” que perturbam a mente do nosso governante?

“Em liberdade” é também uma espécie de painel da maneira como o Brasil sempre tratou seus intelectuais: com desconfiança e desprezo. Estão no romance: a barbárie do golpe militar de 1964 (está lá, meio escondido, o episódio Vladimir Herzog e o discurso de Dom Evaristo Arns), o Estado Novo getulista (a prisão de Graciliano) e a Inconfidência Mineira (o “suicídio” de Cláudio Manoel da Costa). Nos últimos anos, vivemos uma radicalização política, com a extrema-direita tentando destruir as instituições brasileiras. Como um dos grandes intérpretes do Brasil, que imagem tem hoje do país?
É triste, mas há que repetir o que acabo de constatar. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. Uma das boas qualidades da contribuição da arte do romance à biografia tradicional está no fato de o romancista ter o direito de pintar, a partir de uma vida em particular e escrupulosamente, um painel amplo que recobre quase três séculos do processo de autonomia da nação colonial. O romancista pode ser criticado, mas tem o direito de trabalhar com o tempo histórico e o biográfico com certa liberdade responsável, ou melhor, com a liberdade que Stendhal exigiu para transformar Napoleão em “personagem”, ou o nosso Lima Barreto, o presidente Floriano Peixoto em diálogo com Policarpo Quaresma.



Volto ao cerne de sua pergunta. O chamado regime de exceção é variado, mas na verdade é usança brasileira. Ele tarda, mas chega de um golpe só. O enigma consiste em convencer uma nação que se quer constitucional de que esse diálogo sem mediação entre o presidente e o “povo brasileiro”, semelhante ao assumido por De Gaulle na França, ao final da Grande Guerra e frente à descolonização, é fajuto e é populismo que manca da perna direita. Não por acaso, o “cercadinho”, apenso ao Palácio da Alvorada, se quer metáfora. Coloca seus frequentadores acima de tudo na nação e, principalmente, acima do combate à pandemia. “Eu, instituído pelas mais diversas divindades supremas do universo e da nação, converso diretamente com o povo, que me saúda e me admira e agradece.”

A negação da cidadania brasileira é estar acima dos demais e, no entanto, sozinho e acessível a todos os semelhantes (evidentemente, o cercadinho tem de ser, por natureza, masculino e branco). Equivale e o manejo do gatilho nas redes sociais hoje se presta a esse desserviço ao voto de cabresto da República Velha. Nada mais espontâneo que ser contra as eleições. Elas serão sempre fraudulentas porque a urna eleitoral se confunde com o corpo do monarca, que tem voz e reina no cercadinho. Os votos ali depositados, de admiração, é que têm valor. A fala do opositor político é sempre a razão para a fraude. Poderia ir por aí, mas estaria escapando do romance “Em Liberdade” e entrando no campo dos cientistas políticos.

Você certa vez afirmou que “Graciliano é, de todos os autores modernistas, o único que não esteve comprometido com o projeto de modernização brasileiro. Era cético com a ordem e progresso da sociedade brasileira”. Pode explicar isso um pouco melhor? Qual a importância da obra de Graciliano Ramos para a cultura brasileira atual?
Acredito que Graciliano tenha um traço na personalidade, já assinalado, que é intolerável ao cidadão comum brasileiro. Talvez a culpa seja de Stefan Zweig, que apelidou o Brasil de “o país do futuro”. Minha geração, formada pelo Estado Novo, foi ensinada a ser crédula. E permanecemos crédulos. Não é o caso de Graciliano, acredito. O traço intolerável, a que me refiro, não é o pessimismo, mas o niilismo. A diferença entre os dois pode ser percebida no uso constante da palavra “esperança” por Graciliano. O uso não o faz otimista, pois ele está sempre a controlar o substantivo por outros vocábulos no entorno. Certos adjetivos de esperança, “indecisa e hipócrita”, por exemplo, são de uso dentro do cárcere e se referem à possível liberdade que acontece afinal. A sua pergunta é sobre a importância desse vocábulo para a atividade cultural e política.



Por isso, prefiro salientar o significado do vocábulo quando ele escreve sobre sua própria escrita, sobre sua escrita literária transformada em algo de concreto. Um romance. Ele recebe alguns exemplares de “Angústia” na cadeia. Distribui os livros entre as companheiras e companheiros. As reações são deliciosas. A dele, autor, é melhor ainda, em especial numa alusão a Machado de Assis e à teoria das edições da vida, conhecida como “errata pensante”. Transcrevo-a: “A leitura (de “Angústia”) me revelou coisas medonhas: pontuação errada, lacunas, trocas horríveis de palavras. A datilógrafa, o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios estragos. Onde eu escrevera opinião pública havia polícia; remorsos em vez de rumores. Um desastre. E nem me restava a esperança de corrigir a miséria noutra edição, pois aquilo não se reeditaria”. Gosto dessa citação porque ele não se refere à situação passageira da cadeia, embora trágica, mas a algo de concreto. Não lhe restava a esperança de corrigir a miséria. O livro (ou a realidade) está, e sempre estará, a trair o autor. Somos, quando humanos, seres semelhantes à datilógrafa, ao linotipista e ao revisor.

