Livro une literatura, ciência e um jovem Darwin romântico
As escritoras Leda Cartum e Sofia Nestrovski montam um fascinante quebra-cabeça do início da trajetória do pesquisador inglês em livro
Eduardo Oliveira
05/08/2022 04:00 - Atualizado em 06/08/2022 10:08
Era uma vez um menino que adorava colecionar pedrinhas e fazer experimentos em um laboratório improvisado dentro de casa. Por causa das explosões e fumaças que saíam pela janela, as crianças da região o apelidaram de “gás”. Quando completou 16 anos, teve que obedecer ao pai, um médico renomado e de muitas posses, e cursar medicina.
Mas o garoto não tinha vocação para seguir aquela carreira porque considerava as aulas entediantes demais. Naquele tempo, os herdeiros de famílias ricas só poderiam optar, então, por outra coisa: ser clérigo. Sempre foi muito curioso pelas coisas que via e participava de clubes de estudos, até que um professor o indicou para viajar em um navio com nome de cachorro. Aquela aventura mudaria para sempre a vida do jovem Charles Darwin.
A trajetória de um dos pesquisadores mais importantes da história da ciência foi contada na primeira temporada do podcast “Vinte mil léguas”, realizado pela revista “Quatro Cinco Um”, em parceria com a livraria Megafauna e com o apoio do Instituto Serrapilheira.
O nome é uma homenagem ao livro “Vinte mil léguas submarinas”, do escritor francês Julio Verne. Durante os programas, que estão nos principais tocadores de áudio, as escritoras e roteiristas Leda Cartum, mestre em literatura francesa, e Sofia Nestrovski, mestre em teoria literária, têm o objetivo de ler os cientistas como escritores e fazem um convite aos ouvintes: abrir novos livros depois de ouvir os episódios.
Leda e Sofia, que ministram um curso on-line de introdução a Simone Weil, denominado ‘Como sumir’, também publicaram o livro: “As vinte mil léguas de Charles Darwin – o caminho até a origem das espécies”, pela editora Fósforo. As 320 páginas dão continuidade ao trabalho realizado durante uma fase de muitas restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus, quando as escritoras e roteiristas precisaram gravar o podcast de ciências e livros cada uma de sua casa.
O livro é uma adaptação dos roteiros de áudio para o texto narrativo e traz mais informações, casos e personagens que ficaram de fora dos programas, mas que enriquecem e ajudam a entender todo o contexto vivido por Darwin na Inglaterra vitoriana, e que contribuiu para a elaboração da teoria da seleção natural.
As escritoras ressaltam que Darwin “anotava tudo aquilo que via e, a partir do que via, o que pensava e sentia. Seus textos eram compostos com sutileza, para que ele conseguisse mostrar com a maior precisão possível aquilo que tinha diante de si”.
Ele gostava de autores imaginativos, como um de seus mentores intelectuais, Charles Lyell, ainda citado entre os nomes mais importantes da geologia. Além disso, amava poesia, estava sempre com uma edição de “Paraíso perdido”, de John Milton. Com o passar dos anos, se tornou um leitor assíduo de romances: “têm sido um alívio maravilhoso e um grande prazer para mim, e sempre abençoo todos os escritores desse gênero”, escreveu. Por usar uma linguagem acessível, Darwin conseguiu ir além da classe científica e alcançar pessoas de várias camadas sociais.
O século 19 foi um período de expansão imperial inglesa, como destacam as autoras. Os navegantes não exploravam o mundo apenas para descobrir coisas novas, havia um objetivo político. Nesse cenário, o jovem Charles Darwin embarcou para fazer uma viagem que, no fim das contas, duraria quatro anos e nove meses.
Por ser um aristocrata, recebeu a missão de acompanhar o capitão Robert FitzRoy, afinal, “era proibido, para um homem desse cargo, conviver com os seus subordinados”. A tripulação deveria aprimorar a cartografia da Inglaterra para que os navios do país pudessem ter uma navegação mais padronizada. Os viajantes queriam mapear as costas continentais e saber a localização dos portos estrangeiros para dominar economicamente os territórios da América do Sul.
O problema é que Darwin detestava o mar e não tinha nenhuma vocação para navegar. Ele passava boa parte do tempo dentro da cabine, enjoado. Mas, ao contrário de muitos naturalistas daquele período, considerava a prática tão importante quanto a teoria. Levou 245 livros e, durante a viagem, começou a recolher pistas, “como um detetive com uma lupa na mão”.
