Jornal Estado de Minas

PENSAR

Romances de Yukio Mishima provam a força da prosa do escritor japonês


“Quero transformar minha vida em poesia.” O autor da frase, Limitake Hiraoka, de 45 anos, após a vergonha de uma tentativa frustrada de golpe de Estado em Tóquio, junto à sua milícia, Tatenokai (Sociedade do Escudo), se dirige à sala onde o capitão das Forças Armadas se encontra atado, e com o auxílio de seu assistente, Masakatsu Morita, abre o próprio ventre com um punhal. Em seguida, tem sua cabeça degolada por um sabre. Morita o auxilia a concretizar o ritual do seppuku, dando fim à obra que ensaiou e gestou durante toda sua vida.





Autor de uma vasta obra reconhecida em todo o mundo, Kimitake, falecido em 1970, após o ritual descrito anteriormente, é conhecido pelo nome de Yukio Mishima, autor de romances centrais da literatura moderna. Foi um prolífico autor do pós-guerra japonês, junto a outros nomes como o Nobel de Literatura Yasunari Kawabata e Junichiro Tanizaki. Ainda que tenha produzido uma obra extensa, são alguns de seus romances que ganham notoriedade como pontos-chave de uma prosa única, que chama a atenção pela intrínseca relação com a sua vida. Como se ambos, vida e obra, constituíssem-se de um impulso retroalimentador profundamente sombrio e limítrofe, onde sobram fixações com a morte e o morrer. Em seu contexto político-cultural e vida pessoal, a decadência assume papel central, e a morte é uma certeza irrevogável, experienciada através da paixão do autor por símbolos trágicos que consolidam o seu traço marcante. Tais símbolos nos aparecem como uma tentativa desesperada, e ao mesmo tempo irreverente, de transformar a tragédia num exercício poético em que o que está em jogo é a experiência humana.

Em seu romance de estreia, “Confissões de uma máscara”, publicado em 1949, o autor revisita a sua trajetória da infância à juventude por meio de um relato de extrema intimidade, e confessa a nós, leitores, o seu fascínio sexual pela morbidez ao longo de uma infância cercada pelo desespero, cujas primeiras lembranças o conectam à sua avó decrépita e deprimida, e a uma solidão que nos assusta pela apatia. Passaria desconhecido aos leitores de agora, caso não fosse a atual reimpressão de suas obras pela Companhia das Letras, após anos esgotadas no mercado editorial. A editora acaba de reimprimir “Confissões de uma máscara” e “Mar inquieto”, além dos romances “Pavilhão dourado” e “Cores proibidas”.

É em “Confissões” que vemos Mishima acometido pelo senso acachapante de tragédia e não pertencimento. Há em sua percepção de mundo um gosto específico de quem encontra na desgraça o gozo desesperado.  Seu ato mórbido é uma cópula com a tragédia, em que a sexualidade não encontra possibilidade plena de ser vivenciada de forma alguma que não através de vínculos patológicos. Somos apresentados, desde a sua primeira ereção ao ver a imagem de São Sebastião, a descrições minuciosas de cenas de guerra e corpos masculinos feridos e desonrados. Trata-se de um romance sobre a descoberta dos desejos homossexuais e descoberta de si próprio, em que a redenção, vista sob uma ótica de indiferença e fascínio trágico, é a busca insistente, ainda que como um sonho natimorto, abortado antes de nascer, em meio aos destroços da Segunda Guerra Mundial, de viver um amor com uma mulher.





A tormenta adoecida integra a veia central de Mishima, mas é em outra obra, o seu romance “Mar inquieto”, publicado alguns anos depois, em 1954, que descobrimos um outro lugar. Nele o autor japonês demarca um ponto fora da curva tortuosa de seu traço prosaico. 

Ditado através do movimento das marés que determinam os hábitos da vida na pequena ilha de pescadores de Utajima, “Mar inquieto” é um romance de amor, e permite uma trajetória de sonhar nas provações do enamoramento entre Shinji e Hatsue. Nele, o mar exerce sua simbologia de fertilidade potente e desafiadora, e se apresenta como a própria dinâmica da vida. A água, um estado transitório e incerto, conduz o macrocosmo da trama como um baile com o desconhecido. O mesmo desconhecido em que o jovem pescador Shinji se vê às voltas por se tratar também de seu estado de paixão. Na obra, os personagens se encontram diante de uma força maior, e não concebem opção que não mergulhar e atravessar o rito de renascimento. Encontra-se em “Mar inquieto” uma teia recíproca e perfeita entre o microcosmo e macrocosmo, onde as forças da natureza, caras à mitologia japonesa, se unem em perfeita harmonia ao destino do casal e da comunidade. Porque ainda que encontrem provações na jornada do amor, os elementos externos nos remetem a vicissitudes internas do estado de enamoramento: tudo confabula a favor da história da paixão do casal.