Esse contraste é também encontrado noutro niilista puxado à esperança (à espera) que é Samuel Beckett. Admiro certa parábola narrada por personagem de Beckett. Um senhor encomenda um par de calças a um alfaiate. A entrega da encomenda está sendo sempre adiada pelo alfaiate. Reclama o freguês: “Deus fez o mundo em seis dias, e o senhor não conseguiu me costurar essa merda de calças em seis meses”. Reage o alfaiate, orgulhoso da obra-prima que está e estará a costurar até a perfeição: “Mas, meu senhor, olhe o mundo, e olhe suas calças”. Se houver perfeição no mundo, ela terá de ser produto paciente e exaustivo do trabalho humano. Se a divindade não fez milagre em seis dias, muito menos fará o ser humano durante sua curta estada na Terra. A utopia se deixa escrever, não há dúvida, mas sempre cairá em mãos outras.

O que significou para você a eleição para a Academia Mineira de Letras?
Os escritores mineiros que foram um pouco além do certificado de validade de uma vida sabem que Minas Gerais é uma fatalidade. É evidente que Carlos Drummond, a partir dos 66 anos, quando publica “Boitempo”, está a denunciar o poema “Infância”, que saiu em “Alguma poesia”, seu primeiro livro de poemas. A fatalidade obriga o escritor mineiro a trabalhar primeiro a casa por dentro e depois os andaimes que ficavam do lado de fora da construção, aparentemente inúteis depois de a casa pronta e habitável. A fatalidade é o interesse tardio pelos andaimes. Cataguazes que o diga.



Nada em literatura mineira é só construído pelo lado de dentro. Costumo dizer que somos anfíbios. O escritor mineiro – perdoe a generalização – não acredita em arte pela arte. Muitas vezes ele troca as bolas. Confunde inicialmente o andaime com a obra de arte e só vem a descobrir na idade madura que o andaime tem de ser botado fora. São raros esses escritores. E às vezes se estrepam. Ficam conhecidos, como Cyro dos Anjos, pelo primeiro livro excepcional.

Acho que sigo a generalização que fiz. Chego a Minas Gerais pelo retorno. No meu caso, pela fatalidade da volta simbólica. Uma cadeira, onde tomo assento, na Academia Mineira de Letras. Duvido que tenha forças para ir além do simbólico. Tentar eu tentei, com o livro “Menino sem passado”. Mas a pandemia...

Você poderia falar sobre o problema que o livro causou com a família do Graciliano na época?
Se o produto literário se faz num tubo de ensaio, há que se esperar surpresas quando o resultado da experiência ganha a livraria e qualquer leitor. Passa ao domínio público. No momento da experiência, não há por que imaginar qual será a reação da leitora ou do leitor. Um dos princípios de minha estética da ficção é que cada romance faz seu leitor. Se não o fizer é porque o romancista fracassou em sua arte. Quem conhece o leitor de antemão e escreve para ele é o autor de best-seller.



Mencionei o autoritarismo e o círculo vicioso do cercadinho. O autor de best-seller escreve também para seu “cercadinho” de leitores. Interessa-me mais o que, num experimento artístico, pode se passar mais fora que dentro de meu cercadinho. Entreguei o manuscrito a colegas meus de universidade. Leram e me disseram que eu estava maluco beleza. Outro me disse que deveria guardar apenas a segunda parte e rasgar a primeira. Jacques do Prado Brandão foi o único que leu e me encorajou. Foi breve no comentário que não teria sido diferente se Gustave Flaubert fosse meu leitor. Disse-me: veja lá, será que naquela época tinha palmeira no areal (ainda não era o bairro) de Ipanema?

