Em celebração ao centenário da Revista da Academia Mineira de Letras, será lançada neste sábado, em Ouro Preto, a edição especial de número 81, que apresenta a literatura libertária e anticolonial, em língua portuguesa, dos povos originários. Seja na África ou no Brasil, as histórias e culturas resistem às violências e formas de destruição impostas pela colonização. Uma escrita que registra igualmente os abusos contra etnias, que seguem mesmo após as independências. E é na resiliência da experiência coletiva das histórias orais legadas, que esse conhecimento compartilhado alcança a imortalidade no horizonte da escrita.
“Takruk Mik – O livro da Vó Laurita”, história inédita narrada pelo recém-empossado acadêmico Ailton Krenak, é um dos destaques da revista, que tem capa de Jorge dos Anjos e “orelha” de Edimilson de Almeida Pereira. Nela, o autor recupera a impressionante trajetória da liderança Laurita, retrato da saga ao direito à existência dos Krenak e de todos os indígenas do Brasil.
É uma travessia penosa, de muito sofrimento e dores, que se inicia com o decreto de guerra aos Botocudos, editado nos primeiros anos do século 18 por dom João VI, e a implacável perseguição e caçada às etnias que a ele se seguiu; passando pelo circo de horrores do século 20, em que o médio Rio Doce, tornou-se o último refúgio das famílias dos territórios indígenas originais de Minas e do Espírito Santo, escorraçadas de suas aldeias.
Apesar de em 1920 ter havido o aldeamento definitivo nas terras Krenak do Médio Rio Doce, novas décadas se seguiram de cerco, violências e abusos cometidos por colonos e posseiros que ocuparam o território, submetendo os indígenas a novos deslocamentos forçados.
O Serviço de Proteção ao Índio – SPI, precursor da Funai, se omitiu e inclusive participou de passagens tenebrosas dessa perseguição, jamais cessada. Durante a ditadura militar, sob a complacência da Funai, indígenas de todas as etnias do país, tidos como “rebeldes” ou “problemáticos” foram empurrados ao Reformatório Agrícola Krenak, no município de Resplendor, onde frequentemente acorrentados, torturados e vítimas de abuso, escreveram a sangue mais uma triste página da história da violência institucional do estado brasileiro contra os povos originários.
É na voz de Vó Laurita e das histórias ancestrais um dia por ela reveladas aos sobreviventes da etnia, entre os quais o próprio Ailton Krenak, que a história deste povo é apresentada.
Um relato sensível, emocionante que registra a memória coletiva de resiliência e beleza de uma língua e cultura, que sobrevive à violência quando não promovida, estimulada pelo estado brasileiro. Em janeiro de 2018, Vó Laurita faleceu, não se sabe ao certo de quê, mas sabe-se que com muita tristeza, a repetir: “Watu morreu e eu não tenho que viver”. Watu é rio sagrado.
Segue principal referência da reserva Krenak, à margem esquerda do Médio Rio Doce, conquistada a fórceps em decisão judicial que se arrastou por décadas. Quando corria ainda vivo, Watu foi sepultado, em 5 de novembro de 2015 pela lama tóxica arrastada da Barragem do Fundão, da Samarco, em Mariana.
“Takruk Mik – O livro da Vó Laurita” integra alentado dossiê temático da revista da Academia Mineira de Letras, que, sob o título “Poesia Indígena de Minas Gerais”, foi organizado por Ailton Krenak e a professora Maria Inês de Almeida.
“E quando um rio é a artéria do povo que leva seu nome, seu drama – poesia: Watu? O rio dos ‘Botocudo’ foi envenenado, e sua Mata Atlântica, cortada. Quais histórias ainda serão capazes de manter a respiração de sua língua, que continua, no entanto, sobrevivente? Uma mulher, Laurita, que é uma pátria, cantando suas preces a esse rio-pai, é a poesia pura desses que antigamente usavam botoques nos lábios”, observa Maria Inês de Almeida.
