Jornal Estado de Minas

PENSAR

'O infinito em um junco' traz história da escrita

“Afinal de contas, o que é uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire sua forma definitiva quando a língua acaricia o palato, os dentes ou os lábios. Parece impossível salvar algo tão frágil. Mas a humanidade desafiou a soberania absoluta da destruição ao inventar a escrita e os livros. Graças a esses achados, nasceu um espaço imenso de encontro com os outros e houve um fantástico incremento nas expectativas de vida das ideias. De uma forma misteriosa e espontânea, o amor aos livros forjou uma corrente invisível de gente – homens e mulheres – que ao longo do tempo, sem se conhecer, salvou o tesouro dos melhores relatos, sonhos e pensamentos.”





Mais do que um ensaio sobre a história do livro, “O infinito em um junco: A invenção dos livros no mundo antigo” (Intrínseca), da espanhola Irene Vallejo, é um tributo ao livre-pensamento e à viagem das ideias, que há milênios reafirmam, sejam marcadas em páginas de juncos, couros, panos, de livros impressos ou, mais recentemente, nos livros digitais, que não estamos dispostos a perder passos na travessia de nossa civilização neste planeta.
 
Fenômeno editorial, traduzido para mais de 30 idiomas, a autora une as vozes da Antiguidade às vozes contemporâneas para desvendar o percurso desse objeto feito para a leitura a partir da invenção do alfabeto: um sistema de 22 signos, elaborado pelos fenícios das cidades da costa libanesa de Biblos, Tiro, Sídon e Beirute, por volta de 1250 a.C., evento considerado mais disruptivo do que a invenção da internet. Em referência a Biblos, os gregos chamaram o livro biblíon.

O uso da escrita se expandiu a passos lentos. A prosa nasceu por volta do século 6 a.C., quando os escritores que contavam as suas histórias para deixar a “névoa do anonimato” e “vencer a morte” passaram a desenhar letras em tabuletas ou papiros, em substituição à memória oral.




 
Se com Sócrates os textos escritos ainda não eram habituais; já com Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), o hábito de ler começou a ser visto sem estranheza. O alfabeto construiu, nas palavras da autora, uma “memória comum, expandida e ao alcance de todos”. Graças às letras, diz Irene Vallejo, fazemos parte do maior e mais inteligente cérebro coletivo que já existiu. 

É nas palavras de Emilio Lledó, filósofo espanhol, que Irene Vallejo registra a epígrafe da obra: “O livro é, acima de tudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humanas venceram a condição efêmera, fluida, que levava a experiência do viver para o vazio do esquecimento”.
 
Diz Jorge Luis Borges que o mais assombroso dos inventos humanos, o livro é uma extensão da memória e da imaginação. O infinito é o limite, razão pela qual Antonio Basanta, também citado pela autora, sintetiza: “Ler é sempre uma translação, uma viagem, um ir embora para se encontrar. Ler, mesmo sendo normalmente um ato sedentário, leva-nos de volta à nossa condição de nômades”.




 
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A produção de papiro

O papiro foi pela primeira vez produzido no Antigo Egito, três mil anos antes de Cristo, a partir do junco, que deita raízes às margens do Rio Nilo. Das fibras flexíveis foram fabricadas as folhas, à época avançada tecnologia que substituiu a escrita sobre a pedra, a argila, a madeira ou o metal.
 
“O primeiro livro da história nasceu quando a palavra, apenas escrita no ar, encontrou abrigo na medula de uma planta aquática.
 
E, comparado aos seus antepassados inertes e rígidos, o livro já nasceu como um objeto flexível, leve, apto para a viagem e a aventura”, afirma a autora. E são rolos de papiro, carregando longos textos manuscritos com cálamo e tinta, que chegam à nascente Biblioteca de Alexandria e ao seu museu anexo, porta de entrada na história, utilizada por Irene Vallejo para narrar a epopeia da escrita e do livro.

Depois da revolução representada pelo alfabeto, os sucessores de Alexandre, o Grande (356 a.C. -323 a.C.) deram início ao ambicioso projeto de ganhar acesso e acumular todo o conhecimento universal.
 
