Há um mapa ancestral na minha cabeça
com avenidas, ruas, trilhas, becos e vielas
Estradas sem-fins com mil andanças
das pretas velhas que vieram antes
das pretas novas
que acabaram de passar
dos espíritos inquietos que não descansam
Há tempos
todos os dias,
as ancestrais
Estão a me guiar. (Elizandra Souza)
Não há exagero no título desta resenha. Vejam: apenas em 2021, foram publicadas precisamente cinco antologias contendo a produção literária de escritoras negras! Um fato tão relevante como revelador. E neste total não está computado o número 43 da publicação coletiva Cadernos Negros, com edição anual ininterrupta desde 1978, no qual a autoria feminina abrange aproximadamente dois terços das quase quinhentas páginas do livro. Somadas as autoras aí presentes, temos um expressivo número de mulheres, vindas dos mais diferentes pontos do país, adentrando pela literatura brasileira! O Portal Literafro é testemunha deste feito, pois tem registrado cada uma das publicações.
A primeira foi “Carolinas: A nova geração de escritoras negras brasileiras”, organizada por Júlio Ludemir, surgida a partir de dois grandes impulsos: a provocação inerente à obra de Carolina Maria de Jesus, e o incentivo da Festa Literária das Periferias – a conhecida Flup. Só essa antologia trouxe a público nada menos que 180 escritoras, que deixaram grafadas as suas vozes em poemas, crônicas e contos, ou em diários e relatos autobiográficos. A editora responsável foi a Bazar do Tempo de São Paulo.
Quase simultaneamente surgiu o primeiro volume de “Quilombellas amefricanas”, organizada por Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún, que amplia o leque literário feminino acolhendo poetas para além das fronteiras nacionais, com o gesto comum de aquilombar através da palavra. Sua editora foi a Ogum’s Toques, de Salvador.
Só que um volume não foi suficiente para conter a explosão poética feminina, tantos eram os talentos que mereciam ser mostrados. Daí as mesmas organizadoras – Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún – decidiram trazer a público o volume 2, também marcado pela diversidade de vozes e a força renovadora da literatura.
A quarta antologia surgida em 2021 foi “Poetas negras brasileiras”, que a escritora e cordelista cearense Jarid Arraes organizou e publicou pela Editora de Cultura de São Paulo. Estão aí mais de 70 autoras, ou seja, outra avalanche de nomes surgidos de diferentes regiões e também de origens e idades diversas. Ao lado de nomes já conhecidos e respeitados no cenário das nossas letras estão as poetas e escritoras que chegam para somar e ampliar a literatura contemporânea.
Por fim, eis que surge a quinta antologia do ano: “Literatura negra feminina: Poemas de sobre(vivência)”, organizada por Elizandra Souza e Iara Aparecida, que contém ainda verdadeiro roteiro pedagógico sobre os caminhos que levam da leitura à escri- tura. A editora responsável é a Mjiba, de São Paulo, que dá um show na diagramação e oferece um trabalho gráfico com páginas bem coloridas lindamente ilustradas com flores, figuras e fotos, que dá gosto ler e folhear.
A antologia traz, além de informações bibliográficass e poemas das escritoras aí presentes, uma inédita e necessária cronologia da produção literária de autoras negras brasileiras, desde o ano de 1859, inaugurado por Maria Firmina dos Reis, até as jovens que publicaram em 2020. Considero esta linha do tempo, fruto de intensa pesquisa das organizadoras, verdadeiro presente para leitoras e leitores.
O livro está organizado em cinco capítulos. O primeiro traz o texto “Memórias diaspóricas: Vivências e ancestralidades de escritoras negras”, assinado por Elizandra Souza e Iara Aparecida, que reitera a proposta do Coletivo Mjiba de recolher e dar visibilidade à produção literária de mulheres negras, e continuar a luta iniciada por grupos anteriores. O espírito do Sankofa ecoa nesse projeto: “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”.
No segundo capítulo, estão as trinta escritoras que se autoapresentam de forma espontânea e coloquial, seguidas de alguns poemas ou prosas poéticas. Os temas variam, mas há uma tendência em denunciar o racismo, o machismo, bem como em proclamar a consciência de mulher negra disposta a superar o que mais vier pela frente. Alguns exemplos:
Estive me procurando esses dias
Eu que já fui calmaria, e tantas vezes o grito que ninguém ouvia,
Mergulhei em mim mesma e fui minha própria companhia.
