“Faz um par de anos, houve um período mais desagradável. Meu pai estava plenamente consciente de que a memória estava virando fumaça. Pedia ajuda com insistência, repetindo algumas vezes que estava perdendo a memória. O preço de ver uma pessoa nesse estado de ansiedade e ter que tolerar suas intermináveis repetições, uma, duas, tantas vezes, é enorme.
Dizia ele: 'Trabalho com a minha memória. A memória é minha ferramenta e minha matéria-prima. Não consigo trabalhar sem ela, me ajudem'. E depois repetia de várias maneiras, muitas vezes por horas e por horas a fio. Era extenuante. Com o tempo, passou. Recobrava alguma tranquilidade e às vezes dizia:
– Estou perdendo a memória, mas por sorte esqueço que estou perdendo a memória...
Ou:
– Todos me tratam como seu fosse criança. Ainda que eu goste...
Sua secretária me conta que numa tarde o encontrou sozinho, de pé no meio do jardim, olhando para o nada, perdido em pensamentos.
– O que o senhor veio fazer aqui fora, dom Gabriel?
– Chorar.
- Chorar? Mas o senhor não está chorando.
– Estou sim, mas sem lágrimas. Você não percebe que minha cabeça está uma merda?”
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Quem se encanta com sua incrível capacidade de contar histórias, todas inspiradas na realidade – como ele mesmo garantiu – e mesmo os jovens leitores que tenham descoberto seus livros há pouco tempo – certamente, vai se emocionar ao ler o trecho acima e outras lembranças em “Gabo & Mercedes:
Uma despedida”, escrito pelo filho mais velho do escritor colombiano, o cineasta Rodrigo García, de 62 anos, que acaba de ser lançado pela editora Record. Ele narra as últimas semanas de vida do escritor e da família, o drama de não reconhecer mais a própria mulher, Mercedes Barcha, e os filhos, e de tratá-los como estranhos que invadiam sua casa.
Rodrigo conta também algumas passagens engraçadas da vida do pai, a relação com ele e o irmão mais novo, Gonzalo – a forma, por exemplo, como os dois acordavam o pai após a sesta sem assustá-lo.
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E ainda a seguinte brincadeira com enfermeiras e empregadas da casa quando já estava acamado: “O som de um coro de vozes femininas às vezes desperta meu pai. Ele abre os olhos que se iluminam assim que as mulheres se voltam na direção dele e o cumprimentam com carinho e admiração.
Numa dessas ocasiões, estou no quarto ao lado quando escuto o grupo de mulheres às gargalhadas. Entro e pergunto o que está acontecendo. Dizem que meu pai abriu os olhos, olhou para elas com atenção e disse tranquilamente: '– Não consigo trepar com todas.'”
Mas o ponto alto de “Gabo & Mercedes” é mesmo o drama final da demência, antes da internação com pneumonia e câncer no pulmão, que o mataram em 17 de abril de 2014, no aconchego do seu casarão na Cidade do México. Mercedes decidiu não prolongar o sofrimento com internação hospitalar e risco de cirurgias, diante de grande debilidade física do marido. A família concordou que ele morresse em paz em casa, um mês depois de completar 87 anos.
Antes, entretanto, o veio o drama da chegada da velhice, que parece ter um peso maior em pessoas geniais como García Márquez, por causa da crescente incapacidade de escrever. Rodrigo retrocede mais de 20 anos no tempo, no fim dos anos 1990.
“No final dos sessenta , perguntei a ele o que pensava da noite, depois de apagar a luz:
'Penso que isto está quase terminando'. Depois acrescentou, com um sorriso: 'Mas ainda tem tempo, ainda não há necessidade de se preocupar muito'. Seu otimismo era sincero, e não só uma tentativa de me consolar. 'Um dia você acorda e está velho. Assim, sem aviso prévio, é assustador', acrescentou.
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'Anos antes, escutei que chega um momento na vida do escritor em que já não consegue mais escrever uma obra de ficção extensa. É verdade. Já sinto isso.
Por esse motivo, de agora em diante, serão textos mais curtos'. Quando ele tinha oitenta, perguntei o que sentia. '– O panorama dos oitenta é impressionante. E o fim se aproxima. '- Você está com medo? – Sinto uma tristeza enorme'. Quando recordo esses momentos, me comovo de verdade com sua franqueza, principalmente por causa da crueldade das perguntas”, conta Rodrigo.
