“Estar assustada faz com que você se sinta muito viva e muito frágil, como se fosse um caco de vidro e pudesse se quebrar a qualquer momento. Pode ser feio sim, mas também te desperta e te preenche de uma emoção enorme”, narra uma das personagens de “Mandíbula”. O surpreendente e perturbador romance da equatoriana Mónica Ojeda, lançado no Brasil pela Autêntica Contemporânea, é um dos destaques de tendência da ficção latino-americana que explora um sentimento tão antigo quanto eficaz para atrair leitores ao longo dos séculos: o medo.
Nesta edição especial, o Pensar traz entrevistas com Ojeda e com a argentina Samanta Schweblin, resenhas dos livros das autoras e das obras recentes de duas escritoras brasileiras, Verena Cavalcante e Paula Febbe, que investem no gênero.
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“Nossos autores possuem dilemas únicos e vozes perfeitamente distinguíveis: o medo da violência urbana é mais exacerbado, o pavor que experimentamos em situações de violência contra a mulher é mais presente, nossos conflitos sociais e raciais muitas vezes são bem mais pesados e diretos que os horrores presentes em outras narrativas”, acredita Cesar Bravo, autor e editor da Darkside Books, que completa 10 anos e tem como slogan: “Estranhamente o medo nos cativa.”
“O medo é a mercadoria em maior oferta na atualidade: a publicidade na TV só vende o medo, o jornalismo só vende o medo e a política também, e é por medo que as pessoas consomem o que consomem e votam como votam. Com tamanha oferta, não vejo como a ficção – latino-americana ou não – não possa responder ao medo”, acredita o escritor brasileiro Joca Reiners Terron, autor de livros aterradores como “Noite dentro da noite” e “A morte e o meteoro”. Ele assina a tradução dos contos “Pássaros na boca” e “Sete casas vazias”, de Schweblin, na edição recente da Fósforo.
“Me impressionou o controle narrativo, a paciência construtiva que Schweblin maneja a fim de obter o efeito desejado. Foi muito perceptível esse controle enquanto traduzia os contos, e adveio daí a maior dificuldade: a prosa dela tem zero firula, a ponto de o português brasileiro parecer meio derramado demais perto do castelhano seco dela”, revela Terron, antes de arrematar: “É uma grande contista.”
“Me impressionou o controle narrativo, a paciência construtiva que Schweblin maneja a fim de obter o efeito desejado. Foi muito perceptível esse controle enquanto traduzia os contos, e adveio daí a maior dificuldade: a prosa dela tem zero firula, a ponto de o português brasileiro parecer meio derramado demais perto do castelhano seco dela”, revela Terron, antes de arrematar: “É uma grande contista.”
Rita Mattar, editora da Fósforo, arrisca uma explicação para a singularidade da escrita de Schweblin: “Ela dialoga com um gênero que a antecede e renova o conto fantástico (que floresce no século 19), situando-o de modo muito justo no século 21. Não é preciso conhecer nada que veio antes dela para gostar da sua obra, embora ela esteja em diálogo com toda uma tradição”.
De fato, é perceptível, nas histórias reunidas em “Pássaros na boca e sete casas vazias”, ecos da literatura fantástica e da obra de outra grande autora argentina, Silvina Ocampo. (Leia sinopse abaixo) Em contos longos, como as 48 páginas de “A respiração cavernosa”, Schweblin narra o que se passa na mente oscilante de uma mulher assombrada por situações domésticas prosaicas e com dificuldade para conviver com a própria respiração, até concluir que a solidão pode ser mais assustadora do que a morte: “Agora ela não tinha mais para quem morrer”.
“Gosto de suspense, medo e, às vezes, até um pouco de terror limítrofe, porque acho que esses são gêneros em que esse tipo de atenção suprema vem muito rapidamente e é capaz de se sustentar por longos períodos de tempo. O que me fascina é essa atenção absoluta”, afirma Samantha Schweblin ao Estado de Minas. “O medo é necessário para sobreviver”, complementa Mónica Ojeda, também em entrevista exclusiva.
