Jornal Estado de Minas

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A herança: país ainda sofre por origem escravocrata e patrimonialista

“Não estava escrito nas estrelas, poderia ter sido diferente”, afirma a historiadora Heloísa Starling. Mas, há 200 anos, o Estado-nação que emerge da independência se funda sobre grandes desigualdades, com a projeção de mantê-las: entre regiões do país, raciais, étnicas, entre homens e mulheres, em uma sociedade de baixa mobilidade, que abre poucas oportunidades de acesso à formação daqueles permanentemente esquecidos. Tal foi a vitória do projeto de independência encarnado por aquilo que  Raymundo Faoro denomina de “liberalismo de transação”, do qual, no âmbito da administração germinou o patrimonialismo: num abraço sufocante, fundem-se interesses públicos e privados de famílias oligárquicas que se perpetuam na exploração de benefícios do Estado. “O que permaneceu no país desde o século 19 são as relações entre os membros de um grupo que detém as decisões, as fontes e os recursos do poder. O liberalismo de transação fará as concessões necessárias para manter a ordem política e controlar a estrutura social e não se associa à democracia”, avalia Heloísa Starling, em posfácio “Raymundo Faoro, um liberal irado”, publicado na reedição do autor  “A República inacabada” (Companhia das Letras, 2022).





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Por onde se olha, são brutais os abismos e circunstâncias entre homens e mulheres, brancos e negros, indígenas e não indígenas. Não bastasse um mercado de trabalho que paga menos a mulheres e negros em relação aos homens brancos – e frequentemente fecha a porta aos indígenas –, não é coincidência que, para negros, o legado da história do Brasil fixado no racismo estrutural registre, ano a ano, crescimento da população carcerária de pretos e pardos, tornando as prisões lugar prevalente de uma raça. Se, em 2005, os negros representavam 58,4% do total de presos, tal proporção saltou para 66,7%, em 2019, segundo o Anuário de Segurança Pública divulgado em 2021. É uma justiça de maioria esmagadora branca, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça de 2021, representada por 85,9% dos juízes brasileiros: aos  negros são aplicados critérios mais rígidos para as penas de restrição de liberdade. A mesma publicação também considera ser a maior incidência de prisão de negros; deriva também da dificuldade de acesso aos direitos e à maior inserção em territórios de vulnerabilidade, mais expostos, portanto, à cooptação pelas organizações criminosas. Assim segue o legado escravocrata. Buscando escamotear o racismo estrutural sob a forma de uma “democracia de povos” que nunca existiu, nas palavras da historiadora Ynaê Lopes dos Santos, autora de “Racismo brasileiro – Uma história da formação do país” (Todavia, 2022), uma construção de “não ditos sobre raça e o racismo”. 

A conquista pelo direito político do voto e à representação política também trilha no Brasil os mesmos percalços. Seja nos Parlamentos, seja em todos os níveis do Poder Executivo, é profundo o abismo que marca a ausência das mulheres, de pessoas negras e indígenas em relação aos homens brancos. “Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do cocar. Éramos cinco milhões há 522 anos, antes da invasão portuguesa. O Brasil nasce do estupro das mulheres indígenas e das mulheres negras. Nesse projeto de invasão,  não conseguiram nos matar na totalidade. Hoje não somos nem um milhão no Brasil, mas mesmo assim os indígenas são 5% da população do mundo, protegendo mais de 80% da biodiversidade”, afirma Célia Xacriabá, a primeira indígena a cursar doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. O Brasil redemocratizado teve apenas dois deputados federais indígenas: o cacique xavante Mário Juruna, eleito em 1987, e, depois de um jejum de 31 anos, em 2018, a conquista de Joênia Batista de Carvalho, conhecida como Joênia Wapichana, primeira deputada federal indígena na história.

Neste país em que 53% do eleitorado é feminino, segundo o IBGE, os indicadores da presença da mulher na Câmara dos Deputados e no Senado Federal é vexatória e evolui pouco ao longo das décadas: dados da  Inter-Parliamentary Union for Democracy  (IPU Parline) posicionam o Brasil na 145ª posição no ranking de cadeiras ocupadas por mulheres em 190 Parlamentos no mundo. Com média de apenas 15% de eleitas  nas duas Casas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal estão, em representação feminina, abaixo da Índia, da Malásia e de Zâmbia. Há ainda aquelas que são esposas e filhas de clãs familiares, que ali estão para reforçar uma estrutura de poder herdada do Brasil imperial.





Também negros, que segundo o IBGE somam 54% da população brasileira,  estão em desvantagem na representação política. Em 2018, entre as 1626 cadeiras para deputados distritais, estaduais, federais e Senado Federal, apenas 65, ou seja, 4%, foram preenchidas por candidatos que se autodeclararam pretos nas eleições 2018. Já os candidatos pardos e pretos eleitos, que segundo classificação do IBGE são denominados negros, somaram 444 cadeiras, o que representa 27,3% do total, sub-representação que alcança apenas a metade da população. 


