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Estado de Minas PENSAR

Livro reconhece a poesia do trabalho do artista visual Leonilson

Obra de Marina Baltazar analisa a experimentação e dimensões paradoxais do artista cearense


26/08/2022 04:00 - atualizado 25/08/2022 23:48

Obra do artista Leonilson
Livro sobre Leonilson analisa variados gêneros e suportes utilizados, junto de tecidos, telas, linhas, agulhas, lápis e botões (foto: Reprodução/Relicário)
Já há algum tempo, encontramos na seção de lançamentos das livrarias obras que atualizam os gêneros vinculados às chamadas escritas do eu, a exemplo de epistolografias, diários, cadernos, autobiografias, críticas biográficas etc. Dissertações e teses são também sintomáticas desse movimento de ressignificação do corpo simbólico e biológico nos relatos de si, o que tem contribuído para um cenário cada vez mais provocador, formado pela dissonância de exercícios críticos sobre as particularidades da existência.

Entretanto, os trabalhos que se propõem a realizar, hoje, mais uma volta em torno do si, parecem nos acenar de um lugar que não repete aquele entrevisto em outros momentos da arte brasileira, como nas décadas posteriores à ditadura, em que o uso da primeira pessoa reivindicava tanto um devir-corpo da palavra quanto um devir-texto do corpo em liberação. Não se trata do mesmo tempo, mesmo que ainda não possamos assegurar uma experiência interior – o que será, portanto, que se está a dizer quando se diz eu?. 

Obras como a da pesquisadora Marina Baltazar, que acaba de lançar “Escrever Leonilson: Expansão da poesia”, publicada pela tão cuidadosa editora mineira Relicário, nos levantam questões como essas. O livro é o eco e a dobra (já que gerou não só uma, como duas encadernações) do mestrado realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Minas Gerais, e se propõe a pensar, no entrelaçamento entre arte e vida, o sentido de expansão na obra do artista cearense Leonilson.

Por “expansão” lê-se tanto das linguagens – plásticas, sonoras, jornalísticas, poéticas – característica do experimentalismo do artista, quanto no sentido de uma prática do inespecífico, expressão cunhada pela pesquisadora e tradutora argentina Florencia Garramuño, para receber esses corpos em obra ou esses frutos estranhos que fazem coisas com palavras quando pintam, costuram, bordam, recortam e colam, gravam-se a si mesmos, escrevem-se em diários. 

O resultado da pesquisa, que agora chega ao amplo público, com o mérito de apresentar, tecida pela mais fina crítica, um poetartista de tal relevância como Leonilson, parece se construir sobre estes dois eixos, inespecificidade e expansão, amparada por um repertório que passa pela “literatura fora de si” (Florencia Garramuño), pela “literatura pós-autônoma” (Josefina Ludmer) e pela “literatura em campo expandido” (Marjorie Perloff), para poder dizer com propriedade: “O transbordamento — ou expansão — de limites vai além dos suportes e gêneros tradicionais destinados à palavra, transbordando também em conceitos como a impropriedade — àquilo que é comum — e a autoria” (p. 39).

O subtítulo do livro gravita, portanto, como um centro paradoxal da investigação; afinal, seria o inespecífico dos variados gêneros e suportes utilizados, dos tecidos, telas, linhas, agulhas, lápis e botões, o que, com efeito, garante a expansão da poesia, obrigando-a a sair de si para se instalar em outras línguas e campos, outros pronomes que não a primeira pessoa, outras imagens que não a do espelho? Ou terá a poesia esse dom de acessar algo que não é próprio, acessar o próprio acesso, por isso o tão radical efeito poético, trabalhando em miúdo e ao avesso, nas linguagens que interessavam ao artista? 

Leonilson, nascido em Fortaleza, criado em São Paulo e passageiro na Europa, rapidamente vivenciou o sentido que tem para o eu ser levado a conhecer o mundo por meio do outro. Pelas bordas e margens, o intimismo, o tema do abandono, o vocabulário bastante prosaico e aquele romantismo das sedas, foi se deslocando em direção ao lugar de destaque que hoje ocupa. Foi também por meio das fitas gravadas, principalmente depois que fora diagnosticado como portador do vírus HIV e dos diários e cadernos de viagens, que Leonilson passa a ser reconhecido como um importante nome da arte brasileira das últimas décadas do século 20, muitas vezes associado a Artur Bispo do Rosário pelo duplo trabalho de dar-se ao mesmo tempo a ver e a ler.

