“Depois de lê-lo , senti como se tivesse seguido um voo de pássaros ligeiríssimo e infinito, em um céu de distâncias infinitas em que não havia consolo, havia somente a amarga e revigorante consciência do real. (…) Gostaria apenas de pedir, a quem não o leu, que leia sem tardar. Passei dois dias sem conseguir realmente desviar o pensamento daquelas páginas, levantando a cabeça de vez em quando para olhar os lugares e os rostos que lá viviam, assim como em silêncio contemplamos os traços e escutamos em nosso coração as vozes das pessoas que amamos.”
A escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) resume assim suas belas impressões sobre a obra máxima do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), em um dos 32 textos, entre crônicas e ensaios, reunidos no livro “Não me pergunte jamais”, que acaba de ser lançado pela editora mineira Âyiné.
O texto sobre a obra-prima de García Márquez é de abril de 1969, dois anos após o lançamento de “Cem anos de solidão”, que ainda começava a ganhar o mundo, e é a referência para Ginzburg exaltar a importância do romance na vida cotidiana.
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Uma das maiores mentes literárias italianas do século 20, Natalia Ginzburg e sua obra – que vem sendo relançada no Brasil – são de grande relevância para a cultura ocidental, não apenas por causa da qualidade, mas também pela luta contra o nazifascismo, que perseguiu seu pai – Giiuseppe Levi e os irmãos, que eram militantes contra a ideologia totalitária vigente na Europa na primeira metade do século 20 – e também o marido, Leone Ginzburg, intelectual judeu perseguido e morto por nazistas.
A infância de Natália, que nasceu em Palermo, capital da Sicília, coincidiu com a ascensão do fascismo, o que deixou marcas indeléveis em sua vida e em seu trabalho.
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Essa sina trágica está muito bem refletida em “Léxico familiar” (1963) – reeditado no Brasil em 2018, pela Companhia das Letras – a obra mais célebre e que tornou Natalia Ginzburg conhecida no Brasil.
“Nesse livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada”, disse ela, que relata a história de sua família perseguida e exilada. Outro relançamento da autora recente é “Pequenas virtudes” (1962), pela Companhia das Letras (2020), que reúne 11 textos ensaísticos e autobiográficos, escritos entre 1944 e 1962.
Agora, a editora de Belo Horizonte Âyiné relança no mercado “Não me pergunte jamais”. Quase todas as 32 narrativas da obra foram publicadas originalmente no diário italiano La Stampa, entre outubro de 1968 e dezembro de 1970.
Mais uma vez, a narrativa é simples e direta, com percepção aguda sobre os grandes temas do seu tempo, leva o leitor a profundas reflexões e ressignificações da própria vida a partir dos relatos autobiográficos de Natália Ginzburg.
Os temas são diversos e atravessam a vida da escritora da infância à velhice, desde a menininha tímida e oprimida na família e na escola, passando pela mulher adulta – que fica viúva, após ver o marido assassinado e precisa procurar emprego para sustentar a família, mas não tem profissão e nada sabe fazer – até a chegada da inquietante velhice.
FASCISMO Em meio a essa linha do tempo, Natália discorre sobre ópera – no texto que dá nome ao livro – cinema, teatro, obras de arte, literatura e crítica literária. Mas são as reminiscências familiares e digressões filosóficas, religiosas e políticas de Ginzburg que fisgam o leitor, caso do texto em que conta a resistência da mãe à cooptação de sua filha na escola pelo fascismo.
“Duas vezes por semana, eu voltava à escola à tarde para a aula de ginástica. Na primeira vez, fui vestida como sempre, e a professora de ginástica, uma velha com um chapéu enorme na cabeça, cinza e peludo, disse que eu deveria ir 'uniformizada'.
Na vez seguinte, minha mãe foi falar com ela e lhe explicou que eu não estava escrita nas 'pequenas italianas' , não tinha uniforme.
A professora respondeu que mesmo assim eu deveria ir para a ginástica de saia preta plissada e camisa branca de piquê, e disse que poderia encontrar esse tipo de camisa e de saia em uma loja na Via Bogino, onde vendiam uniformes para pequenas italianas. (…) Minha mãe foi à Via Bogino, me contou que pediu uma camisa e uma saia, e a atendente disse: 'É para uma pequena italiana, certo?'. 'Não, não, é para fazer ginástica', e a atendente a olhar torto”, conta Natália na narrativa autobiográfica “Bigodes brancos”, de julho de 1970.
Em “A velhice” – de dezembro de 1968, quando o peso dos anos já era vislumbrado no seu horizonte –, a escritora italiana reflete:
“Agora estamos nos transformando naquilo em que nunca quisemos nos transformar, ou seja, em velhos. Nunca desejamos nem nunca esperamos a velhice, e quando tentamos imaginá-la foi sempre de forma superficial, grosseira e distraída. A velhice nunca nos inspirou curiosidade ou interesses profundos. (…) A velhice nos significará o fim do espanto. Nada mais nos deixará maravilhados. Depois de termos passado a vida nos maravilhando com tudo, e não faremos os outros se sentirem maravilhados, ou porque já nos viram fazer e dizer coisas estranhas, ou porque não olharão mais para nós. Pode nos acontecer de nos tornarmos ferro-velho abandonado no mato, ou ruínas gloriosas visitadas com devoção”.