Passou por Cabo Verde, Ilhas Malvinas, Ilhas Canárias, Ilhas Seychelles, Cabo da Boa Esperança, Noronha, Bahia, Minas, Rio, Buenos Aires, Terra do Fogo, Patagônia, Valparaíso, Ilha de Chiloé, Galápagos, Taiti, Havaí, Nova Zelândia, Nova Guiné, Nova Caledônia, Austrália, Tasmânia, Madagascar e Ilhas Cocos. Nestes lugares, coletou amostras de animais, plantas, pedras e ganhou apelidos como “catador de mosca”.
Carnaval na Bahia
Presenciou um carnaval na Bahia. Sobre isso, escreveu: “ estávamos decididos a enfrentar seus perigos sem medo. Os perigos consistem em ser bombardeado por bolas de cera cheias de água, ou ficar encharcado por grandes esguichos. Provou-se bastante difícil manter a dignidade ao caminhar pelas ruas. valente aquele que caminha sem apertar o passo quando baldes de água estão prontos para serem derramados sobre ele de todos os lados”.
Darwin ficou maravilhado com a natureza do Brasil, mas a escravidão o deixou bastante incomodado. O tema, inclusive, foi o motivo de uma séria discussão com o comandante Robert FitzRoy, talvez a única durante toda a viagem. A defesa do abolicionismo estava no sangue do jovem naturalista, neto de Josiah Wedgwood, que também é destacado pelas autoras.
Mas e o caminho até a teoria da origem das espécies? O livro explica como um terremoto, fósseis de animais gigantes e bicos de pássaros contribuíram para que Charles Darwin começasse a se fazer várias perguntas: por que a vida é tão curta? As ostras têm livre arbítrio? As plantas têm uma ideia de causa e efeito? As vespas raciocinam? Por que os homens têm mamilos?
Enquanto não encontrava respostas, enchia seus cadernos de anotações e recolhia amostras que, mais tarde, lhe ajudariam a desenvolver um longo raciocínio. Leda e Sofia elaboram, também, minicapítulos com histórias que aconteceram paralelamente a isso, como: “a relação entre os fósseis e o umbigo de Adão”, “Dois poetas românticos” e “um menino que tocava violino”.
Após a viagem, quando retornou à Inglaterra, Darwin “criou seu próprio mundo”. Aquele bom cidadão inglês, polido, discreto e pacato, se afastou da vida movimentada de Londres e levou o início de uma ideia transgressora e revolucionária para uma casa na cidadezinha de Downe, que chamou de Down House.
O lugar parecia parado no tempo, congelado em uma época anterior à Revolução Industrial. Havia um jardim, que era seu maior laboratório, onde seus filhos (ele teve 10) o ajudavam a fazer experimentos. Sim, Darwin se casou e passou a viver com a família em uma região que tinha cerca de 500 habitantes, muito longe das tensões e medos da “superpopulação”, hipótese sombria levantada à época pelo clérigo Thomas Malthus.
Apesar disso, manteve contato com outros cientistas, com quem chegou a trocar mais de 14 mil cartas. Foi uma vida reclusa, mas com tarefas e descobertas que não acabavam mais. Naquele lugar, ele passaria 20 anos amadurecendo e elaborando o que estaria, enfim, no livro “A origem das espécies”. Darwin trabalhava sem pressa, queria conseguir mais evidências, até que recebeu uma carta de um jovem chamado Alfred Russel Wallace.
O conteúdo da correspondência fez o naturalista “suar frio” e perceber que precisava correr contra o tempo. Até aquele instante, suas pesquisas estavam concentradas em vários cadernos de anotações, mas, a partir da notícia que recebeu, precisou fazer um resumo e publicar o que já havia conseguido.
Racismo científico, perda de biodiversidade, surgimento de pandemias e o medo do fim do mundo. Todos esses assuntos já cercavam Darwin de alguma forma.
Por serem temas tão atuais, Leda Cartum e Sofia Nestrovski conversaram com o professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Paulo Pimenta, tradutor da edição de “A origem das espécies” publicada pela editora Ubu, e Maria Isabel Landim, também professora e curadora do Museu de Zoologia da USP.
As duas entrevistas estão publicadas na parte final do livro como uma forma de complemento à pesquisa. As autoras pedem que o leitor/ouvinte faça uma pausa, para que, assim, consiga dar um passo à frente voltando no tempo. E afirmam: ler a ciência como quem lê poesia é uma forma de tomar partido do mundo.
“As vinte mil léguas de Charles Darwin: o caminho até a origem das espécies”
.De Leda Cartum e Sofia Nestrovski
.Editora Fósforo
.320 páginas
.R$ 69,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)
Entrevistas
Sofia Nestrovski/Escritora
“O período de Darwin no Brasil foi marcado por sentimentos antagônicos”
Por que vocês optaram por começar com a história de Charles Darwin? A pandemia do novo coronavírus influenciou nesta decisão?