No caso específico do poeta cearense, o visível e o legível parecem estar mais próximos de um certo grau zero, no sentido que Roland Barthes deu à escrita indicativa, aquém ou além das instituições, e que é fruto de um entregar-se a uma espécie de língua básica, letra-ainda-desenho, forma-puro-gesto. Nesse ponto se encontra um dos tantos paradoxos da obra de Leonilson: à medida que a prática poética se expande, desloca-se, tornando-se reconhecida em outros meios, ela retorna a um momento em que a letra ainda é gesto, dança, impessoalidade. 

Então, onde ainda sobrevive a dimensão do menor, do discreto, do sonho e do imperceptível, na obra desse artista que apostou na exposição de certa vulnerabilidade, compondo desenhos tão pequenos que exigem um aproximar-se perigoso e vertiginoso do quadro (contrário aos avisos de não tocar a obra), em uma dinâmica de autonegação do objeto? Ou mesmo, o que terá sido feito de toda a devoção de Leonilson diante do que não é pensado para durar, do perecível e do momentâneo, como os desenhos enviados semanalmente para a coluna Talk of the town, de Bárbara Gancia, na Folha de S.Paulo?

 Sensível à dimensão do corpo impermanente, a pesquisa de Marina toma como campo de observação os “registros que partem de um eu mas que não se findam nele,      construindo uma relação subjetiva permeada de lirismo entre o interior e o exterior do sujeito” (p. 60). O comum a todos os nós é, de fato, a permeabilidade ao político; por essa razão, o corpo não só é construído como também pode ser por ele destruído, o que tão tragicamente sabemos em um país como o Brasil. 

Próximo do impróprio 

E isso o próprio Leonilson pode experienciar e, imediatamente, simbolizar, em obras que pareciam sonhar com as formas vazias diante das insistentes línguas normatizadoras e prescritivas. Se por insistir não só nessas figuras-só-linha, sem preenchimento, e no trânsito entre matérias e suportes, ele pode ser considerado o autor de uma obra que se aproxima do impróprio, escapando dos limites de gênero, por outro lado, não encontramos nome que tenha apostado na economia de recursos, na expressividade das formas simples e dos signos solitários, a flutuarem nas páginas, telas e tecidos, a perderem-se da constelação a que pertenciam. 

Quando nos deparamos com figuras quase infantis ou com um escrita pueril, muitas vezes bordada e, portanto, pouco artificiosa (como se esse fosse um jeito de rever-se naquele grau zero do estilo, numa força ainda cega e tateante), sabemos, especificamente, tratar-se desse artista único, reconhecido, ainda, pela va- riedade de objetos que fabricava para desativar a mesma linguagem com a qual eram feitos, como um poema, apostando na língua básica de que falava Barthes, e que aqui se compõe de rios, oceano, rapazes, montanha, vulcão, fantasia, deserto, terra, mar, ar. Significantes comuns, anteriores, talvez, à formação do eu, contemporâneos ao momento em que somos projetos de escrita, so- nhadores do mundo, peregrinos do fora das instituições. Afinal, é o próprio Leonilson quem afirma, comentando a obra intitulada “El puerto”, composta por um tecido bordado cobrindo um espe- lho: “Nunca me olhei no espelho. Para não me ver”. 

O livro que agora é lançado não deixa de ter olhos atentos para os paradoxos, quando se trata desse jogo arriscado entre ficção e verdade. Pensando bem, quem é que sabe o que se passa no seu corpo? Leonilson, aqui, não é escrito; nome, corpo e obra permanecem no infinitivo do verbo, como traço e como devir, por admiração a uma experiência que fez da perigosa partida entre expansão e contração um conjunto de objetos que exigem olhar acurado para serem lidos e desmentidos, guardados e esquecidos, recitados e apagados. 

* Carolina Anglada é professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)
 
 
“Escrever Leonilson: expansão da poesia”
  • Marina Baltazar
  • Relicário Edições
  • 156 páginas  (mais 30 do caderno de notas)
  • Distribuição gratuita
  • Lançamento neste sábado (27/8), às 11h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte)  


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