Um dos intérpretes do Brasil contemporâneo, Sérgio Abranches recorreu à ficção para retratar os dias desleais que vivemos. O novo romance do sociólogo e escritor, “O intérprete das borboletas” (Record) é um livro escrito no calor da hora sobre a invasão das emoções políticas na vida familiar dos brasileiros, como define o autor.
“Já havia escrito um ensaio sobre ódio e polarização. Mas faltava expressar os efeitos emocionais dessas paixões extremadas na vida das pessoas. Concluí que este era um exercício para a ficção”, conta, em entrevista ao Pensar do Estado de Minas.
Mineiro de Curvelo, Abranches mora no Rio de Janeiro desde 1978. Mas ambientou boa parte de sua narrativa em bairros de São Paulo e nos arredores da metrópole paulistana.
“Eu queria esse cenário hiperurbano de São Paulo, sem o respiro do mar. Além disso, precisava do distanciamento entre minhas personagens e meu ambiente mais doméstico. Queria, também, um contraste entre o modo paulista de ser e o carioca. Essa diferença de espíritos, definidos por ecologias urbanas distintas, também interfere no modo como esses ódios atuam nas pessoas”, acredita.
Estruturado a partir de dois núcleos familiares, “O intérprete de borboletas” apresenta conflitos nascidos da divisão provocada pela radicalização na política brasileira.
“Politizamos as emoções”, constata um dos personagens. “Hoje, em família, o mais importante é escolher o momento de se calar: é um ato de tolerância amorosa”, complementa. “Mas o silêncio é conformista”, rebate outro personagem. E assim se inicia outro impasse em um livro dolorosamente atual. A seguir, a entrevista que Abranches concedeu, por e-mail, com algumas perguntas formuladas a partir de trechos do terceiro romance (os anteriores são “Que mistério tem Clarice?” e “O pelo negro do medo”).
Como surge “O intérprete de borboletas”?
Já estava atento para a invasão das emoções políticas na vida familiar desde que vi uma entrevista da Míriam Leitão (jornalista e mulher do autor) com um casal na Venezuela dividido pela adesão de um, e oposição de outra, à nova constituição chavista. Era diferente do que vivi por exemplo, durante a ditadura militar, ou das divisões na história política da república de 1946. Agora vivemos uma politica de ódio e polarização.
Tentei analisar o fenômeno em um breve ensaio para uma coletânea da Companhia das Letras: “Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje”. Um ensaio de sociologia política e psicologia social. Mas faltava expressar os efeitos emocionais dessas paixões extremadas na vida das pessoas, no cotidiano.
Concluí que este era um exercício para a ficção. O gatilho para iniciar a escrita veio da observação de uma adolescente deprimida porque foi cancelada pelas melhores amigas no colégio, por pensar diferente delas sobre o resultado das eleições de 2018.
Acabou tendo que mudar de colégio. Comecei a escrever e pesquisar para construir os flagrantes dessa invasão do cotidiano pelos ódios políticos e as personagens que fariam sentido.
É um romance que se passa no tempo presente, reproduzindo discussões atuais. O que o fez levar esses temas para a ficção?
Eu me dei conta de que esse domínio da política pelas emoções extremas tipo devoção versus ódio, essa linguagem do aniquilamento do outro que carrega a morte virtualmente desejada dos opostos, não invadia apenas a vida social, mas o cotidiano afetivo das pessoas individualmente. Produzia dor, medo, raiva reais.
Não me pareceu possível tratar disso com a frieza da sociologia e da psicologia social. Era necessário entrar nas almas das pessoas, dar-lhes voz, pesquisar seus sentimentos pessoais, suas dúvidas, suas aflições.
Uma das palavras que mais aparecem no livro é “ódio”, definido em uma das passagens “não como um oposto do amor, mas a sua negação absoluta”. Por que escrever sobre o ódio? Como buscar um antídoto para essa negação?
Escrever sobre o ódio foi quase uma imposição. Estávamos em plena pandemia. Imaginei que esses sentimentos negativos, essa negação, seria arrefecida pela tragédia coletiva e particular, pelos corpos empilhados, pela privação de ar. Mortes terríveis.