Aos poucos foi minando a memória criativa do escritor, que ganhou o Nobel de Literatura em 1982, e brindou o mundo, além de sua obra-prima, “Cem anos de solidão” – com a saga de várias gerações da família do coronel Aureliano Buendía –, com outras obras referenciais, como “O amor nos tempos do cólera”, “Crônica de uma morte anunciada”, “Ninguém escreve ao coronel”, “Um senhor muito velho com umas asas enormes”, “O general em seu labirinto”, “O outono do patriarca” e ainda dezenas de romances, contos, crônicas e reportagens, estas a segunda paixão de Gabo.
Aliás, ele disse em várias entrevistas que o foi o jornalismo que o levou à literatura, não apenas por necessidade, mas por vocação.
“Não quero ser lembrado por “Cem anos de solidão” nem pelo Prêmio Nobel, e sim pelo jornal. Nasci jornalista e hoje me sinto mais repórter do que nunca. Isso está no meu sangue”, disse ele poucos anos antes de morrer.
E foi o repórter que abriu caminho para o escritor, que levou para a ficção o que vivenciou. “Todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade”, disse Gabo em longa entrevista ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza, hoje com 90 anos, transformada no livro “Cheiro de goiaba” (3ª edição/editora Record/1982).
Quando perguntado por Apuleyo sobre qual propósito o levou a escrever “Cem anos de solidão”, ele respondeu: “Dar uma saída literária, integral, para todas as experiências que de algum modo me tivessem afetado durante a infância”.
E indagado sobre os comentários de críticos de que sua obra máxima seria “uma parábola ou alegoria da história da humanidade”, ele declarou, com convição:
“Não, eu só quis deixar um testemunho poético do mundo da minha infância, que transcorreu numa casa grande, muito triste, com uma irmã que comia terra e uma avó que adivinhava o futuro, e numerosos parentes de nomes iguais que nunca fizeram muita distinção entre a felicidade e a demência”.
“CLARÕES E LUCIDEZ”
A propósito da demência que o assombrou no ocaso da vida, em um dos capítulos de “Cem anos de solidão”, ao descrever a sina de Úrsula, uma das protagonistas da obra, García Márquez, na pele do narrador e como premonição para o seu próprio futuro, fala de crianças durante a senilidade:
“Úrsula teve de fazer grande esforço para cumprir a promessa de morrer quando estiasse. Os clarões de lucidez, tão escassos durante a chuva, fizeram-se mais frequentes a partir de agosto, quando começou a soprar o vento árido que sufocava as roseiras e petrificava as lagoas e acabou por espalhar sobre Macondo a poeira abrasadora que cobriu para sempre os enferrujados tetos de zinco e as amendoeiras centenárias. Úrsula chorou de tristeza ao descobrir que por mais de três anos tinha servido de brinquedo para as crianças. Lavou a cara borrada de tintas, tirou de cima de si os trapos coloridos, as lagartixas e os sapos ressecados, e as câmandulas e antigos colares de árabes que lhe havia pendurado por todo o corpo, e pela primeira vez desde a morte de Amaranta abandonou a cama sem o auxílio de ninguém, para se incorporar de novo à vida familiar. O ânimo do coração invencível orientava-a nas trevas.”
Foi nos anos finais, já com os lapsos de memória, que Gabo sempre voltava à sua infância, como Rodrigo García conta em “Gabo & Mercedes”: “– Esta não é a minha casa. Quero ir para casa. A do meu pai. Tenho uma cama ao lado da dele”, disse.
Rodrigo deduz, então: “Suspeitamos que a referência não seja ao seu pai, e sim ao seu avô, o coronel, com quem ele morou até os 8 anos e que foi o homem mais influente em sua vida. Meu pai dormia num colchonete no chão, ao lado da cama dele. Nunca voltaram a se encontrar depois de 1935”.
Como se sabe, Macondo, a cidade de “Cem anos de solidão”, e seus personagens inusitados são inspirados em Aracataca, povoado natal de Gabo, onde ele viveu na casa dos avós maternos até os 8 anos, quando seu avô, o coronel Nicolas Márquez, morreu.
