Jornal Estado de Minas

AS ESTRELAS RENASCEM

Reedições de 'A estrela sobe' e 'Oscarina' recuperam Marques Rebelo

Quando Leniza veio ao mundo, sua mãe já havia perdido uma filha. Seis anos antes, aos quatro meses, a pequena Mariza faleceu devido a uma gastroenterite. Foi o pai quem lhe deu o nome, como também já havia feito com a primogênita. Quando ele morreu, “dona Manuela viu-se na miséria. Mas não ficou ao desamparo. Mudou-se para a casa de uma comadre, viúva e sem filhos, que alugava cômodos. A casa ficava numa ladeira da Saúde”.



E foi neste bairro carioca, conhecido por ser o berço do samba, que Leniza cresceu. Após a morte da tal comadre, sua mãe herdou a casa e o aluguel dos cômodos; agora, no final dos anos 1930, Leniza está decidida a se tornar uma estrela do rádio – e por que não seria?. É jovem, bonita, chama a atenção por onde passa e tem um gênio que só as grandes estrelas são capazes de exibir. E também porque, ora, é o prato perfeito para Marques Rebelo, um dos grandes escritores da primeira metade do século 20, pintar um painel não só do Rio de Janeiro, mas do Brasil.

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Publicado em 1939, “A estrela sobe” foi o segundo romance do autor carioca, eleito para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras em 1964. Pela agilidade, quase poderia ser lido como um folhetim. A ausência de capítulos, os diálogos afiados, a beleza transbordante de Leniza, que se envolve com uma miríade de coadjuvantes deliciosos: tudo aqui vibra um frescor que muitos dos grandes clássicos têm dificuldade de segurar. É raro, mesmo hoje, encontrar personagens tão cativantes.

A trama de arrivismo já seria deliciosa pela história em si, recheada de boas figuras, mas a escolha de Marques Rebelo por um narrador escrachado, que faz das notas de rodapé uma comédia sem fim, torna tudo mais divertido. E talvez seja esta a palavra para definir a leitura: diversão. Nas 270 páginas, mesmo os momentos dolorosos são tomados pela inequívoca sensação de estarmos diante de uma grande história filtrada por seus personagens.



A Marques Rebelo importa menos a clássica epopeia de ascensão social e mais as minúcias do dia a dia longe da Zona Sul, o cotidiano áspero que não tira de Leniza Máier, como ficará conhecida do grande público, o desejo irrefreável. Seja quando se relaciona com homens sabidamente maus, ou quando passa alguém para trás, nossa estrela não arremete: sua necessidade de ascender é tamanha que quaisquer moral ou costumes precisam dar espaço à sua figura imponente.

Por outro lado, se grandes nomes já pintaram o Rio de Janeiro como uma Cidade Mulher, conforme aponta a crítica Beatriz Rezende em seu texto de orelha, Leniza Máier é não somente uma mulher, mas também um resumo perfeito do que seria essa cidade – ainda hoje um espaço que bole e escapa, esmiúça e descarta, ama e odeia.

O historiador Luiz Antonio Simas, que assina o prefácio, confirma essa tese: “O balneário cosmopolita, famoso no mundo pela beleza da orla emoldurada por montanhas na Zona Sul, longe de se definir na fixidez de uma imagem turística sedutora, na obra de Rebelo pulsa e se revela nas vielas suburbanas, nas biroscas e nos cabarés do cais do porto Cidades opostas? Não. É a mesma cidade tensa e intensa, complexa, fascinante, cosmopolita e provinciana, estrelar e decadente”.





Entretanto, a coisa muda de figura quando lemos “Oscarina”, livro de estreia de Marques Rebelo, publicado em 1931, também reeditado pela José Olympio com capa de Leonardo Iaccarino sobre desenho de J. Carlos. Ao contrário de “A estrela sobe”, aqui há um livro mais duro, típico das estreias, que o tempo todo parece tatear os temas que serão trazidos na futura obra do autor, nascido Eddy Marques da Cruz e carioca de Vila Isabel.