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A Grande Biblioteca e Museu de Alexandria foi projeto dos Ptolomeus, herdeiros no Egito do mais promissor quinhão do império fracionado.




 
Irene Vallejo descreve a “extraordinária aventura” iniciada com Ptolomeu I (366 a.C. - 283 a.C.), que decidiu assentar a corte em Alexandria, ainda uma pequena cidade, para ali atraindo cientistas e escritores da época.
 
A autora levanta a hipótese de que a ideia de uma biblioteca universal possa ter partido de Alexandre: reunir todos os livros que existem é uma forma simbólica, mental e pacífica de possuir o mundo.
 
“A paixão do colecionador de livro é parecida com a do viajante. Toda biblioteca é uma viagem; todo livro é um passaporte sem data de validade.
 
Alexandre percorreu as rotas da África e da Ásia sem se separar do seu exemplar da “Ilíada”, ao qual recorria em busca de conselhos, segundo dizem os historiadores, e para alimentar o seu desejo de transcendência.




 
A leitura, como uma bússola, lhe abria os caminhos do desconhecido”, afirma Irene Vallejo. 

Loucura apaixonada

Com Ptolomeu I, a fome de livros em Alexandria tornou-se “um surto de loucura apaixonada”. O faraó frequentemente ia ter com Demétrio de Faleros (350 a.C. - 283 a.C.), encarregado de administrar a biblioteca, repassando os rolos de sua coleção, indagando-lhe quantos livros já possuía.
 
“Há mais de vinte dezenas de milhares, ó rei; e estou me esforçando para completar em breve o que falta para 500 mil.” Ptolomeu financiava buscas mundo afora, enviava mensageiros, verdadeiros caçadores de livros, de manuscritos perdidos, histórias desconhecidas.
 
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“Ao seguir o rastro de todos os livros como se fossem peças de um tesouro perdido, esses viajantes estavam construindo, sem saber, os alicerces do nosso mundo”, afirma a autora. 





A dinastia Ptolomeu abraçou o projeto de reunir os saberes de toda a humanidade. A Grande Biblioteca desenvolveu sistemas de organização da informação para orientar o leitor em meio aos incontáveis rolos. Ao lado desta, o museu atraiu cientistas e inventores da época dedicados à pesquisa.
 
Ptolomeu II selava carta a todos os países da Terra, requerendo que enviassem para a sua coleção tudo: as obras dos poetas e escritores em prosa, de oradores, filósofos, médicos, historiadores, adivinhos.
 
O que não podiam comprar, os Ptolomeus confiscavam. Mas também dissimulavam: ansiando pelas versões oficiais das peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípides mantidas no arquivo de Atenas desde que estrearam nos festivais de teatro, os embaixadores de Ptolomeu III desembolsavam, segundo a autora, vultosas quantias com a promessa de que iriam devolvê-las.




 
Mas as preciosidades jamais retornavam. Já Marco Antônio, prestes a governar o mundo e disposto a deslumbrar Cleópatra, pôs aos pés dela 200 mil volumes para a Grande Biblioteca. “Em Alexandria, os livros eram combustível para as paixões”, afirma Irene Vallejo. 

Ao mesmo tempo, os reis colecionadores desenvolveram o ato da tradução, dando início, nas palavras da autora, a uma conversa “polifônica infinita”, construindo pontes entre povos, amalgamando ideias.
 
“A transferência de línguas é filha de um conceito que, em grande medida, Alexandre inventou e ainda hoje chamamos por um nome grego: o cosmopolitismo. A melhor parte do sonho megalomaníaco de Alexandre – sua realização, como em qualquer utopia que se preze, claudicou de maneira evidente – consistia em gerar uma união duradoura de todos os povos da oikoumene, criando uma nova forma política capaz de garantir paz, cultura e leis a todos os seres humanos”, observa Irene Vallejo. Ali se iniciara o processo de globalização. 




 
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Representada por seu farol e museu, Alexandria é, para a humanidade, símbolo da viagem do conhecimento que extrapola o deslocamento físico e ganha, nas tintas dos livros, todos os caminhos do mundo.

