Chama a atenção logo nas primeiras páginas de “Baixo Araguaia” a ausência de adjetivos de par com descrições detalhadas, o que arrasta o leitor para longe de qualquer suposta zona de conforto. “Ainda não sabemos qual é o rosto da moça que respondeu pela janela quando anunciamos nossa chegada no portão. (...) Fica dentro desse único quarto para que eu possa catalogar bibelôs, muitos paninhos (no fogão, na mesa, na TV, no botijão de gás, na geladeira e nos dois braços do próprio sofá) e um relógio de parede dourado em formato de relógio de pulso. Pela fresta da porta do banheiro, vejo também vários potes de cremes e perfumes da Avon arrumados por ordem de tamanho na prateleira em cima da pia: Topázio, Charisma, Toque de Amor.”
O inventário das coisas e cenários numa não nomeada cidadezinha no Centro-Oeste brasileiro é quase opressivo, porque é de tal substância silenciosa e visguenta que a novela se compõe. “O sol do Centro-Oeste deixa a pele sempre bronzeada, mas é tão forte que às vezes derrete nossa vontade de viver.” Também em razão da perspectiva do narrador: uma menina de 13 anos que luta pela expansividade num lugarejo inóspito cortado pela BR-158, cujos horizontes aparecem como possibilidade remota de fuga ainda que “com a estrada tão ali ao lado, não parece difícil escolher uma das direções e ir embora”.
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Com 'O púcaro búlgaro', Autêntica conclui reedições de Campos de CarvalhoEm 'Baixo Araguaia', Maria Lutterbach traz mutações do interior brasileiroPrimeira leitura: 'Cerveja amarga', de Rebeca MaiaBebel Soares lança 'Sem paraíso e sem maçã' e discute a maternidadeAutora mineira Nara Vidal lança 'Eva', romance sobre a opressão da mulherReedições de 'A estrela sobe' e 'Oscarina' recuperam Marques RebeloDaí que o silêncio perpassa a trama como bem-sucedida estratégia narrativa. Silêncio que assenta nas páginas como o pó vermelho que cobre tudo na vila, que solda as relações com o pai, este descrito como miragem. Silêncio que leva a narradora a refletir sobre a natureza do amor ao se deparar com o namoro de dois adolescentes.
“Ela diz que os dois não têm muito o que conversar e passam horas quase em silêncio, mas sem vontade de sair um de perto do outro. Então deve ser isto namorar: dar um ou dois beijos no meio de silêncios compridos.” (grifos meus) Na relação entre mãe e padrasto: “Aqui em casa as brigas são em silêncio”. O amálgama afetivo dá-se mais com a empregada Solange e a amiga Cris e de forma corpórea com dois adolescentes objetos do incipiente, amedrontador e incontrolável desejo da narradora.
“Baixo Araguaia” é dividido em três partes e cada uma delas é subdividida em pequenos capítulos com nomes de bichos; nem todos da fauna local, como elefante e cisne, por exemplo. Cada divisão remete ao crescimento de animal alado: O ovo; A asa; O voo. Outro recurso editorial são os raros diálogos, ou antes locuções, dos personagens, com aumento dos tipos e espaçamento na mancha de texto. Esses procedimentos editoriais, a meu ver, desviam o leitor para a potência do texto. Ainda que se trate de fragmentos num curto tempo de ação, a narrativa acentuadamente compactada, de forte expressividade plástica, ganharia mais se corresse livre de obstáculos – sem desmerecer a de resto zelosa edição. Penso como exemplo do que comento os livros de Marília Garcia, onde a compartimentação opera pequenas decalagens, como manifestamente a própria poeta carioca insinua em teste de resistores.
LITERATURA SÓ OSSO
Num momento em que a literatura brasileira, como aponta Flora Sussekind, volta-se para o beletrismo e o neonaturalismo como categorias chanceladas pela academia e absorvidas pelo público – o restrito público leitor de literatura adulta no Brasil –, e de certa tendência ao regionalismo e explosão identitária amarrado a questões de cor e gênero quase para não dizer de forma ampla documental – quero frisar que tais questões são de enorme relevância para a cultura e o amadurecimento social de nação desigual, mas que em termos estéticos ou nada acrescentam ou tem efeito regressivo, “Baixo Araguaia” tem qualidades – com o perdão de superlativizar, mas já o fazendo – excepcionais.
Listo brevemente as que me chamaram mais a atenção. O ritmo das orações curtas, ausência de autocomplacência, evocação de sinestesias (é possível sentir o calor dantesco, a acidez do suor, a doçura do sangue, a inclemência da luz), controle narrativo, elisão sem exagero, nenhuma folclorização, zero glamourização.
Estamos nos anos 90, num período imediatamente anterior ao momento de estabilização político-econômica que virá a partir do Plano Real e dos governos do PSDB e PT, durante o qual o país se fortalece institucionalmente e nova classe média emerge. A personagem e narradora vive numa área do Pará ou de Goiás (não se identifica cidade ou estado, mas se presume a partir da BR e do trecho do rio que nomeia o livro) com mãe e padrasto, que para lá se deslocaram, como centenas de milhares de brasileiros, em busca de oportunidades. Momento de transição e abertura econômica, início do neoglobalismo e neoliberalismo, que convivem com organizações mais arcaicas.
