Assim que desembarcou em Portugal, em 2016, a escritora mineira Marcela Dantés percebeu que estava em apuros. Convidada pelo escritor luso José Eduardo Agualusa para passar três meses como autora residente do Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio), realizado em uma pequena vila medieval a cerca de 80 quilômetros de Lisboa, ela logo entendeu o abismo que separa o português do Brasil de sua versão europeia. Já no trajeto entre a capital e a vila, o desafio da interlocução com o seu guia a deixou exausta. Depois, ela quebrou a chave da sua casa, e foi socorrida por vários portugueses, cada um falando mais rápido e de modo mais incompreensível que o outro.
“Eu tive a sensação que eu estava num país de um idioma diferente, que não era o meu”, diz, em entrevista ao Pensar. É desse lugar do estranhamento do que se pretendia familiar que emerge “João Maria Matilde”. O livro faz parte dos quatro primeiros lançamentos do selo Autêntica Contemporânea, voltado para a ficção atual e que também tem o francês Olivier Bourdeaut, com “Esperando Bojangles”, o argentino Federico Falco, com “Planícies”, e a equatoriana Mónica Ojeda, com “Mandíbula”.
Única brasileira na lista, Marcela Dantés participa nesta sexta-feira (20/5) da Bienal Mineira do Livro, às 15h30, no Auditório Diamantina, para discutir o exercício da escrita na pandemia da COVID-19. “Acho que tudo se tornou mais difícil. Escrever, que é uma coisa que demanda criatividade, doação, coragem, ficou muito mais dolorido de se fazer depois da pandemia, que trouxe um monte de medos, insegurança e sequelas físicas”, avalia. As dores e dilemas da pandemia trouxeram, inclusive, novos – e não intencionais – significados para o livro, que aborda temas duros da saúde mental, como esquizofrenia, crises de ansiedade e o mal de Alzheimer.
Na trama, Matilde é uma tradutora brasileira que cresceu sem o pai, de quem sabia apenas o primeiro nome. Com o avançar do Alzheimer da mãe, ela já havia desistido de buscar respostas quando recebeu a ligação de um advogado português. Ele informa que o pai dela, João Maria, morreu atropelado e havia um testamento que precisava ser lido.
A descoberta abala a vida de Matilde, que mantinha uma rotina mais ou menos estável, entre encontros com o namorado, cuidados com a mãe e sessões cada vez mais espaçadas com a terapeuta. “Como fazer as malas para viajar para o passado?”, questiona a personagem, a certa altura. Afinal, a expectativa de uma vida inteira de conhecer o pai se transforma em luto, surpresa e aflição.
O reencontro tardio com a sua origem ganha ares sufocantes em Portugal. João Maria morava em uma pequena vila medieval cercada por uma muralha histórica – qualquer semelhança com Óbidos não é mera coincidência, ainda que o nome da cidade nunca seja citado no livro. O paredão traz um clima opressor e de confinamento para o lugarejo, o que causa efeitos imediatos na frágil saúde mental de Matilde durante sua estada.
Rapidamente, a vida dela é tomada pelos personagens da cidade. Um cão aparentemente sem dono, que a adota como tutora, um jovem que gosta de andar descalço pelas ruas de pedra e o advogado Pedro Cruz, amigo de João Maria, que age como uma espécie de Virgílio, o guia da “Divina comédia”, ao fazer a conexão direta entre o mundo dos mortos e o dos vivos.
O leitor acompanha o desenrolar tomado de um sentimento de urgência, mas que nunca se transforma em sobressaltos. É que Marcela Dantés consegue um feito notável no texto: ela adapta com maestria a oralidade típica de Portugal, usando a seu favor o ritmo rápido, mas sem variações, quase monocórdio, da língua falada por lá. O uso desta oralidade como ferramenta narrativa deixa o livro em uma tensão controlada, mas constante, o que provoca um certo desconforto – proposital, diga-se – ao longo das suas 162 páginas.
A situação mental de Matilde se deteriora à medida que os detalhes sobre a vida pregressa de João Maria são revelados, mas nem no clímax do livro, quando finalmente as trajetórias de pai e filha se chocam, o tom se altera. A compostura e a seriedade do jeito de falar luso se impõem diante do que seria uma falta de controle da protagonista, mantendo a pressão quase a ponto de explodir, mas firmemente contida.
Apesar de escrito antes de “Nem sinal de asas”, o livro é o primeiro desde que Marcela foi finalista, em 2021, de dois dos prêmios mais importantes da literatura nacional, o São Paulo de Literatura e o Jabuti. As indicações deram uma projeção nacional para a escritora e, claro, elevaram a expectativa pelo novo livro. “No caso do Jabuti, me emociona muito por ter sido a única mulher e a única autora de uma editora independente na lista dos cinco finalistas. Estava ao lado de autores que sempre li e tive como referência, publicados por grandes editoras. Foi muito significativo estar ali”, destacou ela.
Em entrevista ao Pensar, Marcela Dantés destaca o choque com a linguagem portuguesa e o processo criativo da residência em Óbidos, a dificuldade com a imersão nas crises mentais dos personagens e os próprios dilemas.
Para “João Maria Matilde”, você participou de uma residência literária em Óbidos. Como a residência influenciou na sua escrita? Mudou alguma coisa por causa desse período lá?