“Na cidade-crisol, encontramos as bases de uma Europa que, com suas luzes e suas sombras, suas tensões e seus desvarios, e até com sua periódica inclinação à barbárie, nunca perdeu a sede de conhecimento nem o impulso de explorar”, afirma a autora.
 
Durante os melhores tempos da Biblioteca de Alexandria, a capital grega do delta foi um território compartilhado, de línguas e tradições, em que o conhecimento fervilha e as pessoas, integrantes de uma comunidade sem fronteiras, tinham, como ensinaram os filósofos estoicos, obrigação de respeitar a humanidade em qualquer circunstância.




 
“Nessas aspirações, descobrimos um precedente do grande sonho europeu de uma cidadania universal. A escrita, o livro e sua incorporação às bibliotecas foram as tecnologias que possibilitaram essa utopia”, considera Irene Vallejo. 

Contribuição feminina

A primeira pessoa do mundo a assinar um texto com o próprio nome foi uma mulher: 1500 anos antes de Homero, Enheduana, poeta e sacerdotisa – filha do rei Sargão I da Acádia, que unificou num império a Mesopotâmia central e meridional –, escreveu um conjunto de hinos que ainda ressoam nos Salmos da “Bíblia”.
 
Ao decifrarem os fragmentos dos seus versos, no século 20, impressionados com a escrita brilhante, pesquisadoras apelidaram Enheduana de “a Shakespeare da literatura suméria”. Lembrando que esse início promissor não tenha sido padrão na Antiguidade, Irene Vallejo assinala como já na “Odisseia” o adolescente Telêmaco manda a mãe se calar, conferindo apenas ao homem a fala no espaço público.




 
E se a civilização grega inaugura a ideia da democracia, o faz restringindo ao homem livre e proprietário de terras o acesso à ágora do debate. “Atenas, a capital dos experimentos políticos e da ousadia intelectual, foi talvez a cidade grega mais repressiva em relação às mulheres”, assinala a autora. Foi uma época de “clamorosa” ausência de mulheres criadoras, diz ela.
 
As mulheres que escreviam eram discriminadas e alvo de zombaria pública. Mas elas estavam lá, na pessoa de Cleobulina, filha do rei de Rodes; no século 6 a.C.; em Safo, que não era filha de reis, mas de uma família aristocrática: afronta a ordem autoritária vigente, evocando em sua poesia o desejo e o amor. 

Nesta obra que reconstitui a trajetória da escrita, do alfabeto e do livro – a memória universal e o melhor antídoto ao esquecimento e à destruição das conquistas civilizacionais –, Irene Vallejo também busca, num minucioso trabalho de arqueologia, os vestígios e indicativos do papel intelectual das mulheres na hostil Antiguidade.




 
E encontra o tesouro desta contribuição em Aspásia, a brilhante segunda esposa de Péricles, que escrevia os discursos dele e mantinha interlocução com Sócrates. 

Vallejo recuperou a memória daquelas que chama de “tecelãs da história”, pioneiras, que chegam à contemporaneidade em fragmentos, como a filósofa Hipácia,  filha de Theon, diretor da Biblioteca de Alexandria, que viveu entre os anos de 355 e 415 d.C., tornando-se chefe da escola platônica em Alexandria, onde lecionou filosofia e astronomia, além de ter escrito diversos textos sobre geometria e álgebra.
 
A ela são creditadas as invenções de um hidrômetro aprimorado, do astrolábio (e de um instrumento para destilar água). A autora presta homenagem a grandes escritoras do século 20: Anna Ajmatova, Karen Blixen, Clarice Lispector, e também dedica especial passagem às bibliotecárias anônimas do Kentucky, que a cavalo, a serviço do estado, percorrem vales e aldeias no contexto do New Deal.
 
Carregavam livros nos alforjes para estimular a leitura, combater o analfabetismo e driblar o desemprego. 

O futuro dos livros

Frequentemente indagada sobre o que será do futuro dos livros, diante de previsões apocalípticas em torno das novas plataformas e tecnologias que levam a humanidade a passar a maior parte do seu tempo diante de uma tela iluminada, a autora faz uma longa digressão sobre como práticas tão antigas que nos foram contadas pelos livros seguem atuais.