Mas, não, o ódio seguiu seu curso, o presidente frio, debochando das mortes, via as vítimas da doença como fracos, pessoas invadindo hospitais para impedir o tratamento, movimentos para impedir que as pessoas tomassem vacina. Era como negar a boia salva-vidas aos afogados. O tema atravessou a escrita ficcional em que me empenhava na pandemia. Havia escrito um conto sobre a pandemia para um projeto da Amazon reunindo autores das três principais agências literárias.
Estava dedicado a escrever uma ficção que nada tinha a ver com os ódios da política nem com a pandemia. Mas minha cabeça estava povoada de casos sobre essas emoções extremadas. Os personagens começaram a surgir, a imagem da adolescente deprimida não me abandonava. Comecei a escrever notas, a esboçar cenas e personagens, daí comecei a pesquisar fatos e pessoas. Logo passei a escrever a primeira versão.
Como buscar um antídoto para essa negação?
Essa negação surgiu na política, invadiu as igrejas, os locais de trabalho, as famílias, as rodas de amigos. Não sei por onde começar a erradicá-la. No discurso de aceitação da vitória para a presidência da Colômbia, Gustavo Petro começou dizendo que a sua seria a política do amor e da vida.
Do amor, porque buscaria o entendimento nacional, o abandono dos ódios, um consenso nacional, com o objetivo de pacificar a Colômbia, erradicar as armas. Da vida, porque queria paz, justiça social e justiça ambiental.
Talvez este seja o caminho do antídoto, combater os ódios, onde eles começaram, buscando um novo entendimento político para que cada país encontre um novo rumo. Talvez deva começar nos templos e nas escolas. Talvez, nas famílias, reconciliando irmãos em posições polares na política. Realmente, é um labirinto para o qual não tenho o fio que conduz à saída.
O livro começa em um “túnel escuro, que acaba no abismo da pura escuridão”. O Brasil está nesse túnel?
O Brasil e o mundo estão nesse túnel. Nós estamos passando por uma metamorfose social global. Sabemos o que fomos e somos, mas não sabemos o que seremos depois dessa metamorfose.
Sairemos um animal nojento, como na metamorfose de Kafka? Ou sairemos lindas borboletas? Depende das escolhas que fizermos ao longo dessa travessia metamórfica.
Como foi o processo de dar voz a personagens mais jovens e que se expressam por meio de outras linguagens, como o graffiti e o slam? Chegou a fazer algum tipo de pesquisa?
Fiz muita pesquisa para construir personagens desse universo do grafite, do slam e do rap. Tenho um filho designer que circula muito nesse mundo e conhece vários personagens daqui e de outros países. Rodrigo me ajudou a compô-los tanto nas conversas que temos há anos sobre esse mundo, quanto lendo a penúltima versão para checar a correção do que escrevi. Além disso, mergulhei nos slams, ouvi muito rap.
Eu já estava interessado nesta cultura urbana cheia de talento e sentimentos fortes do rap e do hip hop e da extraordinária arte urbana mural que é o grafite. Li alguns livros. Ilustro muitos posts de minha página com graffitis.
Tanto o grafite, quanto o rap e o slam são expressões muito autênticas, muito viscerais da sociedade contemporânea, seus conflitos e seus apartamentos. Eu queria, por outro lado, retratar esse mundo do meu lugar de fala, como homem branco. Tentar mostrar como a branquitude encara e discrimina a negritude.
Um dos personagens cita “Os demônios”, de Dostoiévski. Quais outros livros da ficção têm personagens que poderiam estar vivendo nos dias de hoje?
Falo dos livros que me marcaram e que têm ecos das questões que trato hoje e, por isso tenho revisitado. Uma parte de “Os Irmãos Karamazov” poderia ser trazida para agora. Certamente os personagens de “Pais e filhos”, de Turguêniev, poderiam ser atualizadas.
Acho o mesmo de “O homem sem qualidades” de Musil. Com certeza, situações de “Os sonâmbulos”, de Hermann Broch. De “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse.
De “O Ateneu”. de Raul Pompeia. São personagens e enredos que lidam com divisões entre gerações e pessoas, com as aflições das travessias de época, do mal se enredando entre as pessoas. Não por acaso são, de algum modo, romances de travessia.
“Toda transição assusta”, afirma um dos personagens. E a sua transição da não-ficção para a ficção chegou a assustá-lo?
Não senti como uma transição abrupta. Eu comecei escrevendo ficção, contos, muito jovem. Cheguei a publicar alguns em suplementos literários. Depois, tive que me dedicar à minha formação acadêmica e passei um tempo sem escrever ficção, mas jamais sem ler ficção. Retomei a escrita de contos, após terminar o doutorado, publiquei alguns esporadicamente.
