(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Primeira leitura: 'Caruncho', de Laura Cohen Rabelo

Autora belo-horizontina lança neste sábado (11/6), às 11h, na Quixote Livraria, quarto romance dela, sobre um maestro adoecido e um violoncelista no auge


10/06/2022 04:00 - atualizado 09/06/2022 22:58

Laura Cohen Rabelo
(foto: Tatiana Bical/Divulgação)

Laura Cohen Rabelo

Faz quase uma década que eu te vi na estação. 

De pé, você conferia alguma coisa na sua passagem, talvez o horário, talvez o número do vagão, alheio a mim e ao entorno. Era um homenzinho comum, de camisa amarrotada e uma expressão de estafa nas sobrancelhas. Parecia um pouco mais alto do que me lembrava quando, há um par de anos, o maestro nos apresentou. O bom de ser pianista é não carregar o peso de um instrumento consigo; o ruim de ser pianista é sempre tocar no instrumento dos outros. Tem aquela história do Glenn Gould e o banquinho que ele levava para todo canto. Música, as histórias que contam. No mais, você sempre gostou de viajar e variar. Ainda gosta? Devia ser difícil mudar de casa. Você mudou pouco de casa, eu muito: periferias e alojamentos. Apartamentos de paredes finas e acidentes. O cello se move mais. O piano velho com caruncho. 

Na ocasião, acho que pensei nisso tudo porque não estava com o meu cello. Era para eu ter ido de carro com minha amiga, só que o namorado dela resolveu ir de última hora para o festival e tomou o meu lugar. Eles estavam levando meu cello no Twingo azul, enquanto eu parti mais tarde, de trem, com os braços livres. Talvez eu estivesse me culpando, arrependida de viajar sem meu instrumento. Eles poderiam bater o carro, capotar e pegar fogo, por exemplo. Como pude ter a ousadia de abandoná-lo? Pensava no pior. Você pensa no pior agora. É sentir falta de um pedaço do corpo. 

Ali na estação suja eu poderia pegar facilmente minha mochila, minha bolsinha, e ir atrás de você. Mas fiquei parada. Você subiu os degraus desproporcionais do trem, levando sua mala de rodinhas e com a mochilinha vermelha nas costas. Aquela com um aspecto infantil. A mochila era do seu filho, não era? Só podia ser, e você não quis admitir que era. As coisas que ficam jogadas por aí e os pais pegam. Nada era relíquia ainda. Gostaria que não fosse. Poderia, quando te alcançasse em algum dos vagões, chamar seu nome em nossa língua comum e perguntar: essa mochilinha vermelha é mesmo sua?. Eu te faria rir. 

Mas não me movi. 

Fiquei colada ao banco frio da estação suja, pensando: com certeza, primeiro foram os portos de navios. Depois, estações de trem. Depois, rodoviárias. E os aeroportos, então. Quando as pessoas viajavam de carro? E os animais? Carruagens, carroças e os pés de bípedes percorrendo longas distâncias imigrantes. Como levar um piano em cada uma dessas coisas? Não dá. Por isso o piano velho e descuidado, mudo em algumas teclas, todo comido. 

Pensei em perder aquele trem e pegar o próximo, só para não correr o risco de te encontrar. Mas ficar grudada naquele banco frio por mais quatro horas... o meu medo era qual? Não achava que te encontraria naquele dia, há quase dez anos. A minha expectativa era um encontro na sala reservada para o nosso ensaio, no dia seguinte. Agora me parecia descontrolada a casualidade de eventos na qual você, um homenzinho comum, tomava dois voos, metrô do aeroporto para a estação suja e o mesmo trem que eu não planejava pegar, mas acabei pegando. 

Que história esquisita contam as coincidências. 

