“Os artistas são as antenas da raça”, escreveu Ezra Pound em algum lugar de sua obra. Para o poeta norte-americano, arte não se faz só com criatividade. É preciso também sintonia com a época: saber captar os sinais que estão no ar.
O ensinamento de Pound poderia servir de epígrafe para uma futura biografia de Nuno Ramos. Antenado ao seu tempo, o artista plástico, compositor e escritor paulista vem construindo, ao longo das últimas décadas, algumas das mais interessantes obras de sua geração. O leitor certamente já deve ter trombado com algumas delas. Aqui, por conta do espaço, fico em apenas dois exemplos.
É dele “111”, exposição de 1992, que ocupou duas salas em uma galeria em São Paulo e criada a partir do impacto do artista diante do massacre de 111 homens encarcerados no presídio do Carandiru. Já a segunda obra é bem mais recente. E aconteceu em 2020, durante a pandemia.
Leia Mais
Francisco José Viegas: 'Tento demonstrar que o romance policial não existe'Livro mostra a rejeição de uma população às ideias da Inconfidência MineiraMaria Inês de Almeida: 'Indígenas são enganados pelo governo Bolsonaro'Livro aborda história do Brasil por meio do que os mapas revelam e escondem"O Brasil está à beira de resgatar o Brasil", diz José Eduardo AgualusaThomas Piketty: crise do clima vai provocar mudança histórica mundialMostra Negras Autoras realiza sua terceira edição neste fim de semana
Durante o percurso, sempre usando a marcha à ré, houve uma dramaturgia sonora composta, em parte, de sonoridades emitidas pelos veículos que remetem ao som de respiradores utilizados no tratamento de pacientes com coronavírus, que necessitam de ventilação mecânica em unidades de terapia intensiva (UTI). A performance/filme foi feita em colaboração com Teatro da Vertigem e filmada por Eryk Rocha.
Mas, aqui, atenção: engana-se quem acha que Nuno faça arte engajada, mero documento histórico. Seu trabalho, que vai da performance à ficção, passando pelos vídeos, música, teatro e poesia, é muito mais do que isso. É política no sentido de que simplesmente nunca perdeu o contato com o real. Um real trágico, injusto, de um estranho país desandado chamado Brasil.
Seu mais recente livro, “Fooquedeu: Ensaios e observações originais sobre a realidade brasileira”, é mais uma bela (e triste) prova disso. Escrito a partir de anotações que começaram a ser feitas ainda em 2016, durante a montagem de uma instalação que fez no CCBB de Belo Horizonte, é um diário da barbárie do nosso cotidiano.
Leia: Sérgio Abranches: 'Escrever sobre o ódio foi quase uma imposição'
Partindo da história real de um morador em situação de rua que morreu eletrocutado quando se banhava em um dos chafarizes da Praça da Liberdade, Nuno escancara nossa infinita, e cínica, capacidade de naturalizar a violência contra os mais pobres.
Morando atualmente em Berlim, Nuno conversou com o Pensar do Estado de Minas. Na entrevista, falou do seu novo livro, da paixão por Carlos Drummond de Andrade, relembrou sua amizade com Amílcar de Castro e de seu ceticismo com o futuro do país. “A distribuição de renda no Brasil é uma pornografia. Algo que faz com que a gente não ande. Temos uma bomba relógio contra nós”.
A capa do seu novo livro mostra o CCBB da Praça da Liberdade. Na época, você estava montando uma exposição lá e presenciou a morte de um morador de rua. A partir daí você faz uma reflexão sobre a barbárie do nosso cotidiano. Me lembrei do ceticismo de “Alguma Poesia”, do Drummond, um poeta que, sei, você lê muito. Seu livro também é bem cético em relação ao país. Ou estou enganado?
Pode ser. Nunca tinha pensado nisso: da relação entre o meu livro e “Alguma poesia”. Você, falando agora, me dou conta de que os dois livros falam da praça e o livro dele também tem um tom cético.