ESCRAVIDÃO


A evolução da história da formação do Estado nacional brasileiro, que há 200 anos, com a proclamação da Independência, se constituiu no Império do Brasil, centralizador e escravocrata, traz todos os elementos que explicam o racismo estrutural. Não à toa, foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, um tema que tangenciou alguns projetos derrotados de independência, mas que, de fato, passou longe dos interesses das elites agrárias e da família real, que conseguiram fazer prevalecer o seu programa político a partir daquele “7 de setembro” de 1822. “Se por um lado, a Independência do Brasil foi feita a partir de uma base escravista, por outro, não podemos esquecer que nesse mesmo período estavam sendo construídos projetos de nação que excluíam a escravatura. Essa constatação é fundamental para entender que, a partir de 1822, manter a instituição escravista foi uma escolha política e econômica, não um fato inevitável”, analisa a historiadora Ynaê Lopes dos Santos. 

O racismo garantiu, à época da proclamação da Independência, a manutenção da organização social, econômica e política de um país que se anunciava em busca de liberdade e igualdade. Obviamente, restritas aos brancos. “O Brasil foi mais uma nação americana que nasceu em meio a esse processo de profundas transformações, construído em um mundo no qual as ideias de nação, de progresso, civilidade e a própria humanidade estavam unicamente vinculadas à população branca vinda da Europa. De forma peculiar, nossa história entrelaça todas essas questões ao longo do passado colonial e escravista”, diz Ynaê Lopes dos Santos.





Embora, em 1761, em Portugal, tenha sido abolido a escravatura, considerada pelo  Marquês de Pombal um “ímpio e desumano abuso”, quase cinco décadas depois, quando em 1808 a corte do Império foi transferida de Lisboa para o Rio de Janeiro, tal perspectiva não foi considerada. Ao contrário, o período joanino (1808-1821) foi de reafirmação da política escravocrata. Não só de africanos. Mas também de indígenas. “A escravidão continuou a ser instituição reguladora da vida colonial”, escreve Ynaê Lopes dos Santos. “Nem bem havia se instalado no Rio de Janeiro, Dom João expediu três cartas régias nas quais autorizava a escravidão indígena por meio das guerras justas, que haviam sido suspensas pelo marquês de Pombal. Tal medida resultou na escravização maciça de diferentes grupos indígenas em várias localidades do Brasil e na dizimação dos botocudos que viviam em Minas Gerais”, assinala a historiadora. 

Para indígenas, tal é a herança: seguem lutando pelo direito à existência. “Quando se nega território se nega direito à existência. Mesmo depois da promulgação da Constituição de 1988, que tinha compromisso de em cinco anos demarcar todos os territórios indígenas, a maioria dos territórios não foi assinalada. Somos mais de 365 povos, mais de 274 línguas, em torno de 900 mil indígenas, um passivo enorme”, sustenta Célia Xacriabá, salientando que, ao mesmo tempo, as lideranças que lutam por direitos estão sendo assassinadas: em 2019, foram 135;  em 2020, foram 185. “ Para uma população que não é nem um milhão, constitui genocídio”, afirma Célia Xacriabá. 


Protagonismo feminino


Elas foram apagadas da história. Muitas são as referências femininas revolucionárias e que tiveram protagonismo em projetos de Independência para o Brasil. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo despachava mensagens aos líderes da Conjuração Mineira para dar início ao levante com a ousadia de, em 1789, declarar que as Minas poderiam viver livres de Portugal. Bárbara de Alencar, que, em 1817, proclamou a República em frente a uma igreja no Crato, em Pernambuco; Urânia Vanério, uma menina de 10 anos, em crítica implacável à monarquia portuguesa e seus aliados, se torna, em 1822, na Bahia, autora de um dos principais panfletos durante o recrudescimento da luta pela independência; Maria Felipa de Oliveira, que liderava na Bahia o Batalhão das Vedetas, ao qual integravam-se Marcolina, Joana Soleiro, Brígida do Vale e outras 37 mulheres de nomes omitidos pela história, monitoravam a costa do Recôncavo, interceptando barcos portugueses que, em busca de alimentos, saqueavam as vilas. Com ramos de cansanção e facas, surravam e atacavam o desembarque dos soldados portugueses. Maria Quitéria de Jesus adotou a farda masculina e a identidade possivelmente do cunhado para lutar no front da Independência na Bahia. 





 “Vivenciaram esse projeto de maneiras diferentes, partindo de patamares sociais desiguais e atuando de forma diversa: empunharam armas, se engajaram no ativismo político, fizeram uso da palavra escrita no debate público”, sustentam  Heloísa Starling e Antonia Pellegrino, que organizam o livro “Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá” (Bazar do Tempo, 2022). Séculos depois, a memória deste protagonismo é recuperada pela historiografia, também nas figuras de Ana Maria José Lins, Maria Clemência da Silveira Sampaio e dona Leopoldina, que, com a proclamação da Independência, se tornaria imperatriz Leopoldina.