A escritora belo-horizontina Cidinha da Silva construiu uma trajetória na literatura focada nas tradições, conhecimentos e saberes de matriz africana. Com obras adaptadas para o teatro, referência para os poetas em saraus e slams, com prêmios de expressão no campo da literatura, ela conquistou um lugar na literatura brasileira, sobretudo pelo estilo que vem construindo. Cidinha foi uma das palestrantes do Congresso Internacional de Leitura da 26ª Bienal do Livro de São Paulo, realizada em junho último, na capital paulista.
Os números dimensionam a amplitude de sua obra: as tiragens dos 19 livros publicados perfazem 227,2 mil cópias em circulação. “Tenho, também, me empenhado em construir uma história editorial da escritora negra que sou, ou seja, me interessa documentar todos os meus passos, processos, aprendizados, conquistas e estratégias para existir de maneira vitoriosa no mercado”, afirma, em entrevista ao Pensar.
A escritora, nascida em 1967 e graduada em história pela UFMG, passeia por diferentes gêneros literários em prosa e verso. Na prosa, o gênero preferido é a crônica, mas também experimentou a escrita de contos e de um romance infantojuvenil. O livro de contos “Um Exu em Nova York” (Pallas, 2018) conquistou o segundo lugar na categoria contos do Prêmio Biblioteca Nacional, em 2019. Nos contos e crônicas, Cidinha apresenta situações do cotidiano atravessadas por questões que lhe são caras, como os saberes e uma maneira de olhar para o mundo numa perspectiva afrocentrada.
Um dos contos de “Um Exu em Nova York”, “I have shoes for you”, narra o encontro de duas mulheres no bairro negro do Harlem, nos Estados Unidos. Uma delas, moradora de rua, oferece inesperadamente à outra um par de sa- patos. A personagem-narradora busca os sentidos daquele gesto, que tem como pano de fundo Exu, o orixá senhor dos caminhos.
A escritora coloca personagens na diáspora africana, e podemos encontrá-los em Belo Horizonte, São Paulo ou Nova York. Esse deslocamento espacial e temporal (a relação com tempo é recorrente em seus textos) permite abordar uma miríade de temas comuns de que vive nas metrópoles. No entanto, essa vida urbana é confrontada pelas refle- xões da autora, que não se prende a alguns marcadores, mulher negra, segui- dora de religiões de matriz africana e LGBTQIA. Na escrita, ela transcende as caixinhas preestabelecidas.
Em “Sobre-viventes!” (Pallas), as crônicas vão desde o protesto de duas atrizes na entrega do Prêmio da Associação dos Produtores de Teatro do Rio (APTR), em 2013, o beijo na boca de Fernanda Montenegro e Camilla Amado (1938-2021); uma conversa com um taxista no Rio de Janeiro no pré-carnaval; ou referência à escritora estadunidense Alice Walker para tratar do racismo cotidiano.
O mais recente livro de Cidinha da Silva é “O mar de Manu” (yellowfante), no qual ela conta a história de um menino africano que vivia em um país sem mar, entre três países da África Ocidental (Mali, Burkina-Faso e Níger), mas que inventou um jeito de pescar estrelas.
Cidinha dialoga com a forma de contar dos griots africanos, mas também deixa transparecer a influência da mineirice nesse sonho. “Uma das coisas que esses países têm em comum é que não são banhados pelo mar. E quem não tem o mar no seu lugar de nascimento, como Manu e eu, costuma fazer projeções no céu inventando o mar até chegar o dia de encontrá-lo.” A seguir, a entrevista de Cidinha da Silva ao Pensar do Estado de Minas.
Nos últimos anos, escritoras negras têm conquistado visibilidade na cena literária. Como você avalia esse espaço conquistado? É representativo? É equivalente à produção?
Penso que ainda é um espaço genérico para um bloco monolítico batizado como “mulher negra”. No curso de debates sobre a produção literária, é comum dirigirem perguntas a autoras negras que as forcem a falar sobre o que escreveram, e não como escreveram. Uma imposição de decodificação feita desde dentro do fazer artístico, como a dizer-nos: “A arte de vocês tem funções de ensino-aprendizagem e militância política, mais do que artísticas”. Por outro lado, muitas colegas tomam para si esse lugar e se tornam eternas (re)educadoras da branquitude, que costuma exotizar a produção literária negra ou tratá-la como mera ferramenta educativa. O grande desafio ainda é, a meu ver, a conquista do direito à fruição e começarmos a falar sobre as gerações editoriais de mulheres negras, alocando-as por gêneros literários, romance, crônica, conto, ensaio, poesia, dramaturgia, etc.
Em qual medida, você considera ser importante ser vista como uma “escritora negra”? Esse marcador pode limitar ou expandir sua literatura?
Eu sou uma mulher negra, isso é definidor na minha vida, principalmente em um país racista como o Brasil. O fato de ser negra e de ter que sobreviver ao racismo diminui minha expectativa de vida em relação às mulheres e homens brancos, como faz com todas as demais pessoas negras em relação às brancas. Ser negra é uma condição da minha existência, não é um adjetivo, não é uma circunstância. O adjetivo, muitas vezes, quer definir o quê, quando e como podemos e devemos escrever. Contra isso, me insurjo.
Você procura criar uma literatura com marcadores de questões importantes relacionados ao pertencimento à cultura de matriz africana, invocando os sabores de axé, por exemplo. Sua obra também é marcada pela questão do feminismo negro e das questões LGBTQIA. Como é fazer ficção partindo desses lugares?