Há flashes da nova colonização com fazendeiros e suas caminhonetes – emergência do agro, do novo agro de comodities que regressivamente minarão o parque industrial brasileiro. As diversões são poucas, a televisão parabólica ainda não fincou como matriz de entretenimento: o clube Nacional (instituição tão presente nas pequenas cidades argentinas e uruguaias e que se apresentam na literatura daqueles países como em “Respiração artificial”, de Ricardo Piglia, ou em “Santa Fé”, de Onetti); pequenas festas, deslocamentos em bicicleta, longa viagem em estradas precárias num Gol (carro popular da nova classe média e que veio a substituir o Fusca – o russo Niva, citado na novela, foi o primeiro carro da “abertura dos portos” do governo Collor).
Tudo como se vê muito prosaico, nenhuma idealização, profundo tédio, vidas sonolentas, sestas duradouras, pestanejar de adultos. No meio disso, o despertar desejante da menina cujo nome nunca saberemos e é ótimo que assim seja. Essa defasagem de ideal e glamour está na própria economia da linguagem, que, embora arraste tudo, não arrasta muito porque não há grande coisa a abarcar – a imagem do remanso me veio à mente. Contudo, é por dentro, mas sem que se nomeie, que pulsa o coração selvagem da adolescente ou, como se autodescreve, a pré-adolescente. No primeiro beijo e finalmente na primeira experiência sexual (aqui a mancha vermelha entre páginas é a exceção que funciona no projeto editorial).
Há correlação com a gata que emprenha; imagem que ligeiramente força a barra como equivalência do rito de passagem da própria narradora. Mas é na chegada do circo e na figura admiravelmente bem descrita da jovem acrobata que o desenlace se faz; ocorrência que do meu ponto de vista encaixa-se na melhor parte de “Baixo Araguaia”, a última.
O inventário das coisas parece ceder ao sonho e ocupar a impossibilidade da expansão e mesmo o pouco de interiorização limita-se ao visto, como é o caso do primeiro capítulo da terceira parte, quando a narradora desvela a família de ciganos, ou que ela imagina cigana, hospedada numa casa ao lado da sua.
“Nessa noite, sonho com a partida deles. Mesmo com pouca luz, os ciganos são rápidos em juntar a bacia de alumínio, os talheres e outros objetos espalhados pelo lugar, armando trouxas grandes e colo-ridas. É o menino quem cuida de desamarrar ao lado das cinzas e ela logo alcança o alto do céu. Sempre alguns metros à frente da família, a águia mostra o caminho, soltando uns gritos de festa por voar.” Numa vila de população transitória, chegada e partida são polos referenciais de atração e repulsão, e a presença de novos moradores – a exemplo dos trânsfugas do parágrafo anterior – opera deslocamentos decisivos.
A geração feminina a que pertence a autora-narradora ainda convive com formas submissas de educação com gradual permissividade nos costumes; transformação que já alcançava classes médias urbanas e há pelo menos duas décadas retinha resquícios tradicionais na província, sobretudo entre a baixa classe média. As idas à igreja e a primeira comunhão da personagem são flagrantes a respeito disso.
Lido sob a perspectiva de implicações sociológicas, “Baixo Araguaia” é retrato dum país em franca transformação, conquanto saibamos que a década de 90 operou inflexão de liberdades individuais e o retorno de fundamentalismos no campo religioso com o alastramento do neopentecostalismo.
A ESPERADA PASSAGEM
Há o despertar do desejo e da posse dele pela menina recém-ingressa na puberdade e que sonha controlar seus passos, se descolando do núcleo família meio esfacelado, que quer ganhar o mundo numa cidade grande, e nessa passagem o circo – diversão arcaica nos grandes centros, mas ainda fulgurante de miragens em localidades remotas – funciona como a esperada passagem, ou a fuga emancipatória. À semelhança do sonho com a águia alçando voo, ao conhecer ou observar a acrobata Sarita, o universo onírico torna-se novamente rota de fuga e liberdade.
“No meu sonho dessa noite, Sarita surge com uma roupa de gala violeta em um enorme cortejo de elefantes que interrompe a rodovia. Ela tem uma seta luminosa em cada mão e aponta para a esquerda e para a direita, olhando para mim, enquanto repete:
– Basta escolher uma das duas direções, queridinha, não é fan-tás-ti-co?
É a partir da visão da menina acrobata e sua promessa de romper a crisálida asfixiante que “Baixo Araguaia” dá como que pirueta narrativa na parte final, onde o desejo de ir embora se torna antes potência não realizada, mas descrita ou projetada , embaraçando realidade e sonho, e desorientado o leitor, isto é, realizando o que só a literatura (a arte) é capaz de realizar.
BAIXO ARAGUAIA
• Maria Lutterbach
• Editora Quelônio
• 100 páginas
• R$ 56
• Lançamento amanhã (7/5), das 11h às 14h, na Quixote Livraria – Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, em Belo Horizonte
* André Nigri é jornalista e escritor, autor dos livros “Paralisia” e “Com a corda no pescoço”