Em “Gabo & e Mercedes”, Rodrigo explica por que o pai escreveu apenas a primeira parte de suas memórias, no livro “Viver para contar” (editora Record, 2002). “Nada de interessante me aconteceu depois dos 8 anos”, disse o escritor, exagerando para ressaltar como a infância na casa dos avós moldou sua vida e sua obra.
Na entrevista transposta para o livro “Cheiro de goiaba”, García Márquez fala da importância da memória para a sua obra literá- ria. E garante, por mais incrível que pareça, que tudo é baseado na realidade, mesmo o caso da personagem Remédios, de “Cem anos de solidão”, que sobe ao céu.
“Inicialmente, tinha previsto que ela desapareceria quando estava bordando na varanda de casa com Rebeca e Amaranta. Mas esse recurso, quase cinematográfico, não me parecia aceitável. Remédios ia ficar por ali de qualquer forma. Então, me ocorreu fazê-la subir ao céu em corpo e alma. O fato real? Uma senhora cuja neta tinha fugido de madrugada e que para esconder essa fuga decidiu fazer correr o boato de que sua neta tinha ido para o céu.”
Sobre a realidade transformada em literatura, Rodrigo García revela em seu livro: “Meu pai se queixava de que uma das coisas que mais odiava sobre a morte era saber que seria a única faceta da sua vida sobre a qual não poderia escrever. Tudo o que havia vivido, visto e pensado estava em seus livros, transformado em ficção ou de maneira cifrada”.
UMA DIFÍCIL TRADUÇÃO
No prefácio de “Gabo & Mercedes”, o escritor carioca Eric Nepomuceno, um dos principais tradutores da obra de García Márquez no Brasil, fala da dificuldade que teve para traduzir o livro, principalmente, porque foi amigo do escritor, que conheceu em Cuba, em meados de 1978. A amizade cresceu na Cidade do México, onde Gabo decidiu morar e onde Nepomuceno também viu os filhos do amigo – Rodrigo e Gonzalo – crescerem.
“No começo de 1980 nos aproximamos, e foi para sempre. Ele cometeu a suprema indelicadeza de partir numa viagem sem volta em abril de 2014. Foram 34 anos de amizade fraterna. Mercedes, que nos tratava – Martha, Felipe e eu – como parte da família, foi-se embora em agosto de 2020. Outro vazio na alma”, conta.
Sobre a sua tradução de “Gabo & Mercedes”, Nepomuceno comenta:
“Perdi a conta dos livros que traduzi do castelhano para o português do Brasil. Quarenta? Sessenta? Sei lá. Entre eles estão ‘Pedro Páramo’, ‘Cem anos de solidão’, ‘O jogo da amarelinha’. ‘O livro dos abraços’ e um sem-fim de alegrias. Até agora, o mais difícil tinha sido ‘O caçador de histórias’, livro póstumo do uruguaio Eduardo Galeano. E digo mais difícil não por razões técnicas: por razões de afeto. (…) Pois este livro de Rodrigo García superou tudo que enfrentei antes. E, de novo, por razões de afeto. (…) Quando terminei, estava completamente destroçado. (…) O que Rodrigo traz neste livro é a revelação de como Gabo e Mercedes partiram. São cenas que eu sabia ou intuía, e que ele nos retrata com afeto e cálida memória. Foi como reviver as longas conversas com Gabo, sua maneira de ver a vida e o mundo, sua defesa – e de Mercedes – contra os males da fama e do assédio, e se manter na superfície da realidade. Sim, sim, Rodrigo, meu caríssimo bucanero, você acalentou minha memória e entendi, de novo e para sempre, que ela não tem volta, senti que uma grota funda se abria na minha alma”.
GABO & MERCEDES: UMA DESPEDIDA
De Rodrigo García
Editora Record
Tradução de Eric Nepomuceno
112 páginas
R$ 61,60 (impresso)
R$ 39,90 (digital)
Desabafo de uma mulher traída
Mestre em romances, contos, crônicas e reportagens, o escritor colombiano Gabriel García Márquez escreveu apenas uma peça teatral, “Diatribe de amor contra um homem”, publicada originalmente em 1987 e, agora, finalmente, 35 anos depois, lançada no Brasil pela editora Record.
