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Estado de Minas PENSAR

Ivan Ângelo: 'Sex shop é uma metáfora do país'

De volta a Belo Horizonte na próxima semana para participar da Bienal, escritor fala sobre 'Sex shop miscelânea libidinosa', seu livro mais recente


13/05/2022 04:00 - atualizado 13/05/2022 12:09

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Ivan Ângelo: 'A BH de hoje ficou mais igual às outras metrópoles brasileiras, São Paulo dando o mau exemplo. Mesmo barulho, mesmo trânsito confuso, mesma insegurança nas ruas, mesma desigualdade, bairros espigados tomando conta das serras' (foto: Quinho)

Sem fazer alarde, Ivan Angelo construiu, ao longo de mais de meio século, uma obra pra chamar de sua. Seja no romance, no conto ou na crônica, o cara é craque. Vencedor dos mais importantes prêmios literários brasileiros e consagrado com livros como “A festa” (1975) e “A face horrível” (1986), nunca vestiu o manto do artista consagrado. O escritor mais antimarketing que conheço sabe que o tempo da literatura nunca foi o tempo da indústria. E que as vezes é preciso ficar calado. Seguir escrevendo. Mas calado.  

Daí o misto de felicidade, e curiosidade, que a gente sente quando um livro dele chega às livrarias. “Sex shop miscelânea libidinosa” (Faria e Silva) reúne contos, poemas e ensaios sobre o sexo.  “O livro é uma metáfora do país”, ironiza Ivan, mineiro de Barbacena, onde nasceu em 1936. 

Jornalista desde muito cedo, Ivan publicou, ainda 1961, “Duas faces”, volume que reuniu sete contos seus e duas novelas do, também estreante, Silviano Santiago. Os dois faziam parte do grupo que editou Complemento, ainda nos anos 1950. A revista teve quatro números. E acabaria dando nome à geração.

E que geração.  O grupo reunia talentos multidisciplinares, e que não se interessavam apenas por literatura: cinema, teatro, dança e artes plásticas faziam parte do papo desta turma. Dele fizeram parte, entre outros, um grande renovador da dança no Brasil: Klauss Vianna. E, pasmem garotos, Ezequiel Neves, o futuro produtor musical, e que seria o mentor de grupos de rock como o Barão Vermelho.

Para falar sobre o novo livro, da geração Complemento e muito mais, Ivan conversou com o Pensar. Confira abaixo os melhores trechos. 

O sexo, e seus “derivados”, permeia quase todas as narrativas do livro. Recentemente, você disse que o “Brasil é um vasto sex shopping”. Como chegamos a este ponto?
Shopping é o quê? É vitrine, mostra, coisas postas à vista, à venda. Sexo era o escondido, o por trás da banca, o por baixo do balcão. Os corpos eram menos expostos, desejos eram secretos, desvios eram sufocados, casais não brincavam de par ou ímpar, jovens não transavam na casa dos pais. Não estou dizendo que era melhor, só que a intimidade era menos visível, sem exibição tipo loja, loja de sexo, nada a esconder. A intimidade mudou. “Mande um nude” virou brincadeira de celular, até entre quem não tem intimidade. Então, um livro cujo assunto é o sexo moderno nesse exibido Brasil moderno não tem pudores de se chamar ‘Sex shop’ e de ser uma metáfora do país.

O livro me fez lembrar sua pré-história, do tempo do Correio de Minas. Lá, você escrevia um folhetim meio sacana, que contava os casos de amor de Christine Keeler, uma modelo inglesa famosa na época. Curiosamente, porém, o livro que o projetou, “A festa”, tem uma pegada que não diria engajada, mas política. O que prefere: falar da política ou da vida íntima?
As duas coisas podem andar juntas, o lado social e a intimidade, numa ficção ou na vida real. No caso daquela brincadeira que fizemos no Correio de Minas com a modelo Christine Keeler, a atividade dela na cama tinha implicações porque ela transava ao mesmo tempo com um alto funcionário do governo inglês e com um diplomata soviético espião. O que passava de um corpo diplomático para outro, além de saliva e outros fluidos, foi a base do escândalo. No meu livro “A casa de vidro”, a primeira história, que se chama “Conquista”, funde as duas coisas, a vida íntima e a atuação político-social. O personagem é um predador de mulheres e de trabalhadores. Veja, o assunto de um livro é um dos elementos que o autor manobra literariamente, faz parte de um todo, junto com as técnicas, a linguagem, a estrutura, as intenções amplas da obra. Em “Sex shop”, os contos, os textos poéticos e aqueles sobre comportamentos têm essa perspectiva, acredito: trata-se da vida íntima, mas não é só isso. Não há nunca a intenção de erotizar o assunto, excitar sexualmente o leitor.