Drummond é de fato uma coisa única, muito singular. Sua obra é mesmo inesgotável. Ele tem esse fôlego interminável: parece realmente um veio de ouro no qual você não consegue chegar ao fim nunca. Acho a obra dele muito estranha. Uma poesia muito ambiciosa.
A gente, em geral, tende um pouco pela contenção, para a modéstia num lugar, num país, onde a arte, muitas vezes sem público, acaba não fazendo muito sentido.
Esta ausência de sentido da arte, como você já chamou a atenção outras vezes, e também está no livro, está relacionada com o baixíssimo número de pessoas que têm acesso a civilização, arte, literatura, educação e cultura no Brasil. Estamos fadados a ser um país onde a arte será sempre para poucos?
É difícil saber. Não saberia te responder. Esta ausência de público dá um sentimento ambíguo para o artista: por um lado, temos muita liberdade. Podemos fazer o que quiser, já que não há pressão.
Já, por outro lado, vai ficando cada vez mais esquisito: quando você soma tudo o que fez, sua arte, tudo é muito isolado. Apesar de você sair no jornal, na mídia, você sabe que não atinge nunca muita gente. A questão toda é que o Brasil é um país muito deformado. Qualquer coisa que você diga tem uma peculiaridade que vem da distribuição da renda. Do fato de a maioria não ter acesso aos bens culturais do país.
Como o país é loucamente desigual, doentiamente desigual, tudo é diferente. Dou um exemplo: dizer um simples “bom-dia” aqui na Alemanha, onde estou morando, é diferente de dizer “bom-dia” no Brasil. É um outro dia, é um outro bom. Porque não é só a renda. É uma questão de acesso ao básico: à vida, ao direito, à calma, ao batimento cardíaco, à civilização. Tudo isto, com o passar do tempo, vai enlouquecendo a gente.
Apesar de já ter melhorado muito, eu tenho, no entanto, um sentimento de isolamento: que vem da minha classe, da minha cor, da minha escolha sexual. Já que tudo isto também entrou em questão. Acho que o principal é mesmo esta regressão universal que a gente está vivendo no Brasil. Com exceção de alguns novos grupos que têm surgido, que lutam contra o racismo, a luta feminina, pelo direito das minorias, o Brasil só tem caminhado para trás.
No livro senti um certo tom de balanço de vida. Nuno: como é chegar aos 60?
A minha expectativa era de um caminho diferente do que a gente está vivendo hoje. Não imaginava que fôssemos viver na política o que estamos vivendo hoje. E não adianta botar a culpa em ninguém, você pôr o dedo na cara de ninguém, porque não vai resolver nada.
O irracionalismo da era das fake news e da pós-verdade colocou em xeque as democracias ocidentais. No Brasil o estrago foi maior?
No Brasil é pior, sim. Eu acho que o país, antes do impeachment da Dilma, já era um lugar com problemas graves, muito sérios. E a gente se recusava a ver, especialmente a violência contra o pobre. E, como já disse, a distribuição de renda, que no Brasil é uma pornografia.
Algo que faz com que a gente não ande e não chegue a nenhum lugar. Temos uma bomba relógio contra nós. Claro, aqui na Alemanha também existe este discurso irracional. Quando cheguei, fiquei muito impressionado, por exemplo, com a força que o movimento contra a vacina tinha também por aqui.
Leia: O dia em que Gabriel García Márquez puxou a orelha dos europeus
Existe mesmo uma coisa meio neonazista aqui. E que está o tempo todo batendo à porta. Agora, no Brasil foi diferente: ter tido a maior liderança política nacional conspirando contra a vacina, boicotando a compra de vacinas é muito difícil de entender. E isso não teve em nenhum lugar do mundo. E te confesso: até hoje não entendi direito.
Você não parece otimista com nosso futuro...
Não sei. Essas coisas, assim como vieram rápido, de repente também vão. Não sei. O que eu acho é que hoje vivemos uma espécie de autofagia. Nos últimos trinta anos, fomos incapazes de ter promovido mudanças sociais mais significativas.
Acho que fomos mais conservadores do que deveríamos ter sido. Teríamos que ter realizado uma anistia bem-feita, distribuído de verdade a renda, ter resolvido as desigualdades raciais, o problema da segurança.