É um monólogo de apenas 96 páginas, que, para um leitor voraz, é lido numa simples sentada e não decepciona, porque é o autor colombiano em essência no limiar da terceira idade, mas sem perder a ternura e também a ironia.
“Nada se parece tanto com o inferno como um casamento feliz!”, já provoca, na primeira linha, a única personagem, “Graciela Jaraiz de la Vera, mulher de um homem acomodado, neto de marquês”, que na peça é, literalmente, um boneco que ouve um longo desabafo feminino.
O drama da peça, encenada pela primeira vez em Buenos Aires, em 1988, no 4º Festival Ibero-Americano de Teatro, se passa numa cidade do Caribe, “com trinta e cinco graus à sombra”, depois de Graciela e o marido voltarem de um jantar, pouco antes do amanhecer, em 3 de agosto de 1978.
Com cenário simples, ora se olhando no espelho, ora fumando, Graciela destila um melodrama satírico ao relatar os seus 25 anos de casamento de “infelicidade íntima” se dirigindo diretamente ao manequim sentado numa poltrona, a perda de confiança, a traição conjugal, as mágoas e, como ironia, a incapacidade de abandoná-lo e deixar de amá-lo.
García Márquez escreveu a peça aos 60 anos, quando a velhice bateu à sua porta e, certamente, já começava a incomodá-lo. Em dado momento de seu monólogo de desabafo, Graciela declara:
“Se não fosse pelos amanheceres, seríamos jovens a vida inteira. A verdade é que a gente envelhece quando amanhece. O entardecer é deprimente, mas nos prepara para a aventura de cada noite. Os amanheceres, não. Nas festas, assim que sinto o silêncio da madrugada, começa um comichão no meu corpo que não sossega. É preciso ir embora depressa de olhos fechados para não ver as últimas estrelas. Porque, se o dia nos surpreende na rua com roupa de festa, joga em cima de nós uma enxurrada de anos, e a gente nunca mais se livra deles. É por isso também que eu não gosto de fotografias: a gente revê as fotos no ano seguinte, e já parece que elas saíram do baú dos avós”.
À volta com as traições, mas sem querer se fazer de vítima, Graciela desabafa: “Só um Deus homem podia me brindar com essa revelação nas nossas bodas de prata. E ainda tenho de agradecer por ele ter me dado tudo o que era preciso para gozar da minha burrice, dia após dia, durante vinte e cinco anos mortais. Tudo, até um filho conquistador e folgado, e tão filho da puta quanto o pai”. Mas resigna-se:
“Foi só sua mãe dizer que você não era o homem da minha vida para eu ficar louca por você. As pessoas diziam que era um capricho natural de uma coitada do bairro de Las Brisas, a pobretona que era eu na época, já muito bem formada com dezenove anos”.
Diante do silêncio óbvio do marido representado no palco pelo manequim, Graciela segue no seu desabafo: “O certo é que a felicidade não é como dizem, que só dura um instante, e a gente só fica sabendo que teve quando ela já se acabou. A verdade é que ela dura enquanto dura o amor, porque com o amor até morrer é bom”. Em seu monólogo, Graciela extravasa a amargura com uma lembrança hilária (para o leitor, obviamente), ao contar uma evidência da traição do marido com uma atriz:
“Desde que chegamos ao engenho, no meio da barulheira dos peões e da aglomeração da moenda, precisaram tirar os cachorros de cima de mim para eu não ser estralhaçada, porque eles nunca tinham me visto, mas em compensação fizeram uma enorme festa para ela, lambiam as mãos dela, passavam pelo meio das pernas dela, balançando o rabo, ate que no fim precisaram ser presos, para não a enlouquecerem de amor. E, mesmo assim, fiquei em dúvida. Sabe? Porque é duro admitir que alguém tem uma amante mais feia do que a esposa.” Ainda assim, persiste a dúvida cruel para Graciela: Deixar ou não deixar o marido infiel? (PN)
Diatribe de amor
contra um homem
De Gabriel García Márquez
Editora Record
Tradução de Ivone Benedetti
96 páginas
R$ 52 (impresso)
R$ 38,90 (digital)