Dois, por exemplo, saíram na revista “Inteligência”, então editada por meu amigo Wanderley Guilherme dos Santos, politólogo que também escrevia ficção.
Publiquei outro na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Mas, nesse tempo, eu me dediquei mesmo a obras acadêmicas. Quanto retomei a ficção, promovi uma mudança também na minha não-ficção, levando-a para o ensaísmo e me afastei do formato acadêmico.
Você também sente vontade de largar tudo e se dedicar às borboletas e bromélias, como o Velho, o personagem que tenta apontar caminhos para sair da trilha de ódio e ressentimento? Como o contato com a natureza o ajuda a enfrentar os dias que vivemos?
Nunca pensei em largar tudo e me dedicar às borboletas e bromélias, embora as ame, como aos pássaros. Nós mantemos uma pequena reserva de Mata Atlântica em Santos Dumont (MG) e temos muitas borboletas e uma população significativa de pássaros.
A natureza me acalma. Aprendo muito com ela também. Ela tem doçura e amargura, tem mel e ferrão. Pássaros, borboletas e víboras. Tem presas e predadores. Não obstante, sem a intervenção destrutiva dos humanos, ela tem equilíbrio e harmonia.
“Só há saída em um novo começo”, aponta um dos personagens. Quais seriam as bases para um recomeço?
Nós temos um mundo novo a construir. Não consigo imaginá-lo construído sobre as mesmas bases que o nosso. Pensando no Brasil em particular, por um momento, nossa sociedade foi construída sobre dois pilares fundamentais que precisamos superar, o patriarcalismo e a escravatura, ambos sintetizados na casa grande. Deles nasceram o machismo e o racismo como elementos estruturais da nossa vida social.
Quando olhamos outros países, encontramos, em muitos deles, certamente em todos do continente americano, fundações ignóbeis. Estamos em uma metamorfose que levará necessariamente a novos começos. Mas o resultado não está dado, temos que construí-lo. Minha utopia pessoal é de uma república cosmopolita, sem fronteiras, que respeite as especificidades e a diversidade humanas, igualitária nos direitos e nas oportunidades, fundada nessa igualdade e na paz. Sem sonhar e pensar para além do que somos, não construiremos nada de bom, não estaríamos no bom caminho, como diria este personagem.
Como um dos intérpretes da realidade brasileira interpreta a ficção que vem sendo produzida nos últimos anos no país?
Vejo muito bem. Temos autores consagrados publicando obras excelentes. Destaco, por exemplo Nélida Piñon, com “Um dia chegarei a Sagres”, Antonio Torres, com “Querida cidade”. Autores de grande qualidade em plena atividade criativa, como Cristóvão Tezza, que aliás acaba de lançar “Beatriz e o poeta”, Noemi Jaffe, que me impressionou muito com “O que ela sussurra”, de 2020.
Alberto Mussa, Luiz Ruffato, Socorro Acioli. Temos uma safra extraordinária, de autores novos como Itamar Vieira Jr, cujo extraordinário “Torto arado” tem uma qualidade narrativa impecável, que ocorre raramente. Jefferson Tenório, de “O avesso da pele”, Eliana Alves Cruz, que acaba de publicar o excelente romance “Solitária”.
Além do resgate de autores extraordinários que estavam postos de lado pelo preconceito, pelo racismo, como é o caso de Conceição Evaristo e que além de ter sua obra mais divulgada, continua em plena forma criativa. Há muitos outros. A literatura brasileira passa por uma fase esplêndida.
TRECHO
“Sabia que este sentimento o condenava a ferir-se tanto quanto iria ferir os outros. Saciar o desejo de vingança também destrói o vingador. Não há palavras pesadas demais para descrever os sentimentos que o sufocavam. O ódio não é o oposto do amor, é a sua negação absoluta. Odiar elimina qualquer empatia, não reconhece atenuantes. De tudo isto ele sabia; quantas vezes usou estes argumentos para aplacar a raiva de clientes e persuadi-los a negociar um acordo. Agora, eram apenas palavras que não serviam de nada. A natureza autodestrutiva do impulso vingador de repente havia perdido a importância.”
“O intérprete de borboletas”
• Sérgio Abranches
• Record
• 239 páginas
• R$ 49,90