Foi a primeira vez m que a minha atividade e o meu objetivo final eram escrever. Até então, toda experiência que eu tinha era sempre pautada por encontrar um tempo na minha rotina para encaixar a escrita, e muitas vezes isso significa escrever madrugada adentro. E eu estava ali, numa vila medieval, mas que, ao mesmo tempo, tem se construído como uma cidade criativa, em que você encontra uma livraria a cada esquina, e com esse festival literário, que também tem crescido muito. Foi a primeira vez que me vi como escritora com o olhar do outro, pois havia a expectativa de que eu produzisse, que algo nascesse dessa experiência. Isso me deu, de alguma forma, uma coragem de me colocar e passar a me enxergar também como escritora. No Brasil, é difícil a gente se entregar inteiramente para a arte. Inclusive, a cultura e a arte vêm sofrendo sucessivas tentativas de aniquilação total, então é muito raro que os escritores e outros artistas façam desse seu ofício principal. E viver isso em uma residência literária foi muito diferente.
“Eu adoro isso nos portugueses, até uma piada é falada com uma sobriedade e um tom tão sério que nos constrange a risada.” O ritmo da escrita do livro parece também emular o tom dos portugueses e, nessa passagem, você chega a brincar com isso. Como surgiu essa transposição da oralidade portuguesa para o papel?
A oralidade deles foi uma das coisas que mais me marcaram, desde o primeiro instante em que pisei em Portugal. Já nessa chegada, foi um um choque pra mim. Tinha uma pessoa já me esperando para me levar para Óbidos, e ela falava muito rápido. Passamos uma hora no carro e aquilo me trouxe uma exaustão mental imensa, de tentar entender o que ele dizia. No meu segundo dia, eu quebrei a chave da minha casa na fechadura, e precisei de ajuda. Foi um monte de gente para minha casa: o meu contato no festival e dois chaveiros. Tinha muita gente lá dentro, e eles começaram a conversar entre si e eu não entendia mesmo. Eu tive a sensação de que estava num país de um idioma diferente, que não era o meu. Aquilo me marcou, pois sempre que se viaja para algum lugar, a gente pensa um pouco sobre o idioma, se tem alguma intimidade, se precisa saber o básico. Obviamente, isso não passou pela minha cabeça quando eu estava indo para Portugal, e aí me vi em apuros, porque eu precisava sim ter me preparado um pouco. Mas rapidamente eu aprendi e entrei no ritmo deles, e achava a forma como eles falavam muito encantadora. Eu quis trazer isso para o livro de alguma forma. A Matilde é uma tradutora, então ela tem também uma intimidade com línguas e, como eu, ela tem esse choque, e ao mesmo tempo ela vai se encantando com esses meandros e com essas contradições que são muito características da fala portuguesa. Então, a obra começou a ser construída num lugar de total incompreensão para mim, e foi terminada quando eu já tinha muito mais intimidade com esse discurso. Então a linguagem e o ritmo da narrativa também passam por tentar contar um pouco desse processo da escrita.
O livro trata de temas duros da saúde mental, como esquizofrenia, Alzheimer, crises de ansiedade e síndrome do pânico. Não por acaso, ele precisou ser engavetado por um tempo. Como foi trabalhar com sinceridade e profundidade esses temas?
Foi uma das coisas mais difíceis que eu já fiz na vida. A saúde mental é um tema que me é muito caro, e todos os meus projetos tocam nisso de alguma maneira. Mas nenhum foi tão cru e aberto quanto “João Maria Matilde”. Eu tive que enfrentar muitos demônios, muitos medos, preconceitos para colocar tudo no papel. Eu sempre pesquisei bastante o tema, principalmente como ele pode entrar na literatura de uma forma respeitosa, mas verdadeira. E temos a tendência de colocar uma névoa sobre o assunto, para que ele pareça mais fácil, menos áspero. E eu tentei justamente trazer uma crueza e tirar essa névoa do livro. Muitas vezes, o livro é desconfortável, mas eu acho que precisava ser assim. Várias vezes precisei interromper o processo de escrita. Me senti fisicamente abalada depois de uma descrição mais difícil, de um episódio de surto. Tive uma pequena amostra de uma crise de pânico, coração acelerado e dificuldade de respirar. Ao mesmo tempo em que isso era difícil, acho também que era um indício de que as coisas estavam num caminho interessante.
E o engavetamento do livro? Quando sentiu que estava pronta para voltar para ele?
Eu acho que, na verdade, eu nunca mevsenti assim. Nunca me senti pronta para voltar a esse livro. Foi muito mais uma volta prática, de “preciso acabar isso”, do que um sentimento real de que aquele era o momento. Foi muito difícil escrever esse livro, e ele só foi terminado porque eu precisei considerá-lo terminado. Em dado momento, eu disse: “Acabou, é tudo que eu tenho”. Mas um livro desses precisa de uma visão mais técnica, um apuro, e eu fui ignorando esse problema. Uma conjunção de fatores fez com que viesse outro projeto de um livro para escrever, e fiquei quatro anos imersa nele, que foi o “Nem sinal de asas”. E a minha vida se transformou toda depois, me tornei mãe. Em dado momento, sabia que ia ter que tirar o livro da gaveta, e fiz isso morrendo de medo, pois é um tema que me assombra e me atropela.
“JOÃO MARIA MATILDE”
Marcela Dantés
Editora Autêntica Contemporânea
162 páginas
R$ 54,90