Escritores indígenas na língua original
Igualmente potente são as histórias e poesias de escritores Pataxó, Xacriabá, Kaxixó, trazidas na própria língua original – traduzidas ao português. São eles: “Mimnoxop yay – Saudades da árvore comprida”, de Rosângela Tugny; “Txopai e Itohã”, de Kanátyo Pataxó; “As palavra d’ês, o subeio da Iaiá nossa”, de Ercina Xacriabá; “Iaiá Cabocla”, pelos professores da Aldeia Brejo Mata-Fome.
Um dos textos recupera a voz do líder ancião Djalma Kaxixó, registrada por seu neto, o professor Gleyson Kaxixó, no livro “O povo Kaxixó: compreendendo sua história e seu jeito de comunicar”, publicado em 2012 pelo Núcleo Literaterras, da Faculdade de Letras da UFMG. O convite à viagem ao coração do Brasil é de Djalma Kaxixó: “Eu vô mostrar isso aqui d’antes de existí branco! Naquele tempo, Kaxixó tinha forno pra cozinhá as panela de barro. E lá na frente tem o cementério e as urna de barro, que também já passou tudo nas filmação.
Quando o povo fala: quand’é que pispiô? Mas tá’qui a prova na minha mão, aqui tá verdade, aqui na minha mão! Aqui tá a escritura do povo Kaxixó, d’antes d’existir branco e negro! A inteligência do povo da floresta tá’qui nesse caco de cerâmica na minha mão, e o povo tá vendo coisa que já vem passando de geração, onde qu’eu sou um del’s: neto e bisneto da Mãe Juana! Hoje nóis tá noutra geração: as geração antiga tão na minha mão! Tinha forno, tinha cementério aqui do povo da Mãe Juana e também nóis, do povo da Tia Vovó. Aqui tá o pé da história Kaxixó! O povo Kaxixó comprova”.
Literatura africana
A edição especial do centenário da Revista da Academia Mineira de Letras destaca também um segundo dossiê temático, das literaturas africanas de língua portuguesa, organizado pela professora Nazareth Soares Fonseca, pesquisadora do tema, e pelo presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério Faria Tavares.
Assim como as etnias originais do Brasil, trata-se também de diálogo profundo que se estabelece com a memória dos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné- Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, submetidos à colonização portuguesa, muitos escravizados. Essa experiência coletiva da maldade humana brota na beleza da literatura de seus escritores, revelada nesta edição especial da revista em artigos de especialistas de todos esses países.
“Os artigos recortam algumas feições literárias dos cinco países africanos que têm o português como língua oficial, para demonstrar a vitalidade de literaturas muito jovens ainda, já que, embora possam ser reconhecidos textos literários produzidos por escritores oriundos dos espaços colonizados por Portugal no continente africano, desde o século XIX, somente a partir do século XX, mais especificamente da década de 1930, em Cabo Verde, e da década de 1950, em Angola e Moçambique, surgiram movimentos que investiram na autonomia literária dos países que representavam”, descreve Nazareth Soares Fonseca. Segundo ela, ao defenderem uma expressão literária voltada “às questões da terra, do chão em que brotam”, esses movimentos, com diferentes características, buscaram a maioridade literária, independentemente dos modelos europeus, inclusive elevando-se à forte censura imposta aos intelectuais e escritores que emprestaram importante contribuição à luta anticolonial.
O dossiê apresenta em módulos separados os artigos sobre a literatura de cada país, porque, embora germinem no solo comum da causa libertária, assumem características específicas em cada lugar. “As considerações sobre a poesia dos poetas e poetisas que cantam o sofrimento do povo subjugado pelo colonialismo e preanunciam a conquista da liberdade – como se mostra na poesia de Agostinho Neto e Alda Lara, de Angola, José Craveirinha, Noémia de Sousa, de Moçambique, e Alda Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe – indicam diferenças de estilo, visão de mundo e posicionamento político”, afirma Nazareth Soares Fonseca.
Tais aspectos se expressam intensamente nas propostas literárias cultivadas em cada país no período pós-independência, sublinha Nazareth Soares Fonseca, lembrando que cada qual, busca e conquista horizontes próprios.
“Cada escritor e cada escritora dos espaços africanos que têm o português como língua oficial, ao mesmo tempo que se situam em um contexto de expressão literária demarcado pelo uso da língua oficial do país, encenam, em seu fazer literário, de forma peculiar, as tensões decorrentes do uso da língua oficial do país na prática literária exercida em espaços de predominância comunicacional oral”, explica ela.
