Jornal Estado de Minas

PENSAR

Primeira leitura: 'Lamaluca', de Marília Pires

Marília Pires


(...) A diretoria da UNE (União Nacional dos Estudantes) era da AP (Ação Popular) e o congresso tinha toda a chance de eleger a chapa de continuidade. Como foi organizado pelos foquistas de São Paulo, deve ter sido porque, lá, eles tinham a liderança da entidade. A intenção é que fosse clandestino, como os anteriores. Dessa vez, seríamos centenas de estudantes, mas, sendo São Paulo uma cidade tão movimentada, poderíamos ter tido um esquema em que passaríamos despercebidos. 





E na verdade o congresso não foi em SP. O caminho para o local – um sítio na região de Ibiúna, não tão longe – já nos mostrava os furos do esquema montado.
 
Por um lado, os organizadores nos conduziam como se estivéssemos numa guerrilha, com senhas, contrassenhas, até estudante armado vi, fazendo a segurança do local onde me apresentei, dentro da USP. Depois, com mais três pessoas, fui colocada num carro.
 
Não podíamos saber para onde íamos, nem nos identificar uns para os outros. Um trajeto – entre SP e Ibiúna – que talvez durasse umas duas horas, teve tantos esquemas, tantas trocas de carro, tantos rodeios, que durou quase 24 horas.
 
Numa dessas interrupções do trajeto, o Fusca em que ia com outros estudantes nos deixou num ponto na rodovia com ordens de esperarmos outro veículo que nos pegaria.
 
Quando entramos um pouco mais na mata, para não ser vistos da estrada, encontramos uma clareira onde uns 50 estudantes estavam na mesma situação – inclusive Gaspar, que para todos os efeitos deveria ter um esquema especial de proteção à liderança.




 
O pior é que, em vez de outra condução que dali nos tirasse, apareceram uns homens se dizendo guardas florestais. Mentira por mentira, alguém respondeu que estávamos fazendo um piquenique. Eles se foram, mas ia ficando nítido que a repressão estava em nosso encalço. 

A repressão sabia que o congresso seria no estado de São Paulo, mas não exatamente onde. Colocaram tropas na rodoviária e no aeroporto. Espalharam outros tantos de milicos pelas ruas da capital. Avisaram as delegacias municipais que informassem qualquer movimentação estranha.
 
A delegacia de Ibiúna, uma cidade de apenas 6 mil habitantes, a maioria espalhada no arredor rural, relatou a presença de jovens desconhecidos circulando por lá uma semana antes do evento, comprando o estoque de escovas de dente e pães da cidade. Foi fácil para a polícia. 




 
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Ter a polícia de olho não era uma novidade para nós. O insuspeitável era que ela ousasse endurecer o jogo com um grupo de pessoas tão grande assim. Afinal, éramos estudantes universitários – pessoas de família da classe média-alta do nosso Brasil – e isso ainda valia de alguma coisa. 

Se disse que o local do congresso era um sítio, não pense num local bonitinho, com jardins e acomodações decentes. Só havia um galpão, de uns 100 metros quadrados, já absolutamente lotado quando cheguei. No mais, era um terreno íngreme, roçado recentemente, terra viva, muito barro, daquele barro escorregadio que nem quiabo, pois chovia direto.
 
O marrom tornou-se nossa cor oficial, pois era impossível andar sem cair. Aproveitando o declive do terreno, os organizadores haviam feito uns degraus, como uma arquibancada, coberta de plástico e protegida da chuva por uma imensa lona. Sobre a lona, é claro, ridículos galhos de árvore, como se vê em qualquer manual de guerrilha.




 
Essa era a plenária do congresso. Em uma outra pequena barraca, um pouco abaixo, serviam a comida. Uma batata assada e uma colher de açúcar para cada pessoa. Chuveiro, nem pensar. Banheiro, só um no galpão – ou no mato. 

E começou o 28º Congresso Nacional da UNE, na noite de 11 de outubro de 1968. Na mesa diretora, a liderança oficial, 104, 105, entre eles Gaspar. Nos discursos iniciais, a luta de esgrima, civilizada, entre as duas posições políticas que disputavam a diretoria e, portanto, a diretriz do movimento estudantil que viria a seguir.
 
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Na arquibancada, cerquei-me dos meus pupilos (aqueles representantes que consegui trazer das faculdades do interior de Minas), inexperientes nas manhas da política, o que me mantinha atenta para fornecer esclarecimentos e votarem “certo”.




 
Era proibido bater palmas ou gritar. A manifestação possível ali era o estalar dos dedos – e como isso faz efeito quando é tanta gente fazendo junto! Foi dando para perceber que nossa posição estava com bastante chance naquele congresso. 

Não foi uma sessão demorada, guardando fôlego para as questões polêmicas marcadas para o dia seguinte. Estávamos todos exaustos, e o único lugar possível para dormir era ali mesmo na arquibancada.
 
Quando nos ajeitávamos, nos recostando uns nos outros, fui surpreendida pela chegada do Gaspar, que mandou para as cucuias a decisão de não tornarmos pública nossa relação e viera se acomodar no meu colo. Ainda deu para, aos sussurros, trocarmos algumas impressões sobre o dia, antes de tentar dormir. 