Entre “Duas Faces”, de 1961, e “A festa”, de 1976, existe um intervalo de 15 anos. Você só pensou em escrever outro livro, depois de uma viagem que fez à Europa em 1972: lá se encontrou com o Fernando Gabeira, exilado. “A festa” tem nos agradecimentos o nome dele. Que lembranças você tem desses anos? Ainda mantém conversas com ele?
As conversas com os exilados do pós-1968 brasileiro na Europa, principalmente o Fernando, colocaram em movimento um livro que eu havia planejado e começado a escrever em 1963, em Belo Horizonte. Era “A festa”, o mesmo título, mas outra festa, outro país, pré-golpe militar. Com o golpe, o livro parou, ficou engasgado enquanto eu fazia jornalismo e publicidade em BH, continuou engasgado depois que me mudei para São Paulo, no fim de 1965, ficou mais engasgado ainda com a censura e aquelas atrocidades todas do pós-1968, até que me deram um tapa nas costas em 1972, na Europa, e o engasgo saiu. Replanejei o livro, incluí a ditadura, retomei o texto em 1973, concluí o livro em 1975, publiquei em 1976. Demorou a sair porque não era fácil achar editor para uma coisa daquelas. Quando o Fernando voltou, retomamos a amizade, ele inclusive morou em São Paulo um tempo, ficou na minha casa, escreveu um livro lá, acho que foi “O crepúsculo do macho”. Atualmente, moramos em cidades diferentes, não vou ao Rio há uns oito anos, porque tenho implicado com a cidade, o distanciamento piorou com a pandemia, conversar é raro, mas a amizade é a mesma. 

Você entrou para a o jornalismo pelas mãos de Cyro Siqueira, que o convidou para escrever uma coluna semanal de literatura no Diário da Tarde, chamada “Plantão Literário”. Pode contar um pouco dessa história?
Sim, é verdade. O Cyro chefiava o Diário da Tarde, era o mais importante crítico de cinema da cidade, um dos fundadores da importante Revista de Cinema, era do CEC, Centro de Estudos Cinematográficos, e muito ligado à cultura. Volta e meia, eu publicava no DT umas crônicas, na seção Revezamento. Contos, aqui e ali. Eu despontava como escritor antes de ser jornalista. O Cyro me ofereceu essa coluna, em que eu comentava os lançamentos de livros e revistas literárias. Depois me convidou para ser repórter, em seguida redator, para reescrever notícias. Nos setores de polícia e de cidade havia repórteres de ótimo faro que não sabiam escrever. Me tornei jornalista porque não sabia fazer outra coisa senão escrever, como é o caso de quase todo jornalista, de Machado de Assis a Antônio Prata. 

Há mais de 50 anos fora de Belo Horizonte, que imagem você tem hoje da cidade? Sente saudade? Que relações tem com a tal mineiridade?  
Gosto muito de uma frase do escritor Humberto Werneck, excelente mineiro nacional: ‘Sou mineiro, mas não pratico’. A prática seria a mineiridade? A ideia de mineiridade me faz procurar qualificações correspondentes em outras terras, outras gentes. Existe carioquidade, gauchidade, paulistidade, pernambucanidade, roraimidade? Já ouvi falar baianidade, mas a coisa para aí. É o mesmo caso da mineiridade. No fundo, no fundo, é achar que seus hábitos e costumes são mais especiais do que os de outros estados, não é não? Acho o sufixo ‘ismo’ menos pretensioso, mineirismo, carioquismo, gauchismo. Quanto a BH, alguma coisa acontece no meu coração quando cruzo a avenida e chego ao Mercadão. Tenho ido menos a Minas do que gostaria, mas cidade nenhuma supera em saudade e lembranças a BH dos anos de 1950 e 60. Lá se juntavam as buscas e os achados, o perigo de perder-se e a ternura das namoradas, as madrugadas sem riscos em papos infindáveis com os amigos da Complemento, o ir e vir a pé para entregar as moças em casa, os botecos e restaurantes que nos suportavam... A BH de hoje ficou mais igual às outras metrópoles brasileiras, São Paulo dando o mau exemplo. Mesmo barulho, mesmo trânsito confuso, mesma insegurança nas ruas, mesma desigualdade, bairros espigados tomando conta das serras. Não é saudosismo, é realismo. Em compensação, o Mercadão melhorou muito.