É assim que as línguas africanas originais tensionam e provocam dispersões no idioma português, sejam os crioulos, línguas de comunicação em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, sejam em Angola e Moçambique. Em cada localidade, sustenta Nazareth Soares Fonseca, a literatura se enriquece com apropriações de recursos da fala e com as desestabilizações provocadas pelos embates interdiscursivos e experimentações requeridas pela escrita literária.
São artigos de Angola: “Agostinho Neto (1922-1979), um escritor e intelectual orgânico angolano do século XX”, por Luís Kandjimbo; “Alda Lara: poesia, conto e trabalho acadêmico”, por Fabio Mario da Silva; “ Violência, denúncia e resistência ancestral em Boaventura Cardoso”, por Jurema Oliveira; “ Notas sobre a trajetória literária e política de Luandino Vieira”, por Maria Nazareth Soares Fonseca; “ João Melo, poesia e prosa: o espetáculo da vida a partir da literatura”, por Tania Macêdo; “Manuel Rui”, por Florentina da Silva Souza; “Ondjaki, um fazedor de (des)lembramentos”, por Renata Flavia da Silva; “Noite acesa de palavras: a poética de Paula Tavares”, por Assunção de Maria Sousa e Silva; e “Pepetela: experiência e ficção”, por Rita Chaves.
De Cabo Verde, a revista traz os artigos: “Arménio Vieira”, por Mário César Lugarinho; “Do deserto das pedras à deserção da pobreza: breve apresentação da poesia de Corsino Fortes”, por Júlio Machado;” A escrita de Dina Salústio: intenção política e estética”, por Lílian Paula Serra e Deus; “Breve retrato do poeta Filinto Elísio (ou o “receituário deste tabuleiro”)”, por Silvio Renato Jorge; “Germano Almeida, um contador de histórias ressignificadas”, por Roberta Maria Ferreira Alves; “Os percursos poéticos de Jorge Barbosa”, por Luciana Brandão Leal; “Orlanda Amarílis: um olhar sensível às experiências de mulheres imigrantes”, por Simone Pereira Schmidt; “Apresentando Vera Duarte: de Cabo Verde para o mundo”, por Simone Caputo Gomes.
São artigos de Guiné-Bissau: “Abdulai Sila: letras que agenciam a esperança”, por Wellington Marçal de Carvalho; “Odete da Costa Semedo, escritora guineense. E bem mais.”, por Moema Parente Augel; “Tony Tcheka: instituição literária, patriotismo e intervenção social”, por Pires Laranjeira.
De Moçambique, os textos versam sobre os escritores: “Eduardo White: a poesia em metamorfose iluminada”, por Ana Mafalda Leite; “João Paulo Borges Coelho: ficção e fruição”, por Nazir Ahmed Can; “Craveirinha: a palavra e o tempo”, por Natalino da Silva Oliveira; “Lília Momplé: letras que reinventam os compassos da História”, por Franciane Conceição da Silva; “Mia Couto, uma grandeza miúda”, por Maria Zilda Ferreira Cury; “Cantos de insubordinação e ancestralidade em Noémia de Sousa”, por Karina de Almeida Calado; “Paulina Chiziane, tecelã de estórias, história e liberdade”, por Carmen Lucia Tindó Secco; “Ungulani Ba Ka Khosa e a escrita do ‘não’”, por Vanessa Ribeiro Teixeira.
De São Tomé e Príncipe, os artigos versam sobre os escritores: “Dona Alda Espírito Santo: lições de resistência e felicidade”; por Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva; “Conceição Lima: uma poética da descolonização”, por Inocência Mata; e “Francisco José Tenreiro, um poeta insular e da negritude”, por Agnaldo Rodrigues da Silva.
Revista da Academia Mineira de Letras
• Número 81
• 472 páginas
• Inclui os dossiês “Literaturas africanas de língua portuguesa” – organizado por Maria Nazareth Soares Fonseca e Rogério Faria Tavares – e “Poesia indígena de Minas Gerais” – organizado por Ailton Krenak e Maria Inês de Almeida.
