Depois de diagnosticar a perenidade do patrimonialismo do Estado brasileiro, país formado “às avessas”, retroagindo a seis séculos de história em “Os donos do poder” – Formação do patronato político brasileiro” (Companhia das Letras), Raymundo Faoro (1925-2003), ainda de frente para o passado para prospectar o futuro, encontra também as vozes da liberdade, as raízes democráticas e republicanas, herança das conjurações dos séculos 18 e 19, que invoca, naquela década de 1980, como tributo para a redemocratização do país. Faoro se encontrava em meio a uma transição política de vetor ainda em formação, pelo confronto de diferentes perspectivas de “democracia”: será que o Brasil, após a brutal ditadura militar, caminharia, como queria o general Ernesto Geisel – presidente entre 1974 e 1979 – para um governo autoritário civil em substituição ao autoritário militar, para uma “democracia relativa”? Ou será que a sociedade brasileira se mobilizaria por um governo de fundamentos democráticos, rompendo com a tradição patrimonialista do Estado brasileiro e dos “donos do poder”?
É nesse contexto que o gaúcho Raymundo Faoro, que já deixara a presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – e constituíra-se uma das grandes referências nacionais de mobilização pela redemocratização –, escreve, na década de 1980, um conjunto de artigos publicados esparsamente, agora organizados pelo jurista e professor emérito da Universidade de São Paulo Fábio Konder Comparato, editados em “A República inacabada” (Companhia das Letras), com posfácio de Heloísa Starling, historiadora, pesquisadora, escritora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais. O livro reúne três ensaios: “Existe um pensamento político brasileiro?”, sobre a falácia do liberalismo brasileiro durante o Império; “Assembleia Constituinte: A legitimidade recuperada”, que investiga a disfuncionalidade das constituições do Brasil; e “Sérgio Buarque de Holanda: Analista das instituições brasileiras”, um estudo sobre as contribuições do intelectual.
Ao mesmo tempo em que Faoro, esse original intérprete do Brasil, carrega da história os pilares democráticos que inspiram a Constituinte de 1988; na mesma direção, dirige o seu ativismo político para a fundação de um Estado de liberdades e direitos civis de “baixo para cima”. “Faoro foi em busca de uma matriz democrática, de uma raiz que pudesse evocar na história brasileira como legado para sairmos da ditadura. Ele está se indagando: ‘Onde estão as nossas raízes de liberdade?’. No momento da escrita dos artigos de “A República inacabada”, Faoro precisa ter um projeto de país e precisa construir as ferramentas do pensamento e da reflexão para entender que tipo de Constituição Federal precisamos, que Constituinte defendemos, que problemas do autoritarismo precisam ser atacados. Onde estão as mensagens democráticas ou elas não existem e vamos ter de partir do zero? Nesse livro, ele encontra as raízes da liberdade, nas conjurações”, considera Heloísa Starling em entrevista ao Estado de Minas.
A incerteza quanto ao futuro é irmã de Faoro naquela travessia em que ele mira, com clareza, a fundação de um estado democrático. “Naquele momento, ele não tinha certeza de nada: se a transição democrática se completaria em direção à democracia ou a um arremedo. Ele não tinha certeza de que a sociedade manteria e acompanharia a luta pela liberdade, tanto que ele está chamando as pessoas para a mobilização”, considera a historiadora. Olhando para a atual conjuntura política do Brasil, em que pela primeira vez na história um governante utiliza a própria eleição para degradar sistematicamente as instituições democráticas em direção a um projeto autoritário, Heloísa Starling aponta para uma nova travessia de incertezas, similar àquela percorrida por Faoro e a sociedade brasileira nos anos 80. “Faoro está, quando escreve os ensaios, numa situação muito parecida com que nós estamos hoje. Ele estava no meio da travessia e nós também estamos”, afirma ela, assinalando que a sociedade brasileira está diante de uma nova escolha, que pode caminhar para a refundação dos fundamentos democráticos do estado ou o aprofundamento de sua destruição. “A história não é destino, é escolha. Faoro escolheu e escreveu esses artigos para dizer qual foi a escolha que ele fez e que a sociedade naquele momento o acompanhou. Temos de fazer uma escolha de como vamos garantir a democracia. Isso passa pela mobilização da sociedade, por uma eleição e passa por não mais aceitarmos certas coisas”, sustenta ela, também invocando o passado recente, em que uma frente democrática assegurou a travessia para a Constituição de 1988.
