Jornal Estado de Minas

AS ESTRELAS RENASCEM

Com 'O púcaro búlgaro', Autêntica conclui reedições de Campos de Carvalho

“Se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir”, escreve Walter Campos de Carvalho na abertura de “O púcaro búlgaro”, o último dos romances (ou novelas, ou sabe-se lá que melhor nome se pode dar ao que ele escreve), relançado pela editora Autêntica.



Há em geral um interesse maior pelos últimos quatro textos, o que relega os ensaios humorísticos de “Banda forra” (1941) e o primeiro título de ficção “Tribo” (1954), a uma espécie de limbo dentro da trajetória de Campos de Carvalho, que é de ter se colocado um tanto à margem do sistema literário e só lentamente daí estar sendo, aos poucos, retirado. “Mineiro e esporádico”, decretou Mário Prata numa crônica em "O Estado de S.Paulo", para definir Campos de Carvalho, aliás, seu primo, nascido em Uberaba, em 1916. 

Em 1995, três anos antes da morte do autor, a Editora José Olympio tentou uma retomada, com o lançamento de “Obra reunida”. Constam dele os quatro últimos livros, com títulos geniais: “A lua vem da Ásia”, de 1956; “Vaca de nariz sutil”, de 1961; “A chuva imóvel”, de 1963; e justamente “O púcaro búlgaro”, de 1964. 

A editora Autêntica relançou os mesmos títulos, mas em volumes separados. O projeto chega ao fim com “O púcaro búlgaro”, a não ser que se decida recuperar também os títulos iniciais, o que talvez fosse bem interessante. 



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O escritor Nelson de Oliveira, na apresentação do livro de Juva Batella “Quem tem medo de Campos de Carvalho?” (7Letras), relembra que o escritor gostava de ser chamado de “o último satanista da literatura brasileira”. Rei da iconoclastia, Campos de Carvalho concedeu entrevistas hilárias em que dá declarações estapafúrdias, reproduzidas pelos jornalistas. Perguntado com qual dos personagens mais se parecia, disse que com nenhum: “Sou louco à minha maneira”. Ou, em outra parte: “Só é doido quem não é”. O tom iconoclasta, aliás, certa vez o fez escrever: “É mais fácil eu existir do que Deus”. 

Também colaborou com cartas imaginárias e com uma coluna chamada “Anais de Campos de Carvalho” para o semanal “O Pasquim”, na década de 1970. Num dos textos das colunas, escreve: “Quando soube que em Copacabana havia apenas meio metro quadrado de área verde para cada habitante, tratei logo de mudar-me para Petrópolis: não que eu pretendesse ali pastar, evidentemente”. Mas depois sumiu do radar e permaneceu assim, à parte. 

Quando fez 80 anos, em entrevista à "Folha de S.Paulo", ele estava há 32 anos sem publicar livros e nem de longe parecia arrependido. Segundo a reportagem, com mais enfado do que amargura, declarou: “Meu editor, José Olympio, disse que eu só seria reconhecido depois de 30 anos. E, agora que todos esses anos se passaram, nenhuma linha na imprensa”. 





Verdade que há silêncios e silêncios. Raduan Nassar escreveu uns quantos livros e depois parou de publicar, mas a obra tem enorme repercussão. Dalton Trevisan e Rubem Fonseca pararam de falar com o público, mas nunca de lançar novos títulos. Campos de Carvalho viu crescer em torno de si um silêncio que até hoje não foi devidamente superado, e que em alguma medida ele mesmo fomentou, embora exista um interesse que parece voltar a ser ativado de tempos em tempos, por exemplo, com estudos como o de Juva Batella e o de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, “Campos de Carvalho contra a lógica” (7Letras). Pela mesma editora, Cavalcanti também lançou uma biografia imaginária do escritor, o romance “Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho”. 

Em torno da obra forma-se, entre os admiradores, uma espécie de confraria, argumenta Nelson de Oliveira, que conheceu o escritor e escreveu um livreto em homenagem a ele, “Campos: retratos surrealistas”, distribuído entre amigos. Mas não seria mal se os leitores decidissem tirar o atraso dos cálculos de José Olympio e colocar o escritor no devido lugar dentro da história da literatura brasileira, expandindo a confraria para além das fronteiras da Bulgária. 

O mais recente relançamento

“O PÚCARO BÚLGARO” (1964)

O narrador do livro diz ter visitado o Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia no verão de 1958, quando se deparou com um púcaro (um vaso com asa) búlgaro. De volta ao país natal, escreve ao diretor indagando se o que viu era mesmo púcaro e, sendo, se era mesmo búlgaro. Começa aí uma sistemática indagação a respeito do que se entende por realidade e pelo sistema de crenças que afinal os humanos estabelecemos para viver. Por que se acredita naquilo em que se acredita, seja o que for. O livro ensina a duvidar, algo que normalmente se faz, mas não com tanta propriedade ou método como o texto ensina. Além do senso de humor muito peculiar, claro. A Bulgária, explica-se, é “sobretudo um estado de espírito. Como Deus, por exemplo”. 