Naquela posição sentada, incômoda, já estava bem desperta quando o dia começou a clarear, embora a plenária dormisse como se estivesse em casa.
 
Comecei a reparar que lá adiante, a uns 20 metros da plenária, o Travassos (presidente da UNE), o Jean Marc (nosso candidato para a eleição que ali ocorreria), o Vladimir Palmeira (presidente da União Metropolitana de Estudantes-RJ), o José Dirceu (presidente da UEE-SP, da corrente foquista), enfim, uma meia dúzia de pessoas da cúpula da liderança confabulava. 

Acordei Gaspar, que também percebeu que ocorria algo anormal e desceu rapidamente. Chegaram a se juntar uns dez. Logo depois, Gaspar veio até onde eu estava:
 
“A segurança do congresso avisou que estamos cercados pela polícia. Não se apavore e tente acalmar as pessoas para que não haja pânico”. Só consegui perguntar: “Mas e você? O que vão fazer com você?”. Demos um beijo e ele saiu de perto. 
 
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Depois, soube que, naquele grupo, a discussão era se a liderança deveria tentar escapar ou não. Havia um plano B montado pela segurança para eles. Resolveram não sair.




 
De onde estava, vi o Vladimir se afastar e sair correndo em direção ao mato, no sentido contrário à entrada do sítio. Minutos depois o vi retornando, no mesmo ponto de onde sumira, com as mãos cruzadas atrás da cabeça, cercado por cinco militares armados com metralhadora. 

E aí foi só olhar em torno. Como num filme de caubói, quando os índios surgem no horizonte, em qualquer direção que olhava, via a silhueta dos militares lado a lado, empunhando metralhadoras e fuzis, se aproximando num cerco compacto. 

Algumas pessoas acordaram assustadas e começaram a gritar. Houve um princípio de tumulto, logo controlado. 

Não havia o que fazer. 

Já ocupando a plenária, os militares gritavam que fôssemos deixando o local em ordem, sem correr e sem falar uns com os outros. Qualquer pessoa que demonstrava nervosismo era logo cercada por um monte de guardas de armas engatilhadas. A maioria, propositadamente, deixou por lá as mochilas e a identificação. Quem sabe conseguiríamos não ser identificados? 

Éramos 770 estudantes. Um batalhão ocupou as rodovias de acesso. Outro contingente de milicianos da Força Pública, mais 80 agentes do DOPS, fizeram o cerco.




 
Estavam fortemente armados e eram mais do que suficientes para nos dominar rapidamente. Gritavam muito, intimidadores. Tinham ido para lá preparados para realizar uma ação bélica – aquela que eles passam anos a fio se preparando e nunca acontece. 

Logo éramos duas longas filas de estudantes, entremeados de policiais, caminhando pela mesma estradinha de terra por onde tínhamos chegado. 

Soube depois, pelo jornal, que andamos 12 quilômetros até o local onde a estrada se alargava e estavam montões de ônibus e caminhões para nos recolher.
 
Em lá chegando, veio a ordem: homens para um lado, mulheres para o outro. Ainda consegui olhar para Gaspar, na fila dos homens, quase paralelo a mim e lhe enviar um beijo. 

Fizemos o trajeto até o Presídio Tiradentes, em São Paulo, nesses ônibus, cercados de batedores e seguranças. Foi, evidentemente, um estardalhaço. 





Para começar, o problema de alojamento para tanta gente. Tiveram de soltar todos os presos e presas transitórios de São Paulo. Ficaram no presídio apenas aqueles que cumpriam pena, amontoados, bem separados de nós.
 
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Superlotamos a ala feminina, onde também ficamos amontoadas em celas lado a lado e, portanto, sem contato visual com a outra. Uns 20 metros quadrados sem qualquer móvel, apenas um vaso sanitário sem porta. No máximo, cabíamos sentadas e tínhamos de fazer rodízio para cochilos deitadas – no cimento. Mesmo assim não perdíamos o fôlego. 

E logo, cada cela escolhia uma líder, que coordenava reuniões internas e transmitia as decisões ou propostas, aos berros, para as outras celas vizinhas. Assembleia permanente, dentro do presídio (...).




Sobre o livro

A partir da sua história de vida, Marília Pires registrou o testemunho de uma geração em “Lamaluca”.
 
“A linguagem franca e direta apresenta questões sobre o processo de conscientização feminina de um ponto de vista próprio, no plano individual e coletivo, além de servir de referência histórica ao debate”, aponta o texto de apresentação do livro.
 
O trecho acima conta a história da prisão de estudantes durante o congresso de Ibiúna, em São Paulo.


“Lamaluca”

.De Marília Pires
.Editora Impressões de Minas
.242 páginas
.R$ 65
.Lançamento neste sábado (13/8), na Feira Textura, Rua da Bahia, 1.889, Belo Horizonte, das 11h30 às 13h
.O livro pode ser adquirido também no sitegritaprojeto.com.br/lamaluca