Não sei se “parto desses lugares” como pontos definidores da minha escrita. Meu ponto de partida é minha determinação de ser escritora profissional e de efetivar meu projeto literário, de fazer arte. Em minha caixa de ferramentas carrego os princípios éticos que me orientam na vida, as técnicas de escrita que venho apurando e que são meu sustentáculo. Só então abordo os temas que me interessam, e que podem ser infinitos; entre eles, estão os que você mencionou.
Os seus livros chegam muito aos jovens…
Meus 230 mil exemplares são, em larga medida, resultado de aquisições em políticas públicas de formação de acervo em escolas públicas brasileiras. “Os nove pentes d’África” (PNLD Literário 2020), “Um exu em Nova York” e “Oh, margem! Reinventa os rios!”, ambos no PNLD Literário 2021. Agora, começo a vender também em livrarias, principalmente depois de ganhar dois prêmios importantes, o Biblioteca Nacional (2019) e o APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes (2021).
Você alcançou cerca de 230 mil cópias dos seus 19 livros publicados. O que isso representa em termos de recepção da crítica? E como esse retorno vem do público?
A crítica que se faz na imprensa literária não costuma olhar muito para o traba- lho de escritoras e escritores negros, a não ser que estejam em evidência, que ocupem um lugar de destaque majoritariamente construído pelas editoras. A crítica acadêmica costuma nos enclau- surar em caixinhas que facilitem a análise – se você fizer um daqueles ma- pas de palavras próprios dos sistemas complexos, verá a frequência de termos usados para nos enquadrar, tais como “denúncia”, “guerreira”, “apagamento”, “invisibilidade”, “luta”, “militância”, “enfrentamento”, “mulher negra”, entre outros. A recepção, por sua vez, é muito movida pelos ventos editoriais capazes de promover a propaganda massiva e intermitente sobre determinados livros, autoras e autores. Cito, como exemplos, o boom de Geovani Martins em 2018 (“O sol na cabeça”); ou a divulgação das obras vitoriosas dos queridos amigos Itamar Vieira Júnior e Jeferson Tenório, algo tão avassalador que não cai bem para alguém não conhecer esses autores, ou não mencionar “Torto arado” e “O avesso da pele” numa rodinha de conversa sobre livros e autores contemporâneos. Se você é uma mulher negra, precisa citar a obra de Conceição Evaristo; isso inclui também comprar livros dela (mesmo que não a tenha lido) para presentear mulheres negras de dife- rentes idades (é certeza de que você acertará o presente). Eu ainda estou bem longe disso, mas são lugares aos quais aspiro e trabalho para alcançar.
Depoimento
“É arte, não ideologia”
Eduardo Oliveira
“Cidinha da Silva materializa uma coisa banto de viver no mundo a partir da pele, e não escapulir para a escatologia. Viver tudo o que é natural! Viver mais que sobreviver. Antecipar no acontecimento o sentido que lhe é inerente sem escapismo para outro mundo. Não existe outro mundo. As coisas se dão e se resolvem aqui. Materializam-se em acontecimentos, fatos e pessoas. Aliás, um livro de crônicas se notabiliza também pelas personagens que cria ou menciona. E pelas paisagens que recria. Neste, os homens francamente vão mal, mas vão mal demais! Tem exceções, visto que esse é um livro de literatura banta, que vive da complexidade e não to- lera simplismo. As mulheres, ah as mulheres!, infinitamente mais plásticas, mais várias, mais humanas, mais coloridas, mais protagonistas, mais felinas, mais cotidianas, menos retas, mais curvas, mais viventes, mais humanas. Quanto ao mundo heteronormativo, só posso dizer que com as crônicas de Cidinha ele “pira”! Não me impressiona que ela corra o risco do texto caricato e, em nenhum caso, caia na armadilha. A autora escapa, de longe, da literatura cifrada e ideologicamente identificada. É arte, não ideologia! Ela fala como mulher, negra, lésbica – seu modo de habitar a vida. É seu ponto de partida, e não de chegada. Faz literatura banta, universalizável desde seu lugar de pertencimento. Cria seu próprio modo de expressão. Constitui seu universo. Escolhe suas referências. Diz com o estilo o que não se pode dizer com a frase. Ultrapassa o dito com o Dizer. Para mim, isso é literatura. Dizer para além do dito. Intencionalmente, ocultar para revelar. Revelar ocultando. Nesse jogo, deslinda-se o humano.”
(Texto do filósofo e educador Eduardo Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, para o prefácio da segunda edição de “Sobre-viventes!”, e publicado no Literafro, portal da Literatura Afro-brasileira)
ESTANTE
Livros de Cidinha da Silva
• “Sobre-viventes!” (crônicas. Pallas, 2016. Esgotado)
• “Canções de amor e dengo” (poemas. Me Parió Revolução, 2016. Esgotado)
• “O mar de Manu” (Infantojuvenil. Yellowfante, 2021)
• “Parem de nos matar!” (Crônicas. Jandaíra; Kuanza Produções, 2ª edição, 2019).
• “O homem azul do deserto” (Crônicas. Malê, 2018)
• “Um Exu em Nova York” (Contos. Pallas, 2018)
• “Exuzilhar: melhores crônicas de Cidinha da Silva” (Crônicas. Kuanza Produções, 2019)
• “Pra começar: melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol. 2” (Crônicas. Kuanza Produções, 2019)
• “Kuami” (romance infantil. Jandaíra, 2ª edição, 2019)
• “Oh, margem! Reinventa os rios!” (Crônicas. Oficina Raquel, 2ª edição, 2020)
• “Movimento de mulheres negras e feminismo negro no Brasil: uma memória” (Ensaio. N-1, 2020)