O nome do Darwin foi uma sugestão da Fernanda Diamant, que foi quem primeiro teve a ideia de fazer um podcast de ciências pela revista Quatro cinco um. Isso foi no final de 2018, muito antes da gente imaginar o quanto um vírus iria influenciar nossas vidas.
Mas é claro que, já em 2020, quando eu e a Leda estávamos trabalhando mais intensamente na criação dos episódios, a pandemia virou um tema incontornável.
Falar de Darwin foi uma maneira de jogar uma outra luz sobre as discussões que estavam acontecendo naquele momento – quisemos fazer um recuo, para poder abordar aquilo que estávamos vivendo com menos imediatismo, e alguma profundidade.
Darwin esteve no Brasil durante sua viagem. Como este período o ajudou para a elaboração da teoria da seleção natural? Por quê?
O período de Darwin no Brasil foi marcado por sentimentos antagônicos: por um lado, o maravilhamento diante da riqueza de fauna e flora, por outro, o horror diante da escravidão. Darwin saiu daqui dizendo que desejava nunca mais ter que voltar a uma terra de senhores de escravos.
Falamos disso no livro, e é esse o assunto do último episódio da primeira temporada do “Vinte mil léguas”, o podcast – trata-se de uma entrevista com o sociólogo Matheus Gato de Jesus, que discute justamente a escravidão e o racismo científico no Brasil do século 19. Porém, o Brasil foi um dos lugares onde Darwin passou mais tempo em sua viagem – viveu em Botafogo por alguns meses e pôde conhecer o carnaval da Bahia.
Aqui, ele descobriu fósseis da extinta Megafauna do Pleistoceno (animais como o tatu gigante, que viveram há mais de dez mil anos), e isso foi uma primeira chave para ele começar a entender que as espécies se transformam no tempo.
No livro vocês mostram a importância de mulheres como Mary Ann Evans e Julia Wedgwood. Poderia falar um pouco sobre elas?
Mary Ann Evans (também conhecida como George Eliot, seu nome de romancista) e Julia Wedgwood foram duas intelectuais públicas da Inglaterra vitoriana. Eram exceções em um meio dominado por homens. No entanto, o trabalho de ambas era levado a sério e as duas foram muito conhecidas em vida.
As duas leram “A origem das espécies” no calor do momento, e cada uma respondeu ao livro à sua maneira. Julia Wedgwood, que era sobrinha de Darwin, publicou uma crítica em uma revista, dizendo que o livro tinha um problema grave: embora explicasse a origem das espécies, não resolvia o problema da origem da vida, muito menos apontava qual seria o sentido da vida. São questões que até hoje a ciência não tem como responder – talvez não seja o papel da ciência respondê-las.
Já George Eliot/Mary Anne Evans trouxe para dentro da literatura de ficção as descobertas e a metodologia da ciência de sua época, e escreveu uma obra-prima, que acaba de ser relançada no Brasil, chamada Middlemarch (editora Pinard, tradução de Leonardo Fróes).
O livro tem minicapítulos e várias páginas que destacam histórias que se relacionam ao assunto principal. Estes trechos podem servir como um quebra-cabeça a ser montado pelo leitor?
Todo livro é um quebra-cabeça a ser montado pelo leitor. No nosso caso, talvez isso seja um pouco mais literal, porque de fato há seções para serem lidas em qualquer ordem, não necessariamente a linear.
Quisemos fazer isso porque, no formato do podcast, quem define a ordem e o ritmo das coisas é a nossa voz – no livro, o leitor pode pausar a leitura quando desejar, voltar para um trecho anterior e passear pelas páginas como bem entender. O projeto gráfico da Flávia Castanheira beneficia isso.
Com todo o material, vocês mostram que arte e ciência caminham juntas. O podcast e o livro também são uma tentativa de desmistificar os dois temas? Por quê?
Falar de ciência e de literatura são maneiras de falar sobre o mundo – mas um mundo que é um pouco menos horrível do que o que temos visto nas notícias. Ou, pelo menos, um mundo no qual os horrores são filtrados pela inteligência e pela imaginação.
Entrar em contato com a vida e o pensamento de alguém como Darwin, e olhar para tantas pessoas brilhantes e criativas que existiram à volta dele, é ter acesso a um legado da cultura humana – um legado que é nosso, por direito.
Não podemos nos esquecer disso, não podemos pensar que os maiores momentos da inteligência humana não nos pertencem. Uma teoria como a de Darwin faz parte, sim, da nossa cultura – a gente pode se apropriar desse conhecimento com alegria.
Leda Cartum/Escritora
“Fomos encontrando histórias humanas nas teorias científicas”
Quais as principais mudanças que o ouvinte do podcast “Vinte mil léguas” vai encontrar no livro? Como foi a adaptação dos roteiros para o texto final?