“Mar inquieto”, então, surge como o irmão luminoso e possível de “Confissões de uma máscara”, demarcado pela impossibilidade e tragédia de um amor doentio. As duas narrativas, situadas no pós-guerra japonês, são influenciadas pelo estado de incerteza e apagamento cultural através de uma ocidentalização forçada já em curso décadas antes. De suas referências a signos cristãos e da literatura ocidental, ao citar Oscar Wilde e se masturbar na infância com a imagem de São Sebastião, o Ocidente se faz presente a todo tempo. Mas tais incertezas conduzem a destinos opostos nas duas obras em questão: uma conduz à descoberta do amor e da vida, e a outra à apatia e ao absurdo de uma vida cujo sentido é seu próprio fim. 





Assimilação do amor 

Mishima, um escritor de atenção voltada aos signos da natureza e seus movimentos na vida íntima, não deixa de acolher os acontecimentos em curso no contexto histórico. Analista das relações sensíveis, o romancista transita pela mesma temática nas “Confissões de uma máscara” e “Mar inquieto”. O amor, presente nas duas obras, é assimilado de formas opostas.  No amor doentio de “Confissões”, irmão sombrio de “Mar”, ele desenha uma noção amargurada e ferida, e acima de tudo impossível, em que a rota única de estabelecimento de um laço é a morbidez e a cópula com o signo maior de Thánatos em seu estado mais visceral. O personagem se esforça por fugir de seus desejos homossexuais e afirma – mesmo que o preço seja a sua infelicidade e a da mulher que o ama –, querer apagar o seus desejos “invertidos”. É como se toda essa chaga surgisse transfigurada em “Mar inquieto”, num amor vivido ao último limite, como um ato belo, heroico e, portanto, um rito de transformação e criação. Vemos no trecho em que o protagonista encontra à beira da praia uma pequena concha rosa, e de súbito guarda-a no bolso, para entregar, mais tarde, a Hatsuo, sua amada. Aqui, a natureza, o macrocosmo, conspira novamente a favor de seu destino de enamorado. A concha carrega no imaginário a forte representação da libido, remetendo à imagem da vagina. Esses signos são tratados em seu irmão sombrio como uma condenação, não sem abrir mão de uma latente misoginia, que é expressa através dos dilemas pessoais do personagem, que narra o livro em primeira pessoa. Outros signos comuns surgem ao longo dos textos, feito o próprio oceano, que em “Mar inquieto” remete à possibilidade do desconhecido, presente não somente no universo pessoal do jovem casal, mas em todas as relações desenhadas pelo autor na pequena ilha de pescadores Utajima. Nas sombrias “Confissões”, o oceano é figura aterradora e macabra ligada à tragédia e à sexualidade malfadada de sua primeira paixão homossexual por um garoto de nome Omi, resultando, portanto, em uma relação em que há apenas a via da profunda agonia.

Ainda que o amor construído nas obras seja oposto à primeira vista, chama a atenção que os recursos narrativos usados para abarcar tais experiências evoquem uma raiz comum: a transformação absoluta. Em “Mar inquieto”, Shinji sente febre quando percebe em si os sentimentos estrangeiros que lhe acometem o peito. E é em uma manhã, não sendo reconhecido pela mãe, que o autor nos coloca diante da irrevogável condição de transformação que o personagem se encontra. O estado febril de Shinji se confunde aos diversos estados adoecidos do personagem de “Confissões de uma máscara”. Ambos são impelidos ao desconhecido, que – parte inexplorada de si próprios –, os convoca a um estado em que não há retorno. Nas duas obras, o obscuro se irrompe, e é através das tramas que, ainda que aparentemente opostas, criam por fim personagens absolutamente diferentes do que eram desde a primeira página. Estamos diante de obras cuja tônica são as travessias: a morte em vida como um rito de passagem de Shinji, e a condução da vida rumo à morte pela tragédia do narrador das “Confissões”. Em vida e obra trata-se de uma jornada de extremos, mesmo que, para a produção de uma vida que coincidisse com a poesia, Mishima tenha recorrido a um ato trágico e marcante que pôs fim à sua vida.

*Bernardo Serino é estudante de psicologia na PUC-MG e livreiro
**João Moraleida é geógrafo pela UFMG e livreiro


“Confissões de uma máscara”
.Yukio Mishima
.Tradução de Jaqueline Nabeta
.Companhia das Letras
.199 páginas
.R$ 64,90


“Mar inquieto” 
.Yukio Mishima
.Tradução de Leiko Gotoda
.Companhia das Letras
.164 páginas
.R$ 59,90