“Se o que estamos vivendo hoje é inédito, em termos de um presidente eleito atacar por dentro, para degradar e acabar com a democracia, reagir a isso não. Faz parte da história do Brasil a capacidade de organizar a frente democrática em defesa da democracia e da liberdade. Aliás, Faoro nos ensinou a fazer isso”, afirma a historiadora, lembrando que buscar essas raízes para ajudar o país nesta travessia é o papel do historiador.
Diálogo com os donos do poder
À medida que fazia uma travessia em busca de uma transição para um Estado democrático, os ensaios de Faoro reunidos em “A República inacabada” dialogam com a sua obra clássica, “Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro”: a crítica de Faoro ao Estado patrimonialista diz respeito à necessidade de democratização de seus fundamentos, assim como a afirmação de critérios universalistas para a sua ação política e econômica. Considerada pelo sociólogo, crítico literário e professor universitário Antonio Candido (1918-2017) como um dos 10 melhores livros para se conhecer o Brasil, com 822 páginas, a mais nova edição da obra é da Companhia das Letras, tem prefácio de José Eduardo Faria, posfácio de Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes Ferreira, além de três textos de fortuna crítica. “De cima para baixo” e “de baixo para cima” são duas expressões dicotômicas muito empregadas por Faoro na obra. A primeira é referência ao estamento burocrático, fechado em si e autônomo em relação à sociedade. Já a segunda, trata da soberania popular. “Em tempos de crise da sociedade, das instituições políticas e da democracia, voltar aos escritos de Faoro pode fornecer elementos preciosos para repensar a relação entre Estado e sociedade no país. Sobre o sentido que essa relação deve tomar, Faoro não deixa dúvida: de baixo para cima”, sustentam Ricupero e Ferreira.
De Dom João I (1357 - 1433) – primeiro monarca português da Casa de Avis e o décimo rei de Portugal –, a Getúlio Vargas (1882-1954) – líder da Revolução de 1930 que enterrou a República Velha, esse é o período sobre o qual Raymundo Faoro se debruça com o propósito de identificar as raízes do patrimonialismo brasileiro. Faoro reconstrói a história de Portugal e do Brasil com particular ênfase na relação de subordinação da sociedade ao Estado. O Brasil, para ele, representa o exemplo de país formado às avessas, em que a nação foi criada pelo Estado, politicamente constituído quando Tomé de Sousa, nomeado governador-geral, desembarcou na Bahia, em 1549, com o Regimento de Governo. A colonização portuguesa é a base explicativa, a partir da qual Faoro analisou a formação do patronato político e o patrimonialismo do Estado brasileiro, ou seja, um estamento que se apropriou dos aparatos político-administrativos, usando o poder público para fazer valer os seus próprios interesses.
Quando a Editora Globo publicou, em 1958, a primeira edição de “Os donos do poder”, Max Weber (1864-1920), um dos precursores da sociologia econômica, autor em quem se apoia Faoro, ainda era pouco conhecido no Brasil. Faoro toma de Weber o conceito de estamento, por este utilizado para descrever a sociedade feudal europeia, estruturada no clero, na nobreza e no povo. Faoro se detém sobre a modalidade estamental patrimonial, para explicar o Brasil: é aquela em que o estamento dominante utiliza o poder político como se fora sua propriedade. Daí explica-se o título original de sua obra.
Interpretando a história não com a visão marxista de tipo estrutural, que identifica como motor as lutas de classe do seio da sociedade civil, Faoro coloca o foco na superestrutura, ou seja, no Estado. A tese é de que, assim como a portuguesa, também a sociedade brasileira foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista constituído, originalmente, pelos altos funcionários da Coroa, e depois, no período republicano, pelo grupo funcional que cerca o chefe de Estado. “Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária, embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Essa camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores”, escreve Faoro. Longe de corresponder a uma burocracia moderna, racional, impessoal e organizada em carreiras administrativas, tal estamento diz respeito ao tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada por certo grupo de pessoas privilegiadas, que dominam a burocracia do Estado e, do aparato político-administrativo, extraem prestígio, benefícios, riqueza, por meio dos quais exercem o poder.