Sua avó foi professora. Uma mulher trabalhando fora, como você disse certa vez em uma entrevista, era incomum no início do século passado. Quanto isso ajudou a formar a relação que você tem com as mulheres?
Meus avós eram realmente um casal diferente. Uma mulher que o marido chamava de bugra, quando brigavam, e um homem branco e bronco que tinha herdado do antepassado Visconde do Rio das Velhas aquela arrogância dos antigos proprietários. Talvez por não ter estudado não aprumou, tinha só uma chácara em Venda Nova. Minha avó punha dinheiro em casa. Minha mãe nunca teve empregada, e criou oito filhos. Sempre, sempre, admirei as mulheres, a capacidade que elas têm de ser muitas. Três irmãs crescendo junto com cinco irmãos, mãe, avó que só teve filhas e que são minhas quatro tias, minhas três filhas, só tive filhas, mulher, ex-mulher, ex-namoradas, amigas, colegas – tive e tenho um campo de afetos e de aprendizagem muito grande, prazeroso. Meninas jogavam futebol conosco na rua, nós brincávamos de roda com elas, aprendíamos com as mesmas regras. Nos revezávamos igualmente nas tarefas da casa de família sem empregados. Isso ajuda muito.

Que lembranças tem da geração Complemento? 
Nos primeiros tempos, aí pelo ano 1956, a gente começava a se reunir no fim da tarde na esquina da Livraria Rex, na Praça Sete. Era uma esquina quente aquela, naquele horário, com várias turmas. Tinha grupinho de jornalistas, com o Mauro Santayana, o ruivo Charles Corfield e o Tião Nery; grupinho de líderes estudantis, Zé Nilo Tavares e outros; grupinho de artistas plásticos, com gente que estudava com Guignard; grupinho de cinema, com algum pessoal do CEC etc.; e o grupinho da Complemento, com Heitor, Flávio, Theotônio, Ezequiel, Ary, Frederico, Silviano e outros. Cada turminha no seu ponto. Tais ajuntamentos provocaram a curiosidade da Polícia Social, e botaram lá um cara para sapear as conversas dos grupos. Acho que foi o Mauro Santayana quem pegou um pedaço de giz branco, fez um círculo no chão e escreveu em letras grandes TIRA, marcando o lugar dele. O cara sumiu. Um pouquinho mais tarde, a nossa turma subia a Av. Amazonas, dava uma passada na Livraria Itatiaia, que era uma porta e uma vitrine no Edifício Dantés, seguia e abancava-se na vizinha leiteria Tirolesa. Aí passávamos horas tomando “mosca”, nome que o Carlão, Carlos Kroeber, deu para uma mistura de conhaque Castelo com Coca-Cola e muito gelo. Quando eu cheguei, estava saindo o primeiro número da revista Complemento. O grupo foi inchando, agregando mais poetas, pessoal de cinema, teatro, artes plásticas, balé e dança moderna, música, jornalistas, críticos de arte, intelectuais variados, outros grupos da esquina da Rex. E quando saiu o quarto número da revista, em 1958, o grupo em torno da Complemento já não cabia num bar, deixou de ser uma geração literária, virou atitude, comportamento. Falar de cada um separadamente seria longo e eu poderia ferir alguém com um esquecimento. Todos ao seu modo se destacaram nas carreiras, nos feitos, no meu afeto.

Para terminar: qual o futuro do Brasil?.
Brasil, país do passado. Nós, das gerações mais velhas, temos pelo menos um passado para pôr no nosso futuro. Quero dizer um passado de civilidade, bons modos, compromissos sociais, inclusão social, respeito ao meio ambiente, projetos de distribuição de renda, apoio às artes, tolerância com os diferentes, segurança nas ruas, invisibilidade das armas. Os racistas sempre resmungaram e cochicharam, mas agora gritam e são aclamados, negros são assassinados a pauladas na rua. Os pobres sempre foram marginalizados, mas não massacrados pela economia e pela polícia como agora. Nem mesmo no período da ditadura militar os violentos agiam tão abertamente. Onde os mais moços vão buscar parâmetros de civilização se não tiveram outro padrão? A tarefa dos brasileiros vai ser implantar outro marco civilizatório, derrotar a barbárie atual, antes de conseguir êxitos na economia e na política. O problema é que civilização só se consegue pela política e pela redução dramática da desigualdade. 