Mas havia outros motivos que fizeram com que eu não me levantasse e dissesse seu nome em nossa língua comum. Eu estava toda dolorida por dentro. Na noite anterior à viagem, eu tinha saído com os amigos. A prova de fogo era conseguir dominar o idioma demoníaco numa conversa de bar, entender chistes, trocadilhos, flertes, palavras ditas pela metade. Testemunhar o nascimento de gírias, de piadas internas. Quando fui embora, um garoto da universidade se ofereceu para me acompanhar, afinal morávamos no mesmo rumo. Há uns dias ele me fizera aquele elogio ao qual até hoje não sei reagir muito bem: disse que eu tinha uma beleza exótica, que ele jamais vira em lugar algum. Suspeitei que ele tinha boas intenções, que estava dizendo aquilo porque era desinformado, mas... que preguiça! Não respondi, nem agradeci. Fomos a pé, lentamente — estávamos cansados? —, conversando depois de algumas cervejas, a cabeça leve... O rapaz se despediu de mim em frente ao prédio. Quando entrei no meu apartamento e fechei a porta, começando a desenrolar o cachecol, alguém tocou a campainha e pensei nas vizinhas, eram sempre as vizinhas querendo alguma coisa. Abri a porta e dei de cara com meu colega, o corpo dele veio para dentro, me dando uns beijos sôfregos, fiquei sem saber o que fazer. Me agarrou com as mãozonas, colou no meu corpo e eu senti o pau duro dentro da calça. Essa é uma sensação boa, a natureza externa e simples do desejo de um homem. Acho que ele me perguntou onde era a cama, me levou até ela, e me despiu com rapidez. Só o suficiente. Doeu um pouco no começo, eu não estava pronta, mas deixei que ele seguisse. Me diga agora, será que eu fiquei com pena? Eu não disse devagar, eu não disse calma, eu não disse não. Assim que acabou, o rapaz pareceu envergonhado e eu falei que não havia problema. É claro que o fundo da minha cabeça me invadiu com uma pergunta: se eu fosse uma mulher branca, daquele país, ele teria agido assim ou teria sido de outra forma? Se eu não fosse uma estrangeira exótica?. Eu prometi que ia parar de fazer essas perguntas, mas até hoje não consigo não pensar nisso. Me faz tão mal. Ele viu minha mochila arrumada para a viagem num canto, fez duas perguntas sobre o festival, sobre o repertório que eu tocaria, e deu o fora. 

Colada ao banco de cimento frio da estação, endireitei a coluna, ergui o corpo e senti queimar. Ainda ardia enquanto eu mexia as pernas, então era melhor permanecer quieta enquanto eu pudesse. 

Manter a compostura. 

Você não se lembra mais de quando nos conhecemos? Você não se lembra de nada. Não estou brigando. Só é tenebroso entender como nada fica. Mas você quer que eu fale, que eu te distraia. Sinto sede, mas continuo a falar. Fomos apresentados depois do concerto em homenagem àquele professor de piano, recém-falecido após uma longa doença, de quem você tinha sido muito próximo. Não me lembro o nome dele. Você também não se lembra agora. De novo a morte. Você quer que eu pare agora? Não quer. Eu vou encher o ar com essa falta de sentido, é o silêncio que você não suporta... O maestro regeu a pequena orquestra de alunos, você tocou uma dupla de peças para piano solo, se lembra agora? A filha do professor leu um texto e chorou. Também chorei. É isso, grossas lágrimas por qualquer coisa que me comove, você ri da espessura do meu choro, dizendo que é bonito. Depois, nos reunimos em um bar, o maestro disse: “Esse é meu amigo de longa data, o melhor pianista vivo do país!”. Você torceu a boca para o superlativo. Era chacota ou verdade? Os homens precisam caçoar um do outro para fazer um elogio, veja só. Eu tinha escutado seu CD, que o maestro me deu de presente porque eu estava profundamente interessada por compositores brasileiros e isso era parte da sua pesquisa. 

Tive uma intuição ao pousar os olhos em você. (...)


Sobre a autora

Nascida em Belo Horizonte, Laura Cohen Rabelo é formada em letras e mestre em estudos literários pela Fale/UFMG. É autora de “História da água” (Impressões de Minas, 2012), “Ainda” (Leme, 2014), “Canção sem palavras” (Scriptum, 2017) e dos livretos de poesia “Ferro” (Leme, 2016) e “Escrever é uma maneira de se pensar para fora” (Leme, 2018). Idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, ministra oficinas de criação literária e edição desde 2013. “Caruncho”, o quarto romance, é definido pela escritora como “um quiasma, uma oposição entre dois personagens. Um maestro de 65 anos, cujo corpo adoecido pode impedir que ele suba ao palco novamente (coisa que ele mais deseja) e uma violoncelista de 35, no auge de sua saúde e talento, que desiste de sua carreira e propõe fazer um último concerto”. Na apresentação, Bruna Kalil Othero afirma que “as personagens de ‘Caruncho’ estão sempre fora do tempo. Entre passado, presente e futuro, os músicos lutam para se equilibrar no tempo da música e da vida. As linhas melódicas no caos: antes, durante, depois. Há a busca pela perfeição da música clássica, o ritmo certo, a adequação ao tempo das obras, e tudo dentro de um teatro (...). Quem dera se ‘Caruncho fosse’ um livro infinito, a seguir eternamente o curso do tempo”. O trecho acima é o início do capítulo “Idade cronológica”.  
Capa do livro %u201CCaruncho%u201D
(foto: Tatiana Bical/Divulgação)

“Caruncho” 
• Laura Cohen Rabelo
• Editora Impressões de Minas
• 295 páginas
• R$ 56
• Lançamento: sábado (11/6), às 11h, na Quixote Livraria (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)