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Estado de Minas PENSAR

Crítica: estranhezas de tirar o fôlego em coletânea de Samanta Schweblin

Contos reunidos de 'Pássaros na boca e sete casas vazias' rejeitam o rótulo do fantástico, mas passeiam pelo insólito


24/06/2022 04:00 - atualizado 23/06/2022 23:47

 Um pássaro morto levado à boca pelas adolescentes no ritual macabro de “Mandíbula” é imagem que nos conecta de imediato à dupla coletânea de contos de Samanta Schweblin. Em “Pássaros na boca”, do livro homônimo da autora argentina, também uma jovem protagoniza a história de um ex-casal surpreendido com o fato de a filha se alimentar de animais vivos. No romance de Ojeda, o culto faz parte dos ritos praticados em torno do chamado Deus Branco. Já no conto de Schweblin, a ação acontece no campo da sugestão. Afinal, por que devorar um pássaro vivo? Culpa e raiva são alguns dos sentimentos dos genitores diante do gesto da jovem. Narrado pelo pai, o relato joga com as imagens de clausura, desejo e repressão. E muitos pelos da nuca arrepiados. 

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Em pleno domínio de seu ofício, as duas autoras frequentam o insólito. Como diferença, Schweblin, na quase totalidade das narrativas breves dos volumes “Pássaros na boca” (publicado anteriormente no Brasil em 2012 pela Benvirá) e “Sete casas vazias” (inédito até agora), vai mais fundo na porosidade entre realidade e irrealidade.  Vencedora dos prêmios Juan Rulfo e Casa de Las Américas, a autora rejeita o rótulo do fantástico. Nesse sentido, é possível ecoar o escritor cubano Alejo Carpentier, que pensa o cotidiano do continente como naturalmente inusitado, ao indagar o que seria a história da América Latina se não uma vida que incorpora fatos pouco usuais. Sobre isso, afirmou Schweblin em entrevista: “Viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de 500 anos (...) Do que mais escreveríamos senão a partir do insólito e do horror?"

Assim, nada mais esperado do que trens que não param na estação onde pessoas esperam em vão, buracos cavados sem propósito por sujeitos bizarros, centenas de mulheres abandonadas por maridos no meio de um descampado, casais em busca da fertilidade realizando estranhas caçadas atrás de criaturas inominadas.

Impossível deixar de notar a matriz matrilinear nesse conjunto de histórias: são mães, filhas, esposas, sogras. “Conservar” já nasce um clássico pelo tratamento das ambiguidades presentes no desejo da maternidade e na repulsa às modificações físicas e emocionais dessa condição. Grávida, uma mulher adota um método experimental, mantendo o feto e transformando-o em algo capaz de ser conservado, adiando o confronto entre o eu e esse estranho e íntimo outro. Schweblin captura no plano da linguagem tais contradições, em mais um conto com ritmo cinematográfico, lido de um fôlego só.

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Muitas narrativas se constroem em torno da boca: o que desce pela garganta, sejam pássaros, veneno, papel; o que sai dos lábios – fetos, palavras, silêncio. “Um homem sem sorte” é exemplo dessa imagem. Nunca saberemos o nome do sujeito aparentemente gentil que acode uma menina de 8 anos. Sozinha na sala de espera de um hospital, ela aguarda os pais que buscam atendimento para a irmã menor, vítima de um acidente doméstico. Detalhe esquisito: no desespero de abrir caminho no trânsito, o pai pedira à filha que tirasse sua calcinha branca, para acenar com ela aos demais veículos. Ao oferecer à garotinha a compra de nova roupa interior em um shopping próximo, o homem desconhecido ganha sua confiança, protagonizando cena de alta tensão dramática: o vestuário escolhido é preto. Perguntado como se chamava, o homem nega-lhe a informação, mas escreve o próprio nome em um pedaço de papel, engolido pela menina assim que retornam e são surpreendidos pelos pais e pela polícia. Nada aconteceu, tudo aconteceu. 

Estranheza e familiaridade se tocam e embaralham verdades, mobilizando a sensação de desconforto permanente. Schweblin nos convida a entrar nessas tantas casas vazias com uma venda nos olhos, para com ela visitar territórios da realidade e da irrealidade cotidiana. Muitas vezes, o limite entre elas é um fio de cabelo.
Capa do livro 'Pássaros na boca e sete casas vazias'
(foto: Editora Fósforo/Reprodução)

“Pássaros na boca e sete casas vazias”
•  Samanta Schweblin
•  Tradução de Joca Reiners Terron
•  Editora Fósforo
•  280 páginas
•  R$ 69,90; e-book: R$ 49,90


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