Nos dois últimos anos em que pandemia da covid-19 vem impondo um terrível passivo à humanidade, a literatura tem sido um dos escoadouros da resistência ética e da inquietação estética diante desse flagelo. Na esteira das obras que abordam esse espectro avassalador que ainda nos desafia com suas variantes e tentáculos contagiosos e letais, “Diário do medo” (Urutau), do angolano João Melo, torna-se leitura obrigatória e referencial como uma poética de densa e intensa reflexão crítica sobre o período.
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Silviano Santiago revisita o clássico 'Em liberdade', que ganha nova ediçãoEditora José Olympio celebra 90 anos com relançamentos da coleção RubáiyátMemórias, sentimentos e provocaçõesMergulhando no universo esconso da pandemia, essa escritura transpõe o cenário da doença, que delimita uma experiência distópica, para amplificar seu espanto ao imergir noutros dramas que afetam a humanidade. O autor revisita temas, demandas e questões convergentes, tateando o desmoronamento de uma sociedade que há muito vem sendo desumanizada por vários conflitos, como os êxodos provocados pela fome, pela miséria, pelo terrorismo, pelas perseguições políticas e pelo fundamentalismo religioso, esse novo e criminoso apartheid com suas horrorosas faces criando diásporas e expondo o horror e a humilhação dos refugiados.
Ao percorrer esses territórios, em viés intertextual, João Melo dialoga com outros autores e obras, invocando Hissa Hilal (“Toda a poesia/ aparentemente simples/ e desesperada/ é radical e necessária)”, dirige-se particularmente ao Brasil (“Carta-tambor aos meus amigos brasileiros”, “Ainda: poema para esquecer Gullar ou talvez não”, “Certas balas” e “Carne negra” – dedicado a Elza Soares) e homenageia ícones universais das lutas sociais, como em “Mural”, “Lamento para Guayaquil’, “Tirem o joelho do nosso pescoço”, “Betty and Curtis” e “Réquiem para Maradona”, poemas que evocam as tantas vítimas, famosos ou não, da pandemia, da desigualdade, da opressão política e de outras contingências históricas.
Concluindo seu rol de indagações, o poeta questiona o cotidiano colapsado por litígios, surtos de violência, em enérgica e catártica inquirição: “Isso aconteceu mesmo? Ou amanhã acordaremos todos/ com a cabeça na mesma almofada/ puída, ensanguentada e acomodada/ da História?”. E seu grito de advertência – “O que diremos amanhã sobre o que nos aconteceu?” – é para também relembrar os guantes de aço sobre populações vulneráveis, as botas assassinas e os mísseis de ódio que atingiram George Floyd, Marielle Franco, Bruno Candé, Khadouj Makhzoum, Lorna Breeen & tantos outros “incômodos mortos” que caíram vítimas da intolerância, da exclusão e dos preconceitos nesse “Tempo de invisíveis ameaças,/ tempo de susto,/ tempo de medo espalhando-se/ como sangue putrefato/ pelas veias dos homens/ e do mundo.”
Na esteira de sua trajetória pública como jornalista, deputado por vários mandatos e ex-ministro da Comunicação Social do seu país, “Diário do medo” consolida a trajetória de um escritor militante, cuja voz acutilante tem se levantado contra as dores, tormentas, contenciosos e lutos da humanidade, destacando-se no mundo da lusofonia.
Para encerrar, um lembrete: "Diário do medo" não é o livro mais recente de João Melo. Depois de 22 livros de poesia, contos e ensaios, o angolano lançou o primeiro romance na última terça-feira, em Lisboa. "Será este livro um romance?" (Editorial Caminho) ganhou apresentação do compatriota José Eduardo Agualusa.
* Mineiro de Cataguases, o escritor Ronaldo
Cagiano mora em Lisboa e é autor de livros
como “Cartografia do abismo” e “Eles não moram mais aqui”