Jornal Estado de Minas

PENSAR

Daniel Mella expõe as feridas abertas após tragédia em 'O irmão mais velho'

"Sua morte vai cair num 9 de fevereiro, para sempre dois dias antes de meu aniversário. Alejandro terá 31 anos na madrugada desse dia cuja luz jamais verá e na qual, de quatro irmãos, passaremos a ser três." A abertura de "O irmão mais velho" resume objetivos e estratégias do escritor uruguaio Daniel Mella em seu romance. A morte do salva-vidas Alejandro, eletrocutado por um raio na Playa Grande, desencadeia a narrativa de Mella, mais centrada nos efeitos da tragédia na vida do próprio narrador (intenção explicitada no título e em diversas passagens, a começar pela menção ao "meu aniversário" logo na primeira frase) do que no significado da perda do irmão e na tentativa de obter respostas à pergunta formulada pelo pai da família: "Os mortos, em algum momento, terminam de partir?".





Nascido em Montevidéu, em 1976, Daniel Mella estreou na literatura aos 21 anos com o romance "Pogo", seguido por "Derretimento" e "Noviembre". Ele ganhou duas vezes o prêmio Bartolomé Hidalgo, um dos mais importantes de seu país: o primeiro com a coletânea de contos "Lava" e, em 2017, com este "O irmão mais velho", exercício impiedoso de autoficção que chega ao Brasil pela Autêntica Contemporânea.

No livro, dedicado à "minha família, sem vocês não haveria história", Mella expõe as próprias incertezas e obsessões (e dos que estão à volta) ao narrar, em minúcias, as horas e os dias seguintes à morte do irmão. Entre idas e vidas no tempo, segredos e mentiras vêm à tona enquanto o luto, aos poucos, reveste e transforma, irremediavelmente, as relações familiares. "O que te arde são as feridas, não as lágrimas", constata um dos familiares. 

Do súbito óbito à despedida no mar, Alejandro involuntariamente impulsiona o irmão a reagir por meio da escrita. "Trata-se de escrever ou morrer", garante Dani, o narrador-autor. "Ao escrever, vou descobrindo que posso expulsar meus pais dos territórios que conquistaram impunemente desde minha mais tenra infância. É dessa noção que tiro a energia extra nos momentos em que minha mente fraqueja e minha atenção, totalmente focada nos objetos que me rodeiam e nas angústias de meu corpo, ameaça se diluir, e as palavras começam a perder o sentido no papel."





TRECHO

De "O irmão mais velho", de Daniel Mella


Alejandro pensava na morte, embora não diariamente, como eu. Para ele, pensar na morte era necessário. Mais do que na morte, era necessário pensar na própria mortalidade. Em sua morte - em como ele gostaria que fosse e em como ele não gostaria que fosse - quase não pensava.  Preferia não ter imagem alguma desse momento e deixá-lo nas mãos do acaso. No meio de uma de suas viagens, pensou que ia morrer. Em Pichilemu, na costa do Chile, numa rebentação clara e fria, a ponta de uma onda de cinco metros havia caído em cima dele. Enquanto via como a filha da puta se fechava sobre ele, lenta, irrefreável, pensava: posso morrer aqui. Diz que duvidou. Nunca tinha visto a morte tão de perto. Estava sempre consciente dos riscos que corria quando viajava em busca de ondas grandes. Aqui, em nossa costa, apenas uma ou duas vezes por ano o mar ficava dessa envergadura, quase nunca no verão e, portanto, era difícil estar preparado para esse tipo de onda. A única maneira de se preparar para pegar uma onda grande era pegando ondas grandes, e as viagens de Ale nunca duravam mais do que três meses. De algum modo, em cada viagem ele tinha de aprender de novo a pegar ondas desse tamanho e em rebentações que eram sempre novas e que exigiam todo um processo para que se acostumasse a elas. Você sempre sentia a adrenalina ao entrar num mar assim. Ficava sério, por causa do medo. Não pegava a primeira onda boa, como fazia num mar pequeno. Deixava passar várias séries, estudava-as, ia procurando a melhor posição. A viagem ao Chile tinha sido uma de suas viagens solitárias e Ale estava sozinho na rebentação naquela tarde. Sua única companhia estava na beira do mar, um chileno que alugava seus serviços como fotógrafo. Era de lei não se enfiar sozinho num mar grande, mas Ale não ia esperar por ninguém, e diz que a onda se fechava sobre ele, que se perguntava: o que estou fazendo aqui?. Quis se preparar endurecendo os músculos, e, quando a ponta da onda o alcançou, a força do impacto esvaziou seus pulmões de uma vez só. Depois o jogou contra o fundo rochoso e o sacudiu como um boneco, até que enxergou cores e os pulmões pegaram fogo. Passou o resto da tarde e a noite inteira jogado em sua barraca, sentindo-se agredido, como se tivesse levado uma surra. Depois de ter passado por isso, já não tinha uma imagem de sua própria morte que lhe causasse medo. Eu temia, antes de mais nada, a morte por alguma daquelas doenças que te deixam prostrado. Ele também achava que essa era uma das mortes menos desejáveis, mas não lhe causava pavor nem suspeitava que esse pudesse ser seu destino." 

"O irmão mais velho"
* Daniel Mella
* Tradução de Sérgio Karam
* Autêntica Contemporânea
* 166 páginas
* R$ 54,90