Este é um livro de “muitas vidas” que reconstrói a história de “um romance sem heróis”, nas palavras de Bernardo Ricupero e Gabriela Nunes, autores do posfácio da nova edição. Isso porque a ousada tese de Faoro, quando lançada ao final da década de 1950 – a de que o Estado brasileiro paira independente e autônomo sobre as classes sociais e a nação –, não teve repercussão à época. Talvez porque a obra fora lançada em meio ao otimismo desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek – que anunciava o ponto de inflexão na industrialização e de crescimento da economia brasileira ao estilo “50 anos em 5” – “Os donos do poder” não tenha despertado tanto interesse naquele momento. Publicada pela Editora Globo, de Porto Alegre, a primeira edição tinha 271 páginas, 14 capítulos, 140 notas de rodapé e escassos leitores: levou 10 anos para se esgotar.
Dezessete anos depois, contudo, no contexto do regime autoritário-militar, o reiterado domínio dos militares sobre o aparato estatal, além do endurecimento do regime a partir de 1968, constituíam reforço ao argumento da continuidade do estamento patrimonial e burocrático na formação do Estado brasileiro. O cientista político Marcelo Jasmin aponta: “Tornara-se sensato imaginar que, mais uma vez, aquele estamento burocrático – ou fração sua, a militar – retomava a condução da história brasileira, o que dava ao golpe militar uma nova inteligibilidade sedutora nos quadros interpretativos de ‘Os donos do poder’. Se os fatos pareciam confirmar a tese do livro, a tese servia, naqueles anos 1970, como instrumento de luta contra os militares, ampliando a sua recepção para fora dos meios acadêmicos.”
A segunda edição, revista, foi publicada em 1975 pelo convênio entre a Editora Globo e a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). Ampliada para 750 páginas, 1.335 notas e referências bibliográficas, além de dois capítulos adicionais que estendem o mesmo argumento em análise da realidade brasileira do período republicano. A obra se tornava referência obrigatória nos meios acadêmicos, intelectuais e políticos e do pensamento social da América Latina. Naquele momento, Faoro, já como presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), era uma figura de proeminência nacional, militante contra a ditadura militar, contra a tortura e pela reabertura democrática, inclusive responsável, em 1978, pelo restabelecimento do habeas corpus, suspenso pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/1969.
Em termos econômicos, a tese de Faoro da dominação patrimonial desenvolvida no Brasil nos moldes do Estado português associa-se a um tipo de capitalismo – o “capitalismo politicamente orientado”. Segundo o autor, este que constitui uma espécie de “pré-capitalismo, centro da aventura, da conquista e da colonização, moldou a realidade estatal, sobrevivendo e incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo”. É assim que, na visão do autor, o capitalismo moderno – ou comercial – seria dirigido pelo estamento em seu próprio benefício, dominado por monopólios e pela intromissão que, nas palavras do autor, limitam o desenvolvimento da economia, que nasceu e cresceu “à sombra da Casa Real”, como “apêndice do Estado”.
Na análise de Faoro, do Estado provém toda a iniciativa social, econômica e política, o que relega a nação à mera condição de espectadora do capitalismo politicamente orientado. “A anemia econômica é também a anemia política e, se a falta do capitalismo industrial é razão do subdesenvolvimento, a inexistência das classes autônomas explica o caráter autoritário e excludente da política nacional. O resultado é que não há sociedade civil independente, não há pensamento liberal, nem capitalismo racional – signos pressupostos de modernidade –, mas a dominação patrimonial, estamental e burocrática – signos de atraso. Assim transposta para a história brasileira, a teoria dos tipos weberianos de dominação produz o retrato de uma ausência, de uma impossibilidade, retrato que diz de um outro, desejado, talvez, mas que não houve e que não há”, sustenta Marcelo Jasmin em sua crítica à obra. Nesse sentido, deve-se ao “pecado original da formação portuguesa”, que marcou de forma definitiva a formação histórica brasileira, a tese, que, nos termos de Jasmin, se formula pela negação: “o patrimonialismo estamental e burocrático inviabilizou, no Brasil, a modernidade da economia racional e da legalidade do Estado de direito”.
