Jornal Estado de Minas

PENSAR

'Caderno proibido' faz da escrita um ato de liberdade

Alba de Céspedes foi uma escritora italiana, nascida em 1911 e filha de pai cubano. Em espanhol, césped significa relva, pasto. A prosa de “Caderno proibido”, publicado na Itália em 1952, remete de imediato a “Um teto todo seu”, ensaio de Virginia Woolf escrito originalmente como palestra sobre as mulheres e a ficção.




 
Proferido na Universidade de Cambridge, em 1928, o texto traz uma curiosa passagem, em que a autora inglesa relata que, perdida em pensamentos, caminhava pelo gramado do campus da universidade. De repente, surge diante dela um bedel, advertindo-a que somente estudantes homens e professores eram admitidos na grama. O lugar das mulheres era o cascalho. 

Pouco mais de vinte anos separam as reflexões de Woolf das de Céspedes, mas a mesma discussão se impõe: na trama do livro, a autora italiana cria um personagem que ousa se insinuar em um espaço tradicionalmente masculino, o da escrita. Valeria Cosatti não quer pisar o cascalho, mas a grama.
 
A narrativa se inicia no gesto impensado da protagonista, uma dona de casa comum, que ao sair para comprar cigarros a pedido do marido, decide adquirir um caderno na tabacaria. O objeto lhe remete aos antigos cadernos escolares, em que escrevia com orgulho seu nome na capa.




 
Casada há vinte anos, mãe de dois filhos adultos, ela trabalha em um escritório e acredita que o ato de registrar o cotidiano será uma forma banal de passar o tempo. Nada diz ao marido e aos filhos e resolve manter o volume escondido pelos cantos da casa, fazendo-o migrar entre gavetas, roupas de cama e móveis trancados. 

No entanto, algo impensado se dá à medida que preenche aquelas páginas. A cada entrada do diário, o ato de escrever modifica e impulsiona sua existência, pondo em marcha uma mudança.
 
Lugar de liberdade, o caderno propulsiona também a grafia das frustrações e muita perturbação. Céspedes constrói com habilidade a travessia de Valeria por uma sucessão de não acontecimentos: quase nada sucede do lado de fora; por dentro a revolução está instalada. Uma cisão identitária se inicia, e na clandestinidade do gesto a personagem encontra pela primeira um espaço somente seu.

Valeria vive na Roma dos anos 1950, momento em que uma Europa empobrecida se refaz após a guerra, certezas são abaladas e as instituições se fragilizam diante de novas possibilidades de vida individual e coletiva. Uma mulher como ela trabalha por necessidade, nunca por realização pessoal.




 
A protagonista olha ao redor e percebe as novas gerações dando as costas para todo o alicerce até ali construído – família, casamento, virgindade, fidelidade. Tudo está em xeque e a transformação é lenta: “Quanto mais me conheço, mais me perco”. 

Ela é agora alguém que escreve, nada mais natural que tenha um “amor de escrivaninha”. Apaixona-se pelo chefe e entre a frieza dos memorandos, cartas e telefonemas surge o desejo, que só floresce, vale dizer, quando começa a se dedicar ao diário.
 
Como voyeurs, visitamos sua intimidade, acessando um conteúdo negado àqueles que lhe são próximos. O caderno surge como confessionário, ninho de segredos contendo emoções e percepções jamais admitidas do lado de fora.




 
Acompanhamos a engenhosa construção dessa escrita, vislumbrando o percurso de alguém que se inicia com sinceridade na aventura do pensamento, fermento que permite suportar o vazio dos dias, a repetição inútil das tarefas e a sensação de gratuidade diante das tantas sopas servidas e camisas passadas. 

Mas seu mundo não desmorona, pois carece de forças para assumir grande risco. Mais vale a certeza provida pela família, ainda que o lar esteja capenga e as relações impregnadas de ressentimento.
 
Os filhos são estranhos com alguma intimidade; o marido, um tanto inerte diante das aspirações dessa pessoa em plena metamorfose – já há alguns anos, ele a chama de “mamãe”. Para complicar as coisas, o catolicismo traz um rosário de culpas e o medo do pecado bate à porta. 




Nuances da protagonista

Um dos muitos méritos dessa escrita privada é nos colocar diante de uma personagem repleta de nuances. Sensível, a protagonista está sintonizada com a mudança dos tempos e as aspirações familiares. Mas sua perspectiva se mostra conservadora, moralista, reprovando com violência o relacionamento da filha Mirella com um homem mais velho. Ao filho, reserva dose maior de benevolência. Em suma, reproduz comportamentos que a oprimem. E sofre. 

Como frisa Virginia Woolf, as mulheres desde sempre foram centrais na ficção de autoria masculina – basta lembrar de Antígona, Medeia, Lady Macbeth, Emma Bovary, Anna Kariênina, entre tantas. Enquanto isso, na vida, eram trancadas, espancadas e jogadas de um lado para o outro. Sempre foi duríssima a conquista feminina do espaço para escrever.
 
De objeto do olhar masculino a sujeito do discurso os passos foram penosos. O romance de Céspedes, que morreu em Paris em 1997, desvela essa árdua tarefa de inventar um lugar para si, na construção da subjetividade de uma mulher confinada em um universo opressivo.




 
Há insubordinação diante de alguns padrões, mas também muito fracasso pelo caminho. A força dessa prosa elegante reside justamente na capacidade de Céspedes de criar essa figura tão dilacerada entre a página e a vida, desejosa de pisar o gramado, mesmo quando tudo ainda insiste que o lugar certo é o cascalho.

* Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Influência para Elena Ferrante

Filha de uma italiana com um embaixador cubano, Alba de Céspedes nasceu em Roma em 1911 e é considerada uma das principais romancistas europeias do século 20. Entre os livros que publicou estão os romances “Ninguém volta atrás” (1935), “Dalla parte di lei” (1949) e “A rebolona” (1967). No livro “Frantumaglia: os caminhos de uma escritora”, Elena Ferrante comenta “Caderno proibido” (publicado originalmente em fragmentos em uma revista italiana) e admite que Céspedes foi uma de suas influências. 

Trechos

(De “Caderno proibido”, de Alba de Céspedes)

Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava para a escola e nos quais – antes de iniciá-los – eu logo escrevia, na primeira página, com entusiasmo, o meu nome: Valeria. “Me dê também um caderno”, eu disse, remexendo na bolsa para pegar mais dinheiro. Mas, quando ergui os olhos, percebi que o moço da tabacaria havia assumido uma expressão severa para me dizer: “Não pode, é proibido”. Ele me explicou que o fiscal ficava de guarda na porta, todo domingo, para que ali só se vendesse tabaco, nada mais. Eu era a única cliente. "Mas eu preciso", pedi novamente, “preciso mesmo.” Falei baixinho, agitada, estava disposta a insistir, a suplicar. Então ele olhou ao redor e depois, rapidamente, pegou um caderno e o deslizou sobre o balcão, dizendo: “Esconda embaixo do casaco”.




 
Agora, por trás de qualquer coisa que eu faça ou diga, existe a sombra deste caderno. Nunca poderia acreditar que tudo o que me acontece ao longo do dia merecesse ser anotado. Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças. Mas desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos habituados a considerar como tais. Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida. Mas não sei se isso é um bem, temo que não. 

 
“Caderno proibido”
• Alba de Céspedes
• Tradução de Joana Angélica D’Avila Melo
• Companhia das Letras
• 288 páginas
• R$ 79,90