 
Foi assim que, em 21 de julho de 365 a.C., dia em que nascia Alexandre, na Macedônia, o templo de Ártemis, em Éfeso – cidade-Estado na Anatólia, Ásia Menor, atual Turquia –, que levara 120 anos para ser construído, ardeu em chamas pelo desejo de um piromaníaco de gravar a sua identidade na posteridade.
 
Heróstrato, assim, entrou para a história, também como o responsável por transformar em cinzas o rolo de papiro que Heráclito ofertara à deusa, exemplar de sua obra “Sobre a natureza”.
 
Embora carbonizada a obra de Heráclito, persistem as ideias desse homem, que inaugura a “literatura difícil” – em que o leitor precisa se esforçar para se apropriar do significado das frases.




 
Em tensão permanente, disse ele, a chave para a compreensão da realidade está na mudança: nada permanece, tudo flui, e, nesse mundo em mutação, o mesmo homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio. 

A paixão pela escrita, pela literatura, pelo conhecimento registrados em diferentes formatos de livros convive, na história por estes revelada, com pulsão à destruição. Ao conquistar Persépolis, Alexandre incendiou a joia do Império Aquemênida (550 a.C. - 330 a.C.), que revolucionou os campos da arquitetura e da tecnologia para o planejamento urbano, absorvendo a influência cultural e tecnológica de 30 nações que o compuseram.
 
Como a capital persa, também se transformou em cinzas o livro sagrado do zoroastrismo, entre outras preciosidades de um reino multicultural e amante das letras. Em 213 a.C., enquanto gregos e egípcios caçavam mundo afora a totalidade dos livros para a Grande Biblioteca de Alexandria, o imperador chinês Shi Huangdi mandava que todos os volumes de seu reino fossem queimados: imaginou, assim, que a história começasse por ele.




 
Três foram os grandes incêndios que consumiram a Biblioteca de Alexandria, mas, muito mais perto de nós, ainda ali, no século 20, as fogueiras nazistas tentavam controlar a disseminação das ideias; sob bombardeio intenso, duas guerras mundiais aniquilaram um sem-número de bibliotecas; a revolução cultural chinesa promoveu expurgos de toda ordem; assim como o totalitarismo soviético, as ditaduras na Europa e na América Latina – principalmente a do Brasil – atacaram livros e pensadores.
 
E ainda mais recentemente, o nosso século 21 despertou sob o saque, consentido pelas tropas norte-americanas, de museus e bibliotecas no Iraque, onde a escrita caligrafou o mundo pela primeira vez. 

Apesar dos lapsos civilizatórios de aversão à história, ao conhecimento e ao livre-pensar, as melhores ideias jamais projetadas pela espécie humana sobreviveram graças aos livros e aos seus leitores, sustenta Irene Vallejo.
 
Sem estes, talvez não saberíamos da experiência grega na fundação do que se chama de “democracia”; os métodos hipocráticos para o primeiro código deontológico da história que eticamente – embora nem sempre ocorra – deva comprometer médicos de todo o mundo; de Aristóteles, que, como bem lembra a autora, fundou uma das primeiras universidades e dizia aos alunos que a diferença entre o sábio e o ignorante é a mesma que entre o vivo e o morto; de Eratóstenes (276 a.C. - 194 a.C.), que calculou a circunferência da Terra com apenas um pedaço de pau e um campelo; ou dos códigos legais deixados pelos romanos aos cidadãos de seu vasto império.




 
Sem os livros, desmemoriados estaríamos, sem identidade, em permanente e imobilizada busca pela chama perdida. 