ENTREVISTA
Heloísa Starling (historiadora e autora do posfácio de "A República inacabada")
Como localiza Raymundo Faoro dentro da literatura social e política brasileira?
Faoro era compromissado com a cena pública: vai para a rua, aos debates, enfrenta a crítica contra a grande frente democrática que se constrói no Brasil para a democratização, tem uma atividade política. E, ao mesmo tempo, consegue engendrar um pensamento novo sobre o Brasil. Então, o mesmo Faoro se torna, durante a ditadura militar, uma das grandes referências da mobilização da sociedade em defesa da redemocratização, e foi um ativista; Faoro é também um pensador, da linhagem dos intérpretes do Brasil, que precisa refletir conceitualmente para ter um projeto, para construir as ferramentas que conduzem o seu ativismo. É um perfil raro. Advogado, Faoro se junta aos sociólogos, escritores, pensadores como Joaquim Nabuco, que já no século 19 registrava que somos uma ficção engenhosa de nação, porque forjados na escravidão: criamos uma epiderme civilizatória, mas sem uma cultura democrática, essa epiderme se rompe. Faoro vai à história de Portugal tentar entender por que se forma um tipo de Estado e de elite no Brasil que vai se modificando com o tempo, se moderniza, mas mantém um padrão de dominação patrimonialista. Faz uma leitura do Brasil que retrocede num tempo anterior ao Estado brasileiro, vai a Portugal e na Independência, momento em que se funda o Estado. Para Faoro, o que explica a nossa dificuldade democrática e republicana – porque somos uma república oca, vazia de republicanismo e dos valores do republicanismo – é a forma de dominação que se estabelece: ao longo do tempo da Independência até a década de 1980, mudam -se os padrões, as elites, mas tem um eixo que permanece, o patrimonialismo.
Publicada pela primeira vez em 1958, foi durante a década de 1980 que “Os donos do poder” teve maior repercussão. Como esses ensaios de Faoro, escritos na década de 1980, organizados por Fábio Konder Comparato em “A República inacabada”, dialogam com “Os donos do poder”?
Toda vez que estamos diante de formas autoritárias, Faoro chama a atenção para o momento, para o esforço de entender o que está acontecendo. Nos momentos de crise política e nos momentos em que a liberdade está ameaçada por formas políticas autoritárias, é muito grande a necessidade de entendermos nós mesmos para projetar o futuro. É como se no ensaio de “A República inacabada” Faoro estivesse dialogando com a obra “Os donos do poder”, dizendo assim: “Entendi a dominação. E agora, como vamos fazer para sair de uma forma autoritária, construir a república democrática?”. Faoro foi então em busca de uma matriz democrática, de uma raiz que pudesse evocar na história brasileira como legado para sairmos da ditadura. Ele está se indagando: “O que tem no passado de nossa história, que posso evocar para entender que a democracia foi possível? Onde estão as nossas raízes de liberdade?”. No momento em que escreve esses artigos, Faoro precisa ter um projeto de país e precisa construir as ferramentas do pensamento e da reflexão para entender que tipo de Constituição Federal precisamos, que Constituinte defendemos, que problemas do autoritarismo precisam ser atacados. Onde estão as mensagens democráticas ou elas não existem e vamos ter de partir do zero? Nesse livro, ele encontra as raízes da liberdade nas conjurações. Depois de Faoro, vários historiadores foram refletir sobre a importância das conjurações e do que vamos chamar de Ciclo Revolucionário da Independência, como lá em Pernambuco, com a Revolução de 1817 (Revolução Pernambucana), ali tem ideias novas em movimento que criam um legado, uma herança, que podemos dizer que somos tributários dela e atualizá-la.
O atual momento do Brasil tem analogia com o que foi vivenciado por Faoro na década de 1980?
