Jornal Estado de Minas

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Murakami volta à infância para aprender com as dores do pai na guerra

“Uma das coisas que quis retratar neste texto é quão profundamente a experiência da guerra pode transformar a vida e o espírito de uma pessoa – de um cidadão comum, como qualquer outro. E que, se estou aqui agora, é resultado disso. Se o destino do meu pai tivesse tomado qualquer outro rumo, por mais ínfima que fosse a diferença, com certeza eu não existiria. A história é isto: uma única realidade, inflexível, que prevaleceu entre incontáveis possibilidades. A história não está no passado. Ela existe no interior da nossa consciência, ou do nosso inconsciente, corre como sangue vivo e, querendo ou não, é transmitida para as próximas gerações.”





 

Esse é um dos argumentos do escritor Haruki Murakami, de 73 anos, para explicar por que escreveu “Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai”, escrito em 2020 e que acaba de ser lançado no Brasil em bela edição capa dura da Editora Alfaguara, com igualmente belas ilustrações da artista paulista Adriana Komura e haicais paternos como pílulas de sabedoria.


Murakami é o mais cultuado escritor japonês em atividade. Suas obras, com grande influência da cultura pop ocidental, já foram traduzidas para mais de 40 paí-ses.
 
O talento para misturar narrativas cotidianas com elementos fantásticos conquista milhões de eleitores mundo afora. É criticado dentro do Japão por fugir às tradições milenares e obtém apoio e provoca aplausos e apupos em sua terra natal também pela posição pacifista contra o militarismo.

Duas histórias reais de sua infância envolvendo gatos, que sempre povoaram sua casa e sua tenra idade, abrem e fecham a obra e são o mote para Murakami mergulhar, com sutileza poética e profundidade filosófica, nas reminiscências do tempo em que era criança em Kyoto, onde nasceu – capital do Japão até 1868, localizada na ilha de Honshu, famosa pelos templos budistas, palácios imperiais e santuários xintoístas –, e Shukugawa.




 
Entre os ensinamentos do budismo milenar de sua família e o horror frequente da guerra sino-japonesa e da Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1930 e 40, o escritor segue com sua habitual simplicidade e economia de adjetivos para descrever o cotidiano que permeia toda as suas obras.
 
Murakami faz muitas reflexões sobre as dores deixadas pelas feridas da guerra daquele tempo e das cicatrizes que até hoje reverberam em sua vida, já na terceira idade.
 
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O ponto de partida da obra é a lembrança de quando foi com o pai, Chiaki, numa tarde de verão, abandonar uma gata que apareceu em casa, em Shukugawa. Mesmo morando em casa com jardim e espaço para animais, eles decidiram não ficar com ela.
 
Depois do trajeto de bicicleta de cerca de dois quilômetros na garupa do pai segurando a caixa com a gata, eles a deixaram numa praia e pedalaram de volta.
 
Mesmo gostando de animais, não quiseram ficar com ela. “Naquela época – meados da década de 1950 –, abandonar gatos era muito mais comum e não tinha nada malvisto, até porque não ocorria a ninguém castrar o seu gato”, lembra.



Mas o desfecho foi surpreendente. “Ao chegar, descemos da bicicleta, comentando: 'É uma pena, mas fazer o quê?'. Abrimos a porta e... deparamos com a gata que tínhamos acabado de abandonar, miando e com alegria, rabo esticado para o ar. Ela tinha voltado antes de nós. Não consegui entender como ela fez aquilo. Tínhamos voltado direto, de bicicleta. Meu pai também não entendeu. Ficamos os dois sem palavras. Eu me lembro bem da cara de espanto do meu pai, que aos poucos se transformou em um semblante de admiração e, por fim, de certo alívio. Depois do episódio, ficamos com a gata. Se ela fazia tanta questão de viver sob aquele teto, o jeito era deixar.”

Murakami conta que seu pai, que nasceu em 1917 e morreu aos 90 anos, todas as manhãs passava bom tempo recitando sutras budistas diante de uma espécie de altar, uma pequena redoma de vidro com a estátua de um bodisatva esculpida.
 
“Uma vez, quando eu era criança, perguntei por quem ele recitava os sutras. ‘Por aqueles que morreram na última guerra. Pelos companheiros que perderam a vida e também pelos inimigos chineses.’ Não disse mais nada, e mais nada perguntei”, explica o escritor.





Era comum os filhos serem enviados para um templo próximo como monge aprendiz.
 
Seu pai era o segundo dos seis filhos de um sacerdote budista e quase se tornou um monge, tradição familiar, mas não se adaptou ao templo para onde foi enviado e, mais tarde, o sustento da família como professor o impediu da de- dicação integral à sua fé e de suceder ao pai, que era sa- cerdote.
 
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O pai, então, entrou para a Escola de Estudos Seizan, e antes que pudesse escolher uma carreira, foi convocado pelo Exército imperial como soldado num batalhão de transporte, em 1938.