• Lançamento neste sábado (23/7), às 11h, na Biblioteca Pública Municipal de Ouro Preto (Rua Xavier da Veiga, 309, Centro). Conteúdo integral disponível, a partir de 1º de agosto, no site da AML.
Lançamento em Ouro Preto
O número 81 da revista da Academia Mineira de Letras (AML) será lançado neste sábado na Biblioteca Pública de Ouro Preto. A sede da Academia será simbolicamente transferida para a cidade amanhã e domingo. Além do lançamento, a sessão também homenageará os 150 anos de nascimento do poeta e patrono Alphonsus de Guimaraens, e os cem anos da revista, fundada em 1922, quando o presidente da instituição era o poeta Mário Franzem de Lima (irmão de Augusto de Lima). O acadêmico Caio Boschi, vice-presidente da AML, falará sobre Mário de Lima e o neto de Mário, Luiz Otávio de Lima Pereira, agradecerá a homenagem em nome da família. Entre as presenças confirmadas, estão os organizadores dos dois dossiês incluídos na revista: as professoras Nazareth Soares Fonseca, Maria Inês de Almeida, o acadêmico Ailton Krenak e Rogério Faria Tavares, presidente da AML.
TRECHO
“Takruk Mik, “O livro da Vó Laurita”, de Ailton Krenak
(“Para continuarmos a ouvir as histórias de Laurita Krenak, a matriarca que liderou sua família na beira do Rio Eme”)
“Foi esta dupla formada por Funai e polícia local a serviço dos fazendeiros que transformou um lugar que tinha sido reservado como terra indígena em colônia penal em um verdadeiro centro de tortura, como mais tarde ficou revelado. Voltar para casa para estes índios era ir para a cadeia, mas, mesmo assim, nunca desistiram. E, depois de uma breve parada na aldeia do Itariri, como hóspedes do Xeramõi Antônio Branco, a moça pegou o caminho de volta para casa, agora só com seu pai e sua mãe, pois tinham perdido para sempre aquele irmão que ela tanto amava.
(...)
Depois de peregrinar pelas estações de trem que ligavam Minas a São Paulo e Rio, sem dinheiro e falando português de índio, esta família chegou à beira do Rio Doce. Descendo na pequena estação da EFVM21 chamada Krenak, atravessaram o rio na barca que fazia o serviço e dormiram nas lajes de pedra, que mantinham um calor reconfortante quando anoitecia. Uma única família de índios tinha conseguido permanecer naquela terra invadida por posseiros e de arrendamentos feitos pela Funai. Com a chegada de Laurita e seus pais, agora eram duas famílias resistindo à extinção da aldeia.
Esta aldeia vem resistindo às investidas dos inimigos quase desde a sua criação, em 1926, para abrigar os índios das florestas do Rio Doce. Muitos pequenos grupos de sobreviventes das invasões de colonos andavam perdidos pelas serras mineiras e alguns guerreiros ainda insistiam em chefiar ataques a sítios e fazendolas que vinham sendo abertas nas vilas próximas ao curso do Rio Doce e seus afluentes. Eram rechaçados a tiros de espingarda e caçados por grupos de colonos armados de facões e cartucheiras até a morte. Isto levou o governo a criar uma reserva indígena no Médio Rio Doce, perto de Aimorés, descendo para o Espírito Santo. Mesmo assim, nem todos os índios ficavam dentro desta reserva, pois ainda eram livres, como seus antepassados caçadores, e não podiam aceitar uma vida de gado, dentro de quatro linhas demarcando uma terra. Os brancos, inclusive funcionários do governo que eram pagos para proteger e dar assistência para os índios, aproveitavam-se disto. Usavam as terras para criar bois, derrubavam a mata para vender madeira e arrendavam terras para fazendas dentro das terras indígenas. Isto na década de 1930 e 40. E isto foi se repetindo até Laurita e sua família serem também despachadas, dando lugar aos arrendamentos e à titulação fajuta de terras feitas pelo estado de Minas Gerais, através da Rural Minas. Foi uma terra invadida e loteada pelo estado que os índios tiveram que abraçar e fazer virar uma aldeia indígena. E por ela Laurita e seus pais tiveram que lutar mais uma vez para que fosse respeitada como sua aldeia Krenak. Uma luta para a vida inteira.”