Começa, então, a ser preparada uma expedição para que se possa investigar a fundo, de preferência “in loco”, o problema da pucaricidade ou da bulgaricidade das coisas. Numa nota de rodapé, aventa-se a possibilidade de o autor “escrever um tratado búlgaro provando a inexistência dos demais países”. Porque da Bulgária, amigos, vocês duvidarão todos, se ler o livro. Eis aí algo que se pode afirmar com segurança. 

A conclusão possível — evidente que para ser desmontada — é a de que “o tal mito búlgaro continua a ser cada vez mais e apenas um mito”, aliás como muitos que circulam por aí, impunemente. 

A expedição, no entanto, é pretexto para se refletir a respeito disso ou daquilo, por exemplo: “O que faz o governo para distribuir tão mal suas escuridões é o que ninguém sabe; e o que Deus também faz, muito menos”. Há mais de dois anos perseguido por uma ideia, “sou eu agora que a persigo”. 





A procura por voluntários rende um bando de pessoas atacadas por “bulgarite aguda”: um professor de Bulgarologia, Radamés Stepanovicinsky, natural de Quixeramobim, no Ceará; Ivo que viu a uva; Expedito, “que pelo nome foi imediatamente incorporado à expedição”; e um marinheiro fenício que não se identifica. Por fim, um algebrista, mas que deseja fundar na Bulgária “uma fábrica de acentos circunflexos”, desde que a língua búlgara não os tenha, é claro. 

A expedição não chega a ultrapassar as fronteiras, mas não faz falta, porque ninguém mais sabe mesmo onde situá-las. Não à toa, o narrador diz: “A continuar assim, ainda acabaremos empreendendo uma expedição para descobrir a nós mesmos”. Mal não seria. 

*Paulo Paniago é professor de  jornalismo da Universidade de Brasília

Trecho de “O púcaro búlgaro”

“— A primeira condição para se ir à Bulgária, e já não falo ‘para chegar até lá’ — continuou o professor acariciando o gato — é acreditar piamente que ela esteja ao alcance da nossa mão, como este belo gato está sempre ao alcance da minha mão, tão ao alcance que às vezes chega a confundir-se com ela. 





— De inteiro acordo — falei por falar. 

— O fato de se ir procurá-la não quer dizer que já não a tenhamos achado, ou mesmo que nela não moremos desde o início dos séculos, como é exatamente o meu caso. Ou o senhor pensa que sou o maior bulgarólogo vivo apenas por haver estudado profundamente os costumes dos búlgaros, a sua pré-história e sobretudo a sua não história?

Fiz-lhe com a cabeça que não tinha a menor ideia a respeito. 

— Os búlgaros, veja o senhor, mesmo que não existissem passariam a existir desde o momento em que eu vim ao mundo. Pois, assim como minha mãe me concebeu, eu concebi todas as Bulgárias presentes, passadas ou futuras, e sem a ajuda de nenhum pai, o que é mais importante.”

Outros livros do autor

“A LUA VEM DA ÁSIA” (1956)

“Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica”, começa o narrador dessa prosa. Mas foi legítima defesa, acrescenta. Deixa crescer a barba em pensamento, muda-se para uma ponte sob o Rio Sena, embora nunca tenha estado em Paris e daí a pouco o leitor entende que se trata de um alienado, metido talvez num hospício: “Me jogaram neste hotel de luxo onde os garçons, o gerente e o subgerente andam todos de branco”. Não fica difícil perceber que Astrogildo (ou que nome tenha) fala em nome de Campos de Carvalho quando escreve: “A palavra foi dada ao homem para blasfemar contra o seu destino, e a palavra escrita é a verdadeira palavra, como o defunto é o único homem verdadeiro, em sua mudez total. (Mudez ou nudez, leiam como quiserem)”. A gente lê. (Paulo Paniago)

“VACA DE NARIZ SUTIL” (1961)

À parte as brincadeiras textuais muito evidenciadas, como “pago a pensão com a pensão que o Estado me paga pelo meu estado”, o livro tem como tema de fundo a situação aflitiva desencadeada pelas guerras. Embora, na aparência, tenha algo de superfície pictórica, a partir da brincadeira de que a sutileza do título não corresponde com a brutalidade animal... da vaca, por exemplo. A recorrência do tema da morte ao longo do texto dá um tom também algo sombrio e mostra a capacidade de Campos de Carvalho de operar em registros distintos dentro de uma paleta de largo espectro, mas sempre oscilante entre o nonsense, o absurdo e as indagações mais penetrantes que se possa conseguir. (PP)

“A CHUVA IMÓVEL” (1963)

Se chuva é, para o comum dos mortais, movimento de água, aqui neste livro a história é outra. Texto áspero, escrito depois que Campos de Carvalho perdeu um irmão, o livro reflete de modo mais denso as inflexões existenciais que sempre foram uma marca importante para o escritor. Um delírio, entre lírico e filosófico, molda o/a narrador/a André/Andréa. O humor desenfreado dos outros livros está muito mais contido neste texto, ou pelo menos se apresenta de outra forma. Há uma sensação sufocante mesmo de imobilidade em tudo que deveria estar em movimento, o que reforça a ideia de paradoxo. Sonhar, dormir, morrer, tudo parece fazer parte do mesmo andamento. (PP)


 “O PÚCARO BÚLGARO”
Campos de Carvalho
Autêntica
112 páginas
R$ 59,80 
R$ 41,90 (e-book)