O recado era perfeito: cuidado é sempre pouco com os detalhes da descrição da época. Estão corretos? Alguém que viveu aquele momento os reconheceria? Nunca na minha vida tinha lido com tanto cuidado um guia da cidade (conhecia o percurso de ônibus e bondes) e revistas e mais revistas de 1937, tipo Manchete e Caras (nenhum detalhe da paisagem carioca me escapava). Não por outra razão lhe pedi para escrever a “orelha” da primeira edição. Sua aprovação era capital. Outros mais optaram pelo silêncio. Aguardava a reação dos familiares. Não procurei nenhum para uma conversa ao pé do ouvido. Trabalho com documentos variadíssimos. Perceberiam meus cuidados e escrúpulos. Muito do que lá está escrito vinha de leituras de livros, jornais e revistas e de outros documentos de época. As cartas trocadas entre o mestre e sua esposa Heloísa, então inéditas em livro, eu as tinha consultado e foram substantivas na criação do diálogo do casal. Dona Heloísa, para meu espanto, foi ao lançamento do livro em São Paulo e ofereceu um buquê de rosas ao autor. Outros familiares se refugiaram no silêncio. Um de seus filhos não gostou do livro. Era seu direito. Fechou a cara por alguns anos, mas a abriu antes de falecer. Reconhecia o valor do livro.

Se transfiro essa experiência para o romance “Machado”, tenho antes de substituir a expressão “familiares de” por “donos de”. Confesso-lhe que foram os donos de Machado de Assis que me deram as maiores dores de cabeça. Nunca senti, continuo a confissão, que os familiares se portavam como donos de. Respeitavam o romancista, assim também a filha de José Lins do Rego. Não me sinto diferente de outros escritores modernos e menos ainda do malfadado Pedro Nava.

A história de um dos seus irmãos aparece meio “escondida” no livro. Poderia contar um pouco da história dele?
Acredito piamente que não existe ficção que não seja escorada pela vida afetiva e sentimental do romancista. Permita-me uma longa comparação. Para construir uma casa, você precisa trabalhar do lado de fora dela, em andaimes. Por horas a fio e meses, o pedreiro fica ali, de pé em plataformas móveis. Plataformas sustentadas por uma armação de madeira e de ferro próxima da construção. Só depois de construída a casa é que a trabalha pelo lado de dentro. Aliás, seu estilo pessoal se evidencia e se torna mais visível no trabalho do lado de dentro que do lado de fora. Seu estilo, sua estilização se agiganta depois que abandona os andaimes. Não só os abandona, como os julga inúteis. Eles acabam enfeiando a casa. Por isso, ele os bota abaixo. Desaparecem da vista dos futuros moradores, mas continuam a existir, só para o pedreiro ou algum passante indiscreto que tenha guardado fotos da época da construção.



Desfaço a comparação. Os moradores da casa – os leitores do livro – se beneficiam de uma arte que só o pedreiro – o romancista – conhece de cor e salteado. A citação que faz de mim é correta. Mas o leitor pode ler o romance sem estar a par dela. Será que deveria estar? Pode desconfiar, e é até bom que desconfie. É bom leitor e sabe que no fundo não existe ficção que não tenha sido escorada pela vida afetiva e sentimental do romancista.

A vida afetiva e sentimental da família de Graciliano Ramos está evidentemente escorada pela minha vida afetiva e sentimental no plano familiar. Há diálogos meus com meu pai e com dois irmãos meus, mais novos, o Haroldo e o Rodrigo, que foram ativistas políticos durante a ditadura de 1964. Esses diálogos talvez não tenham existido sob a forma de palavra, mas são eles que estão transpostos no trabalho que executo, de pé, nas plataformas dos andaimes do romance “Em liberdade”. É delas, do lado de fora da obra, que enxergo os personagens, no lado de dentro do romance, e os caracterizo com maior precisão, rigor e verossimilhança. Costumo usar outra comparação para explicar o processo de caracterização de personagem. Entra sempre o estilo e também a estilização da realidade. O bom estofador é o operário que transforma um móvel que é normalmente idealizado para o conforto do usuário em algo de necessário, útil e belo. Não há diferença entre estofar bem uma poltrona e armar com cuidado e carinho a personalidade de personagens numa trama romanesca.

Trecho


“Possuímos, segundo os entendidos, três poderes — o executivo, que é o dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão poder figurar e deitar empáfia diante das visitas. Os três poderes são um. A unidade na pluralidade. E a oposição não é recebida como visita no palácio, mas a tiros.



A oposição é tida como um “ladrão” que quer roubar o lugar do dono da casa, através de uma nova definição de governo. Deve ser esse gênero de racionalização que deixa dormir em paz homens vingativos, violentos, e muitas vezes com mãos sujas de sangue. Dizem:
“Estamos inocentes porque apenas perseguimos um ladrão.”
“Durmo o sono de justo porque apenas torturei um vagabundo.”
“Matei um ladrão que pulava o muro.”
“Atirei para poder defender a mim, a minha família e a minha propriedade.”

(Trecho de “Em liberdade”,
de Silviano Santiago)