À exceção de algumas histórias – notadamente o conto-título, praticamente uma novela, “Felicidade”, cujo ethos Leniza Máier retomará, e “Em maio”, um primor –, a irregularidade do volume acaba valendo mais para ver o Rio através desse olhar das frestas. Já na estreia, uma linha evolutiva da observação urbana, chamemos assim, se impõe. A história de personagens como o cabo Gilaert ou Clarete refletem como o Brasil, e o Rio de Janeiro, nesse caso, são excelentes em olhar para sua gente sem querer dourar a pílula.

Na leitura, tudo parece marcado pela “sombra de nostalgia”, como define o escritor Marcelo Moutinho no prefácio, característica que contamina as 16 histórias à medida que traz o subúrbio e a ausência de glamour para o centro do palco. Há também aqui a tensão entre cidade-espetáculo e a vida comum, na qual dinheiro e fama não passam perto. Como conclui Moutinho, “‘Oscarina’ nos lembra que a literatura é também o lugar dos ferrados, dos invisíveis, dos maltratados, dos vencidos”.



Lidos em conjunto, quiçá sobrepostos, “A estrela sobe” e “Oscarina” são a recuperação de Marques Rebelo e de um país que parecia perdido nas estantes, mesmo que muito visto no dia a dia. Revisitá-los em 2022 parece um acerto de contas, acima de tudo, político. Ganha a literatura, ganha o Brasil.

Mateus Baldi é escritor e jornalista. Mestrando em letras (PUC-Rio), criou a “Resenha de bolso”, voltada para a crítica de literatura contemporânea. É autor de “Formigas no paraíso” (Faria e Silva, 2022).

Depoimento/  “A estrela sobe” 

“Expressão do cotidiano da cidade”

Luiz Antonio Simas

“Considero Marques Rebelo um dos cinco autores fundamentais para a definição da base de certa literatura carioca, aquela que tem a cidade do Rio de Janeiro não apenas como cenário da trama, mas como um de seus personagens principais. Ao lado dele, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio. A importância de sua literatura urbana, e ao mesmo tempo a marca de “A estrela sobe”, é trazer uma cidade que muitas vezes foi obnubilada pela literatura e pela história: não é centrada no cartão-postal – a Zona Sul, a praia, um centro suntuoso e com ares europeus – e nem é centrada na pobreza material e na riquíssima cultura produzida nos morros e periferias.



Ela traz para a boca de cena a baixa classe média dos subúrbios da cidade, com seus personagens desprovidos de qualquer recorte épico, em um contexto de redefinição de hábitos de consumo (as décadas de 1930, 40 e 50), transformações urbanas, consolidação do que seria a música urbana brasileira, os impactos do rádio e coisas do tipo. Essa literatura do cotidiano da cidade é a marca maior do autor.”

“A estrela sobe”
Marques Rebelo
José Olympio Editora
272 páginas
R$ 59,90


Depoimento/ “Oscarina”

Visibilidade aos invisíveis

Marcelo Moutinho

“Penso que o relançamento de ‘Oscarina’ é importante por diversos motivos: primeiro, por colocar no catálogo um livro que estava esgotado há muito tempo; e segundo, porque é um livro de estreia em que Marques Rebelo já vai exibir características de sua obra futura. Um dos contos traz uma protagonista que lembra muito a Leniza Máier de “A estrela sobe”, que talvez seja a sua obra mais célebre.

Mas também já estão ali o interesse pela classe média baixa, o olhar para as ruas, e a cidade, o Rio de Janeiro, é praticamente um personagem. Não é o Rio de Janeiro dos cartões-postais, mas um Rio que se localiza entre o Centro e a Zona Norte, um universo para o qual Marques Rebelo olha com muito afeto. Sua literatura dá visibilidade aos invisíveis, àqueles que a sociedade costuma colocar na prateleira de baixo, tentando iluminar essas vidas.”

“Oscarina”
Marques Rebelo
José Olympio Editora
208 páginas
R$ 54,90