“O infinito em um junco: A invenção dos livros no mundo antigo” é um magistral ensaio sobre o pensamento, a escrita e o livro, em que Irene Vallejo deixa o tributo e a fé na travessia da humanidade sobre esses fundamentos. Há tropeços, sim, mas também muita resiliência para se aprumar e defender as conquistas civilizatórias. Nas palavras dela:
 
“Durante a Antiguidade greco-romana, nasceu uma comunidade permanente na Europa; uma chama que, por mais que encolha, nunca é apagada por completo, uma minoria até hoje inextinguível. Desde então, ao longo do tempo, leitores anônimos conseguiram proteger, por paixão, um frágil legado de palavras. Alexandria foi o lugar onde aprendemos a preservar os livros, deixando-os a salvo das traças, da oxidação, do mofo e dos bárbaros com fósforos na mão”. Por tudo isso, profetiza a autora, os livros seguirão resistentes e bem-sucedidos maratonistas contra o tempo. 
 
(foto: Editora Intrínseca/Reprodução)
 
“O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo”
•  Irene Vallejo
•  Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht
•  496 páginas 
•  Editora Intrínseca
•  R$ 89,90. E-book: R$ 62,90

ENTREVISTA
Irene Vallejo/Escritora

“Tentei unir o prazer da leitura 
com a busca pelo conhecimento”


Quando ocorreu reconstruir as origens da escrita e do alfabeto em um ensaio original sobre a história do livro?
 
Os livros encheram minha casa antes que eu chegasse ao mundo. Quando eu nasci, eles já estavam lá, multiplicando-se, felizmente ocupando todos os cantos, ameaçando expulsar a minha família, assim tomando posse exclusiva da casa.
 
Meus pais eram grandes leitores e, ainda bebê, colocaram em minhas mãos esses estranhos objetos de papel. Deram-me livros de papelão para morder, chupar, cheirar e aprender a virar a página.
 
Tive sorte. Desde o primeiro momento me ensinaram que, além das necessidades vitais – comer, dormir, abrigar-se do frio – há histórias, jogos verbais, música, beleza. O avesso do cotidiano, a poética do espaço.




 
Durante meu tempo na universidade e depois, graças a uma bolsa de pesquisa, dediquei anos estudando a origem dos livros e o surgimento da leitura no mundo antigo. Durante uma década, foi o tema central de meus estudos e publicações.
 
No entanto, escrevi “O infinito em um junco” como um projeto muito pessoal, num momento particularmente difícil da minha vida, pensando que poderia ser o meu último livro. Senti que poderia se tratar de uma despedida, e por isso imaginei esta viagem com muita liberdade e com espírito aventureiro.
 
Resolvi entrelaçar as minhas duas facetas, como pesquisadora e ficcionista, em um ensaio livre e literário, sem estar presa a um formato acadêmico, para ser lido com a emoção de um romance. Uma história ousada e extravagante sobre duas paixões íntimas: o amor pelos clássicos greco-latinos e pelos livros. Minha intenção foi unir o prazer da leitura com a busca pelo conhecimento.




 
É um experimento literário que entrelaça os dados com as vidas, as evocações de outros tempos, as digressões literárias e cinematográficas, a reflexão, o humor, as associações com o presente, as crônicas de viagem, o suspense e o assombro diante da descoberta. Procurei reivindicar o entusiasmo e a paixão que as histórias sempre despertaram em mim.

A sua obra traz epígrafes de autores como Mia Couto, Siri Hustvedt, Marilynne Robinson, Emilio Lledó e Antonio Basanta, que testemunham a experiência com o livro e a leitura. E para a senhora, o que o livro representa?
 
Desde o seu primeiro balbucio, o livro desafiou o poder e a soberania absoluta da destruição. Tudo seria devorado pelo esquecimento, mais cedo ou mais tarde, se não opuséssemos os diques a essa maré voraz. Talvez as barragens mais resistentes tenham sido os frágeis livros.
 
Sem eles, seríamos órfãos das palavras que nos definem, da amplitude do legado que recebemos. Nos livros, as nossas melhores ideias, as memórias do nosso passado e as impressões digitais e vestígios de beleza viajaram no espaço e no tempo: são, talvez, o nosso patrimônio mais valioso. Não pretendo idealizar os livros.




 
Sabemos que podem ser um veículo para ideias nocivas, mentiras e mensagens de ódio. Como todos os instrumentos humanos, eles podem ser usados para os melhores e os piores propósitos.
 