Lembrei das muitas que já fui, imaginei as muitas que ainda serei.
(“Tempestade e calmaria”, Ana Beatriz, p. 49)
Pular muro é pouco, agora é tempo de empurrar paredes inteiras sem pedir licença. O tempo não tem sido manso com os corpos negros, por que haveria de serem mansos os sobreviventes? Quando se rasgam os corpos rasgam-se também os mundos, mulheres negras sabem muito bem o que é isso, pois carregam consigo todos os mundos que desconstruíram para que os corpos dos filhos se mantenham vivos.
(“Aquilombar nunca foi verbo manso”, Graça Marques, p. 87)
Na beira do abismo
Mergulhei profundo
Dentro de mim
E lentamente me banho
Do meu próprio amor
De volta à superfície
Seco meu corpo-morada
Ao sol da cozinha
Lugar agora reiventado.
(“Corpo morada”, Mafalda Pequenino, p. 118)
Eu, mulher negra, resisto.
Resisto ao seu racismo descarado ou velado na sua falsa bondade.
Resisto ao padrão medíocre imposto e alimentado por você.
Resisto à sua colonização todas as vezes que cubro meu ori e reverencio com meu ojá todas aquelas que guerrearam antes de mim.
Eu, mulher negra, resisto e não me calo.
(“Eu, mulher negra, resisto”, Maza Dia Mpungo, p. 129)
A partir do terceiro capítulo tem início uma série de “dicas” que considero preciosas, pois visam orientar e incentivar as futuras escritoras. Os conselhos, apresentados de forma direta e didática, revelam a experiência e a autoridade de quem os escreve.
Cito alguns:
Leia escritoras negras que vieram antes;
Referencie escritoras negras; tenha em mãos pelo menos 10 escritoras do gênero que deseja escrever;
Acompanhe o trabalho das contemporâneas de escrita;
Não faça outras mulheres pretas de degrau, os brancos fazem isso muito bem;
Acredite na sua literatura a ponto de investir financeiramente e se autopublicar, se necessário. (p.160)
“É impossível ser escritora sem antes ser leitora”
Há, ainda, sugestões de autoras brasileiras, afro-americanas e africanas que devem ser conhecidas, até porque – são as organizadoras que afirmam: “É impossível ser escritora sem antes ser leitora”.
No capítulo quatro, Iara Aparecida reflete sobre a importância da “Literatura negra infantil” para a formação de novos leitores e de espírito crítico. E no quinto, temos a apresentação das responsáveis pelo excelente trabalho gráfico – Dayse Oliveira e Silvana Martins –, a divulgação de outros títulos da Editora Mjiba e uma página disponível para a leitora escrever uma minibiografia, um poema ou conto, e assim fazer parte também da antologia.
Voltando à linha do tempo que integra o livro, ela se justifica plenamente no projeto abraçado pelo Coletivo Mjiba, que, desde o começo, trabalha para incentivar o surgimento de novas escritoras, e contribuir para o estabelecimento de uma história literária de autoria negra feminina no Brasil. Mjiba, é bom lembrar, significa “jovem mulher revolucionária” na língua chona, do Zimbábue, e assim eram chamadas as guerrilheiras que lutaram pela independência de seu país.
Elizandra Souza e Iara Aparecida – duas empresárias e ativistas conhecidas – são também mulheres mjibas, pois lutam para dar voz e protagonismo a outras mulheres negras. Ainda em 2021, Elizandra Souza celebrou os vinte anos de carreira através de um livro bilíngue (português/inglês) que conta a própria trajetória, e tem um título provocador: “Quem pode acalmar esse redemoinho de ser mulher preta?”.
Enfim, 2021 definitivamente entrou para a história da literatura negra brasileira, assim como as editoras que a incentivam.
Referência: SOUZA, Elizandra B., MORAES, Iara A. (org.). “Literatura negra feminina: Poemas de sobre(vivência)”, São Paulo: Mjiba, 2021.
* Constância Lima Duarte é professora do PósLit UFMG, autora, entre outros, do
"Dicionário de escritores mineiros" e de "Imprensa feminina e feminista no Brasil
vol. 1, séc. XIX"