É a travessia. O momento do Faoro quando está escrevendo os artigos, ele não tem certeza de nada. Hoje vemos que deu certo. Mas naquele momento ele não tinha certeza de nada: se a transição democrática se completaria em direção à democracia ou a um arremedo dela. Ele não tinha certeza de que a sociedade manteria e acompanharia a luta pela liberdade, tanto que ele está chamando as pessoas. Faoro estava numa situação muito parecida com a que nós estamos. Ele estava no meio da travessia e nós também estamos. A história não é destino, é escolha. Faoro escolheu e escreveu esses artigos para dizer qual foi a escolha que ele fez e que a sociedade naquele momento o acompanhou. Qual é a escolha que vamos fazer no meio da travessia para chegar na outra margem? Temos de fazer uma escolha de como vamos garantir a democracia. Isso passa pela mobilização da sociedade, por uma eleição e passa por não mais aceitarmos certas coisas. É preciso reagir, colocar limites. Quem se omite diante do mal está praticando o mal. Essa é uma decisão da sociedade. Para além das instituições. A sociedade precisa tomar essa decisão. Esse é o momento da travessia.
O que o país fez naquela travessia que poderá repetir nesta nova passagem?
Olhamos para o conjunto dos ensaios e percebemos: isso aqui nos permite pensar hoje. O que Faoro não poderia imaginar, e nenhum de nós poderia, o que ocorreu no Brasil, algo inédito em nossa história: há um processo de degradação democrática que ocorre por dentro, pela ação de um presidente eleito democraticamente. Isso nunca aconteceu. Todas as vezes em que a democracia no Brasil correu risco, foram riscos a partir de ações externas. Em 1937, houve um golpe; em 1964, um outro golpe fora do Estado para destruir a democracia. Essa possibilidade de estarmos lidando com um processo interno de degradação, passo a passo, de destruição sistemática da Constituição e da democracia, acho que Faoro não poderia imaginar isso. Ao olhar para Faoro no momento em que escreve esses ensaios, guardadas as devidas proporções, é como pensarmos hoje. Se não formos capazes de identificar os problemas da degradação democrática no Brasil e qual é o repertório democrático e libertário que o passado nos dá, para que possamos reelaborá-lo no presente, não tem pensamento. E se não tem pensamento, não vamos construir um projeto. Vamos ficar presos numa brecha do tempo. O passado não é mais, o futuro não é ainda. Precisamos sair dessa brecha.
Por que no Brasil se fez prosperar uma narrativa de que o país teria tido uma independência pacífica?
Faoro aponta para dois projetos em disputa no momento da Independência, em que estamos fundando o Estado: o liberalismo que faz a concessão – que ele chama de liberalismo de transação – e o liberalismo que ele denomina de “liberalismo irado”, que é o republicanismo. O que Faoro está chamando de liberalismo da transação está no projeto vitorioso da Independência do Rio de Janeiro: cria o Estado monárquico, mantém a escravidão. E o que ele chama de liberalismo irado é o republicanismo que está nas conjurações e aparece no círculo da Independência. A história da Independência é contada a partir do projeto vitorioso do Rio de Janeiro, que precisa dizer que essa é uma independência da maneira que foi para se consolidar uma unidade brasileira, foi criada uma memória. Agora, se sairmos das margens do Ipiranga e olharmos para o Brasil, vamos encontrar uma história maravilhosa da Independência do Brasil. Vamos encontrar o projeto revolucionário, os indígenas se mobilizando em diversas províncias, vamos encontrar a população pobre, revoltas e levantes dos escravizados e vamos encontrar o projeto republicano que começa em 1817 e termina em 1824, com a Confederação do Equador. Então, tem uma história muito bonita se vista fora das margens do Ipiranga e para além do que Faoro chama de liberalismo de transação e que eu estou chamando de projeto vitorioso da Independência do Brasil.
Em sua avaliação, quais são as diferenças entre os projetos de país perseguidos pelo golpe de 1964 e pelo presidente Jair Bolsonaro?
Há uma diferença enorme. Em 1964, militares e empresários, e com a mobilização da sociedade em favor do golpe, tinham um projeto de Brasil e se mobilizavam em torno do projeto. Hoje não há projeto. O Brasil não tem futuro. É só destruição. Essa é a diferença. Porque o governo Bolsonaro, a relação com a ditadura militar não é com governo dos generais, é com aquilo que está no porão, que a historiografia costuma chamar de linha-dura. Esse plano de destruição não é conservador. Eles até se autodenominam conservadores, pois estão tentando legitimar uma determinada forma de pensamento. Mas o pensamento conservador é contra pensar mudanças, mas não é necessariamente antidemocrático. O que estamos vendo no Brasil é um projeto reacionário. É um movimento político que tem uma origem, o reacionário reage ao seu inimigo principal, que é a democracia. Reacionário não é um adjetivo. Reacionarismo é um movimento político, é uma forma de atuação, é uma forma de pensamento, tem uma história e um inimigo, que se chama democracia. Não há nada na democracia que mereça ser conservado, por essa visão. Você pode pensar que a tradição conservadora degradada, dá no reacionarismo. Mas ela está degradada.