Nossa história foi e é tecida entre a civilização e a barbárie, as luzes e as sombras, as descobertas e a violência, e devemos ser capazes de nos mirar ao espelho sem esconder ne- nhuma dessas faces.
 
A história só pode nos ajudar se a encararmos como realmente foi, ou o mais próximo do que tenha sido, com as suas luzes e as suas trevas. Para as sociedades como um todo, o esquecimento é uma tragédia. Pode livrar algumas pessoas de más lembranças.
 
Se esquecermos a história, estaremos à mercê daqueles que a manipulam. Distorcer a história é ainda pior do que esquecê-la. O que é perigoso são as “meias memórias” utilizadas por alguns líderes para alimentar o ressentimento e os medos.




 
É importante recorrer ao legado das coisas mais valiosas do passado, com espírito crítico, e tentar fazer com que as melhores ideias iluminem os debates do nosso tempo.
 
É essa a realização alcançada pelos livros, na medida em que constituem uma polifonia: se contradizem, se questionam, se interpelam, se corrigem, entrelaçam-se a partir de múltiplas perspectivas, dando-nos uma visão muito mais ampla e complexa da realidade.
 
Uma biblioteca pública constrói a ampla polifonia, acolhendo o conjunto e a cada uma das vozes. 
 
Destacaria algum momento específico na produção deste livro que tenha sido mais desafiador, que tenha exigido mais de si para que prosseguisse com o trabalho?
 
Uma das descobertas mais inesperadas, que se choca com os clichês da história oficial, foi em relação ao papel intelectual desempenhado pelas mulheres na Antiguidade, uma época tão hostil à criação fe- minina.
 
Foi preciso fazer um exercício de investigação muito delicado: perguntei às fontes, aos textos e à arqueologia sobre as ausências, sobre os silêncios, sobre os vestígios efêmeros e impressões di- gitais das escritoras, filósofas, cientistas e professoras.




 
“Papyrus” é uma história sobre o conhecimento, cheia de riscos, viagens e invenções, onde as mulheres não são apenas uma nota de rodapé, uma epígrafe no final do capítulo, mas protagonistas da aventura, heroínas corajosas que, junto com tantos homens, claro , defende- ram os livros contra a destruição e o esquecimento.
  
As aventuras de Enheduanna – a primeira pessoa conhecida a assinar um texto literário foi esta sacerdotisa acadiana –,  Aspásia, Hipácia, Anna Ajmatova, Karen Blixen, Clarice Lispector ou as bibliotecárias a cavalo do Kentucky, mostram que as tecelãs de histórias se recusaram a se calar em todas as épocas, em todos os tempos.
 
Recuperei a sua memória, as suas histórias, os nomes de algumas dessas pioneiras, embora delas tenham chegado a nós apenas fragmentos de canções, de versos, de pensamentos. Intrigam-me os personagens anônimos, como os inventores do alfabeto, os cavaleiros misteriosos no início do livro, os escravos copistas ou aqueles que salvaram os livros de Ovídio, perseguidos pelo impe- rador.




 
Na verdade, acredito que os heróis desta incrível aventura dos livros não são grandes guerreiros, mas sim pessoas anônimas, cujos nomes não sabemos, que empenharam as suas vidas para defen- der o aprendizado e o conhecimento.
 
Penso em tantas pessoas que, ainda hoje, nas escolas dos bairros das nossas cidades, nas pequenas bibliotecas rurais, naquela livraria independente que resiste à inclemência destes tempos difíceis, mantêm a sua convicção no valor da literatura, da cultura, do conhecimento.
 
Impressionam-me as palavras de Nélida Piñón em seu “Livro das horas”: “Não tenho filhos, mas leitores, capazes por si sós de defenderem a civilização contra os avanços da barbárie. A eles nomeio sucessores de uma linguagem irrenunciável”.




 
Essas pessoas anônimas salvadoras de livros e palavras são, para mim, as “O infinito num junco”: a história de um feito antigo que devemos celebrar e preservar, porque segue vivo hoje.
 