A professora e as alunas
A imersão na mente feminina é um dos pontos altos de “Mandíbula”, romance de Ojeda sobre os conflitos na relação entre uma professora e suas alunas em escola católica do Equador. “É um romance robusto, que toca em temas sombrios e ao mesmo tempo atuais e necessários”, acredita Ana Elisa Ribeiro, responsável pela curadoria dos títulos do novo selo da editora mineira. A tradução, uma “aventura encantadora e com desafios”, é de Silvia Massimini Felix.
“Ojeda nos apresenta uma obra polifônica, com narradores que se intercalam e uma grande variedade de estilos”, destaca a tradutora. “A autora às vezes faz associações inusitadas, como por exemplo o deslocamento do universo materno — o terreno do conforto e do amor por excelência — para um reino de trevas e medo, um lugar escuro e inexplorado. É um livro de grande beleza poética e bastante visual, imagético, que dialoga muito com a cultura pop, o cinema e a literatura de horror”, analisa Massimini Felix, detalhando um aspecto do romance que exigiu uma atenção especial: “Como há um núcleo de adolescentes, em minhas pesquisas para a tradução fiz um ‘mergulho’ nesse universo juvenil, em especial no mundo da creepypastas (histórias de terror divulgadas em fóruns da internet); são bem importantes no desenvolvimento da trama.”
“Ojeda nos apresenta uma obra polifônica, com narradores que se intercalam e uma grande variedade de estilos”, destaca a tradutora. “A autora às vezes faz associações inusitadas, como por exemplo o deslocamento do universo materno — o terreno do conforto e do amor por excelência — para um reino de trevas e medo, um lugar escuro e inexplorado. É um livro de grande beleza poética e bastante visual, imagético, que dialoga muito com a cultura pop, o cinema e a literatura de horror”, analisa Massimini Felix, detalhando um aspecto do romance que exigiu uma atenção especial: “Como há um núcleo de adolescentes, em minhas pesquisas para a tradução fiz um ‘mergulho’ nesse universo juvenil, em especial no mundo da creepypastas (histórias de terror divulgadas em fóruns da internet); são bem importantes no desenvolvimento da trama.”
Escritos por autoras de diferentes origens e formações, “Mandíbula” e “Pássaros na boca” têm em comum personagens assombrados pelos abismos da própria consciência. Porque nada pode ser mais perturbador do que fantasmas e monstros criados pela própria mente.
Histórias de outro século
O absurdo e o cotidiano andam juntos nas 44 histórias de “As convidadas”, de Silvina Ocampo (1903-1993). Os contos de um dos grandes nomes da literatura latino-americana do século 20 foram traduzidos pela primeira vez para o português por Livia Deorsola e lançados pela Companhia das Letras. Nas breves narrativas, situações desconcertantes, como a de um homem que confessa a paixão por um fantasma: “Eu me apaixonei por uma substância volátil e, sendo você, minha alma, de qualidade parecida, me dirijo a você para justificar de algum modo um sentimento que não compreendo”.
Nascida em Buenos Aires, em 1903, Ocampo foi casada com o também escritor Adolfo Bioy Casares e é autora de “A fúria”, lançado no Brasil em 2019. “Nos contos de Ocampo, o mundo trivial permanece reconhecível, ainda que estranho e transfigurado: de repente, ele se abre e é outro, mas a passagem da fronteira é completamente imperceptível”, comenta Alejandra Pizarnik (1936-1972). “Poucos têm um olhar para os pequenos horrores da vida cotidiana e um número ainda menor enxerga o maravilhoso do dia a dia”, complementa Alberto Manguel, também citado na edição brasileira.
Nascida em Buenos Aires, em 1903, Ocampo foi casada com o também escritor Adolfo Bioy Casares e é autora de “A fúria”, lançado no Brasil em 2019. “Nos contos de Ocampo, o mundo trivial permanece reconhecível, ainda que estranho e transfigurado: de repente, ele se abre e é outro, mas a passagem da fronteira é completamente imperceptível”, comenta Alejandra Pizarnik (1936-1972). “Poucos têm um olhar para os pequenos horrores da vida cotidiana e um número ainda menor enxerga o maravilhoso do dia a dia”, complementa Alberto Manguel, também citado na edição brasileira.