O podcast “Vinte mil léguas” tem como uma das suas principais marcas a trilha sonora, composta por Fred Ferreira, que tem instrumentos como a viola da gamba. A trilha, nos episódios, é um elemento narrativo. No livro, obviamente, não há como manter a música.
A ambientação do texto é de outra natureza: o projeto gráfico de Flávia Castanheira organizou os capítulos alternando o texto central com boxes contendo curiosidades, informações extras e ilustrações da época de Darwin, que estão espalhadas por todo o livro.
Além disso, nos episódios em áudio, como o ritmo é ditado pela nossa voz, entendemos que citações muito longas ficariam cansativas para o ouvinte. No livro, pudemos incluir passagens maiores, já que o leitor pode lê-las no seu próprio tempo.
E muitas das descobertas feitas durante a pesquisa que não couberam na temporada do podcast, de personagens como a paleontóloga Mary Anning ou o biólogo T. H. Huxley (conhecido como "buldogue do Darwin"), encontraram espaço no livro.
Levando em conta o atual cenário do Brasil, a ideia de ler os cientistas como escritores e ler textos científicos como obras literárias pode contribuir para a mudança de perspectiva sobre a ciência? Por quê?
Nós nos aproximamos da ciência a partir de fora, do ponto de vista da literatura. Fomos encontrando histórias humanas dentro das teorias científicas.
A história da ciência é parte da história da humanidade: é também cheia de dúvidas, de contradições, de pequenos e grandes erros, frustrações e desejos. O que nos interessa é perceber e mostrar que as áreas de conhecimento não são tão diferentes entre si – o cientista olha para o mundo com uma curiosidade que muitas vezes pode ser parecida com a do escritor.
Olhar para as teorias científicas através das pessoas e das suas histórias pode ser uma maneira de se sentir mais próximo delas. Durante a primeira temporada do podcast, nós ficamos sabendo que um criacionista escutou os episódios sobre Darwin – e gostou!
Vocês se debruçaram em uma história com várias camadas, muitas informações, personagens que levavam a outros. Como foi essa pesquisa e o que mais lhe chamou a atenção?
É uma pesquisa infinita – quanto mais você se embrenha nas histórias e nos livros, mais surgem outras histórias e livros para serem lidos. Darwin é um cientista que deixou quase tudo registrado: temos acesso fácil na internet a toda a sua correspondência, com mais de 15 mil cartas, e a todos os seus cadernos de anotações.
Para realizar essa pesquisa, com tantas informações disponíveis, organizamos as leituras fazendo muitos fichamentos e conversando o tempo todo, contando uma para a outra anedotas que encontramos no meio do caminho.
E, talvez por nós duas termos formação em literatura, o que mais nos chama a atenção muitas vezes não são as grandes conclusões, mas as pequenas histórias, os detalhes (como uma receita de arroz encontrada no meio de um diário de Darwin), as pessoas que foram esquecidas e que descobrimos em uma leitura.
No podcast e no livro vocês destacaram o pedido do mestre budista Nagasena ao rei Milinda: “Aguce o seu ouvido”. Por que é necessário aguçar o ouvido para a ciência atualmente?
Na história que contamos, quando o mestre Nagasena pediu que o rei aguçasse o ouvido, ele tinha acabado de entregar a ele um livro. E quando o rei, aos poucos, aguçou o ouvido – prestou atenção, uma atenção verdadeira –, ele começou a escutar não apenas os barulhos ao seu redor, mas também os ruídos do passado: a voz daquele que, muito tempo antes, tinha escrito o livro que estava em suas mãos.
Aguçar os ouvidos, nesse sentido, é escutar mais do que a sobreposição de sons do tempo presente, que muitas vezes pode ensurdecer; é buscar ouvir também os sons mais sutis, as camadas que se escondem embaixo de nós. Em qualquer momento que seja, é bom lembrar que o presente é feito de muitos outros tempos, e que as coisas existem da maneira que as conhecemos porque, há séculos e até milênios, pessoas trabalharam para isso.
Ao final da primeira temporada e, com a publicação do livro, como você definiria Charles Darwin? Por quê?
Fazer essa pesquisa foi entender que Charles Darwin, como nós o conhecemos hoje, não é apenas Charles Darwin. O nome de Darwin reúne dentro de si uma rede de outros nomes, de influências, cruzamentos: poetas românticos, geólogos, paleontólogos, romancistas, economistas, capitães, criadores de pombos…
Quando falamos o nome de Darwin, estamos convocando também muitos outros nomes, e eles nos interessam tanto quanto o próprio. A teoria da seleção natural é uma ideia brilhante também porque ela consegue sintetizar muitas das vontades e pensamentos de uma época – e tudo isso segue ecoando no nosso tempo.