Em seu livro, a senhora considera a descoberta do alfabeto um evento mais disruptivo do que a internet. Qual será o efeito das novas tecnologias no pensamento, na leitura e sobre o futuro dos livros?
 
A invenção da escrita e, depois, a descoberta do alfabeto foram as primeiras revoluções tecnológicas, lançando as bases para todos os avanços sucessivos.
 
Desde então, livros, rituais de leitura e nossa forma de construir o pensamento estão em constante e acelerada transformação. A Biblioteca de Alexandria foi a primeira tentativa de abrigar o conhecimento universal em um só lugar.
 
Há um fio de cartas e páginas que une a capital de Alexandre, o Grande com o nosso presente tecnológico. Livros e bibliotecas foram o modelo que inspirou os criadores da internet, como explica Timothy Berners-Lee, pai da World Wide Web.




 
As pessoas costumam falar muito sobre a rivalidade entre os formatos do livro tradicional e digital, mas acho a relação criativa frutífera que os une muito mais fascinante. Todos os avanços tecnológicos nascem das descobertas do passado e, por sua vez, as inovações contribuem para melhorar objetos e práticas antigas.
 
Pensemos, por exemplo, em como as tecnologias mais inovadoras se aliam à oralidade: no rádio, nos podcasts, nos audiolivros. E os velhos ecos são revividos quando alguém se senta ao lado da cama de uma criança para lhe contar uma história de boa noite.
 
Como pesquisadora, interessa-me a riqueza da convivência – não a competição – entre as formas tradicionais e a presente. Não vejo os livros em papel e as telas digitais como inimigos, mas como parceiros nesta aventura do conhecimento.




 
Cada um deles nos oferece vantagens diferentes, ampliam o horizonte de nossas possibilidades. Atrevo-me a pensar que estamos vivendo o início de uma bela e longa amizade.
 
Claro, acho que a leitura de livros ainda é essencial nestes tempos frenéticos e acelerados, colonizados pela velocidade, pelo imediatismo e pela explosão de novidades que se multiplicam e se devoram. Ler não é tão passivo quanto ouvir ou ver; é recreação e efervescência mental.
 
Lemos no nosso próprio ritmo, modulamos a velocidade e dominamos o tempo, internalizamos o que queremos assimilar e não o que nos é lançado com tal ímpeto e volume que acabamos sobrecarregados.
 
Neste tempo acelerado, os livros surgem como aliados para recuperar o prazer da concentração, da intimidade e da serenidade.

Quando escrevia “O infinito em junco”, imaginou que alcançaria esse sucesso editorial?
 
Eu não esperava uma recepção tão boa nem nos meus sonhos mais loucos. Escrevi “O infinito em um junco” sem editora garantida para publicá-lo, sem certezas ou esperanças. Sempre pensei que seria um livro pequeno e discreto, que passaria na ponta dos pés.




 
A maravi- lhosa acolhida superou todas as minhas fantasias. A profissão literária é um trabalho exposto ao tempo, realizado sob céu aberto. Nesse terreno baldio, açoitado pelo vento, este livro me trouxe alegria, esperança e abrigo. Abriu portas e oportunidades para mim.
 
Pessoalmente, sinto o carinho dos leitores como um imenso privilégio. Sua incrível generosidade me presenteou com meu sonho de infância: dedicar-me à escrita com absoluta liberdade criativa.
 
Por isso, espero viajar ao Brasil para conhecer leitores de um país cuja cultura e criatividade sempre me fascinaram. Neste momento, estou sobrecarregada de trabalho, mas é uma dádiva poder escolher os meus projetos e, quando posso sentar com um novo livro, ter a calma necessária para a leitura, ter o tempo necessário para fazer a pesquisa, para escrever e reescrever.
 
Por sua vez, carrego agora o peso e a responsabilidade de fazer jus a essa enorme confiança recebida.
 
Gostaria de contribuir com meu grão de areia para trazer para o debate público alguns temas importantes, como o cuidado, as comunidades, a contribuição intelectual das mulheres ao longo da história, o valor das humanidades e da educação no mundo do futuro: A grandeza do pequeno e a força do frágil. O que nos une.