Esta inércia acabou implodindo o mundo político. E abriu a porta para este terror que hoje a gente vive. A naturalização com que a gente trata a violência é uma coisa para mim muito chocante. A violência foi institucionalizada.
Somos um país muito mais violento do que achávamos que fôssemos...
Exatamente. Muito mais violento, muito mais racista, muito mais agressor. Muito mais sem vergonha de ser violento. Aquilo que estava latente aconteceu.
Sabe, eu antes tinha um sentimento de que haveria uma certa possibilidade de fusão, de interação.
Agora não. Isto tudo me parece muito confuso. Quer dizer: antes tínhamos algumas tentativas de universalização que agora me parecem meio fragmentadas.
Eu me lembro de você em Belo Horizonte nos anos 1990, na turma de artistas plásticos que orbitava em torno do Amílcar de Castro. Poderia lembrar um pouco dessa época?
Olha, na verdade é um conjunto de coisas. Quando nós éramos muito meninos, eu me lembro que teve um ano que a gente fez um livro sobre o Amílcar. Nós conseguimos um patrocínio e então fizemos um livro. E íamos a BH para encontrá-lo.
Naquela época não era tão fácil fazer livro, né? Foi quando eu o conheci. Mais tarde, eu tive uma relação pessoal significativa, ao menos para mim, com ele. Quando ia até Minas, me encontrava com ele. Eu expus muito em Minas, sabe? Trabalho hoje com o Allen Roscoe, que era quem produzia as peças do Amílcar. O Allen é um pouco o herdeiro do Amílcar.
Então, eu estive com o Amílcar várias vezes. Ele foi uma pessoa muito generosa comigo e disse coisas muito bonitas sobre meus quadros, das quais me lembro sempre. Lembro que uma vez ele foi a uma exposição minha e me disse: “Eu vim para não gostar, mas gostei. Eu não vejo luta entre os elementos: vejo o amor entre eles”. Frases que eu nunca esqueci.
Lembro de uma outra exposição que fiz em BH com umas peças de areia socada. Ele batia na peça e dizia: “Esse é bom, esse é bom”, e eu com medo que ele quebrasse a peça. Ele ainda esteve em casa uma vez, lá em São Paulo.
Eu até comprei uma cachaça para ele. Não entendo nada de cachaça, e aí comprei uma daquelas cachaças caras. E, claro, ele não gostou: preferiu a mais barata, a branca. A última vez que estive com ele foi numa exposição na Gesto Gráfico, em Belo Horizonte.
Ele estava expondo e veio, então, uma repórter, meio desinformada, que me confundiu com ele. E então a gente ficou brincando, tirando sarro. Ele disse: “Eu sou o Nuno Ramos”. E eu entrei na brincadeira. Amílcar era uma pessoa muito generosa. Gostava muito daquele seu jeito muito simples.
Leia: Em 'Outono', Karl Ove Knausgård derrapa no próprio cansaço provinciano
Amílcar é uma referência para você?
Ele foi importante para mim neste sentido. Eu me senti recebido. Por ele e pela Mira Schendel. Da geração mais velha que a minha, acho que os mais importantes foram os dois. Mais do que ninguém, ele e a Mira me trataram como artistas. Foram generosos. Eu tenho uma lembrança muito carinhosa deles.
* João Pombo Barile é jornalista e redator do Suplemento Literário de Minas Gerais
Trecho
“Foi o que deu, vale pelo que não diz, conformando-se com o que não sabe, pois ninguém sabe o que faz, muito menos o que fez, e ainda menos a medida proporcional entre o possível e o realizado. Mas percebo agora que, se pronunciá-la bem rápido , ‘foi o que deu’ fica ‘fodeu’, ou, mais precisamente, um misto de ‘fuck’ com ‘fodeu’. Fooquedeu. Nem que seja a última coisa que eu diga, é exatamente o que quero dizer.”
“Fooquedeu”
De Nuno Ramos
Todavia
208 página
R$ 69,90