Qual parece ser o caminho para interromper este atual processo de corrosão democrática?
O que precisamos fazer, em minha opinião, neste momento é uma coisa que Faoro nos ensinou: se o que estávamos vivendo hoje é inédito, reagir a isso, não. Pois faz parte da história do Brasil a capacidade de organizar a frente democrática em defesa da democracia e da liberdade. Aliás, ele nos ensinou a fazer isso. Então, é preciso que as forças democráticas, progressistas ou conservadoras, se organizem numa frente para preservar as conquistas que tivemos até agora; vamos preservar a democracia e a carta de direitos. Então, vamos fazer uma frente em torno desses princípios. Buscar essas raízes para nos ajudar na travessia é o papel do historiador. Hannah Arendt diz isso também. Ela diz: se a tirania se instalar e der tudo errado, a liberdade está ameaçada, mas, diria ela, temos duas possibilidades de resistência, de esperança. Uma delas é o poeta, aquele que vai acionar a nossa imaginação para a gente pensar o futuro. Então, eu posso pensar que a liberdade é possível. E o outro é o historiador, que vai dizer que a liberdade é possível porque ela já foi possível. Esse é o repertório que tenho que você pode recuperar para pensar essa possibilidade. O Brasil tem tradição de agir dessa forma. Foi assim que terminamos com o Estado Novo e foi assim que terminamos com a ditadura. E Faoro está no meio desse furacão da última grande frente democrática.
A travessia de Faoro e a mobilização da sociedade nos legaram uma Constituinte democrática. Mas e o patrimonialismo? Ele segue, perene, o seu curso histórico?
A cultura patrimonialista está sólida e está dentro desse projeto bolsonarista de destruição democrática e, inclusive, é anterior a ele. Ela é e um prolongamento, faz parte de uma estrutura. A novidade, portanto, não é o patrimonialismo, mas é como esse projeto utiliza essa cultura patrimonialista para acelerar essa desconstrução da democracia. Uma coisa que acho que erramos lá atrás, e talvez possamos retomar o Faoro: quando veio a redemocratização, quando a sociedade atuou na redemocratização, a sociedade jogou todas as fichas na democracia. Mas entendemos a democracia como as instituições democráticas e a prática democrática. Esquecemos o Tocqueville que vai dizer que a democracia é também um modo de viver em sociedade. Não investimos numa cultura democrática e aí a epiderme civilizatória se rompe, porque temos uma sociedade fundada na escravidão que é hierárquica, desigual e racista. E nós não investimos numa cultura democrática. Isso é um desafio para nós. Provavelmente, entre os desafios que a sociedade brasileira tem hoje, se conseguirmos fazer uma frente, talvez o que tenha de fazer parte de nossa discussão é: vamos olhar no espelho a sociedade que temos? Por que a sociedade é assim?. Por causa da escravidão, por causa do projeto vitorioso da Independência. E como vamos construir uma cultura democrática? Temos de olhar no espelho, não olhamos na redemocratização. Esse talvez tenha sido o erro que Faoro não viu. Nós apostamos, temos instituições que estão resistindo bravamente, é a primeira vez na história do Brasil que o Supremo Tribunal Federal (STF) como instituição resiste à tirania. Nesse aspecto apostamos bem. Mas e a cultura democrática?
Trecho de
“Os donos do poder”
“Em lugar da renovação, o abraço lusitano produ- ziu uma social enormity, segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de refle- xos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.”
“A república inacabada”
Raymundo Faoro
Companhia das Letras
288 páginas
R$ 89,90 (impresso)
R$ 34,90 (digital)
”Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro”
Raymundo Faoro
Companhia das Letras
832 páginas
R$ 109,90 (impresso)
R$ 44,90 (digital)