No longo ensaio “Sobre crer e não crer em Deus” – de julho de 1970 –, Ginzburg afirma:
“Quem não crê, que leve em conta que existem pessoas para as quais, sem Deus, o mundo é atroz”. Sem manifestar pessoalmente crença ou ateísmo, a escritora destaca a importância de respeitar as convicções de cada um. “Entre tantas coisas odiosas que surgiram em nosso tempo, considero odiosa a ideia de que crer seja algo estúpido, ridículo e vil, sinal de inferioridade, e de que não crer seja sinal de coragem viril, firmeza, e definitivamente, superioridade (…) Que acreditar em Deus torna a alma mais feliz é falso, e que torna os humanos melhores também é falso. Por isso, crer ou não crer seria algo irrelevante. Mas se crer ou não crer é irrelevante, significa então que tudo o que diz respeito a Deus tem importância imensa, inexplicável e essencial, quer dizer que Deus é mais importante do que nossa crença ou descrença nele.”
NÃO ME PERGUNTE JAMAIS
De Natalia Ginzburg
Tradução de Julia Scamparini
Editora Âyiné
250 páginas
R$ 64,90
Natalia Ginzburg
Para mim, ler “Cem anos de solidão” foi como ouvir o som de uma corneta me despertando do sono. Comecei a leitura sem vontade e esperando que me fizesse voltar ao início. Alguma coisa prendeu minha atenção e fui adiante com a sensação de avançar em uma floresta fechadíssima e verde, cheia de pássaros, cobras e insetos. Depois de lê-lo, senti como se tivesse seguido um voo de pássaros ligeiríssimo e infinito, em um céu de distâncias infinitas em que não havia consolo, havia somente a amarga e revigorante consciência do real.
É a história de uma família em um vilarejo da América do Sul. Em um desenho intricadíssimo, vertiginoso e minucioso desenrola-se o destino de cada um, misterioso e límpido, abalado por guerras e ruínas e conduzido na glória e na miséria, mas sempre igualmente livre, secreto e solitário, até um ponto imóvel do horizonte, onde um céu luminoso e imóvel acolhe memórias e ruínas. Mas não falarei deste romance e não tentarei resumi-lo, pois o amo demais para comentá-lo e encerrar em poucas linhas. Gostaria apenas de pedir, a quem não o leu, que leia sem tardar. Passei dois dias sem conseguir realmente desviar o pensamento daquelas páginas, levantando a cabeça de vez em quando para olhar os lugares e os rostos que lá viviam, assim como em silêncio contemplamos os traços e escutamos em nosso coração as vozes das pessoas que amamos.
Depois li e amei alguns outros romances, pois os verdadeiros romances podem milagrosamente nos devolver o amor pela vida e a sensação concreta do que queremos da vida. Os verdadeiros romances têm o poder de nos livrar da covardia, da letargia e da submissão às ideias coletivas, aos contágios e aos pesadelos que respiramos no ar. Os verdadeiros romances têm o poder de nos conduzir, repentinamente, ao coração do real.
O romance é, pois, a história de uma família em um vilarejo. Provavelmente no futuro não haverá mais famílias nem vilarejos, mas apenas cidades e coletividade. Logo, este é o último ou um dos últimos romances em que essas coisas têm vida, e é possível perceber a consciência e o tormento de estar entre os últimos e, ao mesmo tempo, a grande e livre alegria e felicidade por ainda ter tido um breve instante de existência.
No futuro não haverá mais romances do tipo, mas serão necessários séculos, devido à lentidão em que se dá a extinção de uma espécie. Por algum tempo, os romances serão apenas gritos roucos e soluços, depois chegará o silêncio. As pessoas ficarão inchadas de romances não escritos, e histórias subterrâneas e secretas circularão pelas profundezas da terra. Para apaziguar a própria sede secreta, as pessoas inventarão sucedâneos; assim como haverá comprimidos e biscoitos sintéticos para substituir o pão e a água, haverá sucedâneos de romances, uma vez que os homens têm uma criatividade genial para encontrar sucedâneos para as coisas de que foram privados. E assim passarão séculos.
Então, um dia o romance, assim como a fênix, renascerá das próprias cinzas. Pois o romance faz parte das coisas do mundo que são ao mesmo tempo inúteis e necessárias, totalmente inúteis porque desprovidas de qualquer razão de ser e de qualquer escopo que seja visível e, mesmo assim, necessárias à vida como pão e água, e faz parte das coisas do mundo que são frequentemente ameaçadas de morte e, no entanto, são imortais.