* João Pombo Barile é jornalista e redator do Suplemento Literário de Minas Gerais

Trechos  de livros

(Do conto “Lindo lindo”)

“Quando criança, Maurício K. colecionava figurinhas de futebol da Copa de 1958, fotos de artistas de cinema, boli- nhas de gude, cartelas de fósforos, conchas, folhas que desidratava entre páginas de livros. Agora, colecionava pelos. Havia 20 anos que colecionava pelos pubianos femininos.

 A coleção tomava a melhor parte da trabalhosa vida de Maurício. Como todo colecionador, organizar era a segunda melhor parte daquela melhor parte de sua vida, só perdendo mesmo para a verdadeiramente melhor parte, que era o delicado e excitante momento de obter um novo exemplar. Cada novo exemplar exigia às vezes a reorganização de toda a coleção. No princípio não tinha ordem: jogava os envelopezinhos numa gaveta e olhava-os de vez em quando. Sentiu a necessidade de pôr alguma ordem na coleção quando chegou a 40 exemplares. Arrumando-a, poderia apreciar melhor, pensou, lembrar melhor.

Começou a organizar os pelinhos pelo que mais o atraía então: a textura. Do mais encaracolado para o mais liso. A arrumação trouxe algumas surpresas.”


(Do artigo “Aos pés”) 

“O que o príncipe queria da Cinderela não era a mão, eram os pezinhos. Procurou-os, sôfrego, de posse de um dos seus sapatinhos. Sem eles, caiu em depressão. Queria o outro pé do sapatinho, queria aqueles pezinhos – oh, divinos pe- zinhos! Mandou vasculhar todo o reino até encontrar a dona daquele sapatinho, cujo pé nenhum outro substituiria. Interpretado assim, este conto de fadas revela uma das mais antigas elaborações simbólicas do desejo fetichista.
No século 7 a.C., contava-se no Egito a história de uma cortesã de lindos pés, chamada Rodopis. Um dia, quando tomava banho em uma fonte, uma águia roubou sua sandália e levou-a para o faraó, que se apaixonou pelo seu perfume e pela delicadeza do pé. Mandou procurá-la por toda parte e se casou com ela. Foi a primeira Cinderela.”
 

 (Do artigo “Amor a varejo”)

 “Naqueles anos havia cabarés, dancings, zona, hotéis de sobe e desce, rendez-vous, e havia mulheres, moças umas e nem tanto outras, que ficavam nas escadas, portas e janelas a encorajar com olhares, boquitas e beijinhos os necessitados hesitantes. Havia outras, já senhoras, algumas idosas, brancas, de origem europeia, chamadas ‘polacas’, desdentadas, que das janelas mamavam o ar, sugerindo aos passantes sua especialidade. Por que estariam ali, naquela vida, na pequena Belo Horizonte, bem mais velhas do que a cidade? Que ca- minhos haviam percorrido? Ainda se podia ver, nos primeiros anos 50, o vaivém do amor a varejo. Muitas décadas mais tarde, aprendi, em São Paulo, que aquelas se- nhoras eram restos de um drama que se desenrolou paralelo à grande imigração para as Américas e às guerras na Europa.
 O tráfico de europeias para desfrute dos paulistanos, dos fluminenses, dos fazendeiros do interior de São Paulo e do Sul de Minas não é lenda. Em 1914, mais de 500 das 812 prostitutas registradas na polícia de São Paulo eram estrangeiras. Destas, 186 eram russas, 80 italianas, 52 alemãs, 50 francesas.”


“Sex shop”

.Ivan Angelo
.Faria e Silva Editora
.148 páginas
.R$ 59,90

No Café da Bienal

Ivan Angelo é um dos convidados da Bienal Mineira do Livro, que será realizada de hoje (13/5) a 22/5, no BH Shopping. Ele falará no
domingo, no encerramento da Bienal, das 16h às 18h, no Café Literário. “Vamos falar muito de toda a sua trajetória, desde a estreia, dividindo volume de contos com Silviano, até ‘Sex Shop’, seu último livro”, antecipa Rogério Faria Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras, responsável pela curadoria da programação do Café.

Bibliografia 

“Duas Faces” (Com Silviano Santiago, 1961) 
“A Festa” (1975)
“A casa de vidro” (1979) 
“A face horrível” (1986)
“O ladrão de sonhos e outras histórias” (1995)
“Amor?” (1995) 
“Pode me beijar se quiser” (1997)
“O vestido luminoso da princesa” (infantil, 1998)
“O comprador de aventuras e outras crônicas” (2000)
“Melhores crônicas” (2007)
“Certos homens” (crônicas, 2011)


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