EXECUÇÃO DE SOLDADO

Estava em curso a guerra sino-japonesa. Em meio à guerra civil na China, o império expansionista japonês invadiu o país vizinho. De estudante a monge budista, o pai de Murakami se tornou soldado, que por pouco escapou da famosa Batalha de Nanquim, então a capital chinesa, em 1937.




 
Tropas japonesas massacraram mi- lhares de chineses, incluindo mulheres e crianças, que foram estupradas e assassinadas, numa das piores barbáries do século 20. Mas o pai foi convocado para o re- gimento que invadiu a cidade chinesa um ano depois da carnificina.

Uma experiência dolorosa que o pai presenciou no campo de batalha e contou ao filho pequeno foi a execução sumária de um soldado chinês, prisioneiro de guerra.
 
“Ele disse que o soldado chinês, mesmo sabendo que seria executado, não se agitou nem entrou em desespero. Permaneceu sentado na mesma posição, impassível, em silêncio, de olhos fechados. E assim foi decapitado. Uma atitude realmente admirável, observou meu pai, que parecia nutrir profundo respeito por aquele soldado chinês, sentimento que talvez não tenha se alterado até o fim de sua vida”, conta Murakami, que diz ser essa uma lembrança que o marca profundamente, desde então, por toda a vida.

Mas as guerras não cessavam. Assim que o pai voltou da guerra sino-japonesa, em 1939, disposto a voltar a estudar, estourou a Segunda Guerra Mundial.
 
“Meu pai sempre gostou de estudar. Os estudos eram, para ele, uma razão de viver. Grande apreciador de literatura, mesmo depois de se tornar professor passava bastante tempo sozinho. Nossa casa sempre foi abarrotada de livros, o que pode ter contribuído para que me tornasse um leitor voraz na adolescência”, lembra.




 
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O pai de Murakami acabou, então, convocado de novo para a guerra, em 1941. Mas, numa reviravolta inesperada, teve a convocação revogada dois meses depois, apenas oito dias antes do ataque japonês a Pearl Harbor, que levou os EUA a entrarem na guerra e, como consequência, em 1944, destruírem Hiroshima e Nagasaki com bombas atômicas, em 6 e 9 de agosto.
 
O pai lhe disse que um superior descobriu que ele era estudante universitário e, simplesmente, o dispensou. “Acredito que vai contribuir mais para a nação como acadêmico do que como soldado”, disse o oficial, em decisão surpreendente.

O jovem soldado, que ainda teria outra curta temporada no Exército após nova convocação, em 1945, já no fim da Segunda Guerra, pôde então voltar para casa após escapar de mais uma tragédia, cursar letras na Universidade de Kyoto e se dedicar à família e aos haicais, outra grande paixão.




 
Do front, enviava haicais, pequenos poemas que chegaram a ser publicados na revista de sua escola. Murakami cita alguns, entre eles, esses em tom saudosista e contemplativo:

Pássaros migrando
ah, para onde voam?
para a minha terra

Soldado, mas ainda
monge, de mãos postas
diante da lua

GOTAS SOBRE A TERRA 

Por causa de desavenças devido à sua resistência em seguir a vida acadêmica, Haruki Murakami conta que ficou 20 anos sem conversar com o pai. A reaproximação ocorreu apenas quando o velho já estava à beira da morte, carcomido por câncer e diabetes, no fim da década de 1980.
 
Após a morte dele, Haruki pesquisou  em arquivos militares japoneses e soube mais detalhes dos alistamentos, o que permitiu que escrevesse “Abandonar um gato”.
 
Aliás, em “1Q84”, trilogia que tornou Murakami co- nhecido em todo o mundo, o protagonista, Tengo, é um alter ego de Haruki ao visitar o pai moribundo e ranzinza, e ambos tentam se reaproximar em suas últimas semanas de contato antes da morte do velho.
 
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Murakami fecha seu novo livro com outra história de felino – “O gato que subiu no pinheiro” –, que ilustra a capa do livro e também tem final insólito. Não vai spoiler aqui dessa pequena narrativa, sobre a qual ele divaga novamente sobre a passagem do tempo e da existência:
 
“Passamos a vida olhando fatos que são fruto de mera causalidade como se fosse a única realidade possível. Em outras palavras, cada um de nós não passa de uma entre incontáveis gotas de chuva que caem sobre a vastidão da terra. Gotas únicas, é verdade, mas perfeitamente substituíveis. Ainda assim, cada uma dessas gotas de chuva tem as suas próprias ideias. Cada uma tem a sua história e também a obrigação de levar adiante essa história. Não podemos nos esquecer disso. Mesmo que cada gota logo seja absorvida, perca o contorno individual e desapareça como parte de um coletivo maior. Ou melhor: justamente porque vai desaparecer como parte de um coletivo maior.”

 
“Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai”
Haruki Murakami
• Adriana Komura (ilustrações)
• 112 páginas
• R$ 64,90 (impresso)
• R$ 29,90 (digital)