Jornal Estado de Minas

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As revoluções: ideias europeias formaram base teórica da independência

Lâminas afiadas assombravam cabeças nas monarquias absolutas europeias. Ao final do século 18, o continente era varrido por ideias inquietantes, que, ao bojo de transformações sociais, políticas e econômicas, destruiriam, nas próximas décadas, tudo aquilo que na antiga sociedade provinha e estava conectado à aristocracia agrária e às suas instituições feudais. Marcando a inevitável passagem  para as sociedades modernas, na França, a Revolução Francesa decapita o Absolutismo, dando aos povos a certeza de que são escritores de sua própria história. Foi um processo que abriria, nos termos do historiador Eric Hobsbawm, o século de revoluções que se espalharam pelo mundo, delimitando os limites do exercício do poder e a garantia de direitos universais. No horizonte, concretizava-se a ascensão de uma nova classe social, as burguesias urbanas, que no contexto da Revolução Industrial (1760) , iniciada na Inglaterra, consolidaria um novo sistema econômico. 





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Na alma de tantas transformações, o Iluminismo. Ao mesmo tempo em que as ideias de pensadores como John Locke disseminavam a individualidade e a sociedade civil como fundamentos de um novo contrato social, a propriedade privada e a liberdade de expressão integraram o inovador ideário a ser defendido. Como forma de enfrentamento às tiranias e poder absoluto de monarcas, Montesquieu teoriza sobre a divisão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Contra as rivalidades religiosas que sustentavam as fronteiras entre potências europeias, Voltaire pregava a tolerância como valor universal e fundamento do convívio de sociedades entre iguais.  

Tais ideias revolucionárias cruzam o Atlântico e chegam suavemente, em textos clandestinos, em francês, à principal colônia portuguesa das Américas. Nas Minas, tais ideias encontraram gente “intratável”, “em contínuo movimento”,  um lugar em que “a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros”. Esse é um registro do Conde de Assumar, entre 1717 e 1720 governante da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em discurso que lhe foi atribuído por ocasião da sublevação  dos mineiros no ano de 1720, mencionado pela historiadora Heloísa Starling em “Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá” (Editora Bazar do Tempo, 2022). 

De natureza sobretudo antifiscal, em 1789, o legado de insurgência dessa gente “intratável” germina a primeira a revolta. “Até a Conjuração Mineira emergir à superfície e assumir o formato de um movimento político explicitamente disposto a combater a relação colonial, ninguém ainda havia acusado a Coroa portuguesa de despotismo; e muito menos planejado criar uma Minas Gerais independente, soberana, autossuficiente e republicana”, constata a historiadora Heloísa Starling  na obra “Brasil uma biografia” (Companhia das Letras, 2015). Tiradentes foi o mais ativo propagandista da Conjuração Mineira, principal movimento anticolonial da América portuguesa no campo das ideias e o primeiro a adaptar um projeto de independência claramente republicano para as Minas, considera Heloísa Starling. Ela identifica nos planos da Conjuração Mineira traços da inovação constitucional de uma república confederada de estados independentes com autonomia legislativa. 

Embora a maquinação anticolonial tenha fracassado em Minas, o ideário abasteceu outras conjurações. “Na Conjuração Baiana, livros manuscritos sobre a Revolução Francesa atingiram a população pobre de Salvador. No Rio, traduções de jornais da Europa eram distribuídas nas boticas. As ideias se movimentavam de forma criativa, em volumosos panfletos e textos mais curtos, pregados nas ruas”, avalia Heloisa Starling na obra “Ser republicano no Brasil colônia – A história de uma tradição esquecida” (Editora Companhia das Letras, 2018), que em pesquisa detalhada visitou arquivos do Brasil, de Portugal e da França para analisar a trajetória desse pensamento.





Ainda que despedaçadas pela Coroa, as conjurações integram um longo aprendizado político da colônia. Em contraste à narrativa de um país tropical em harmonia com o colonizador português, entre os séculos 17 e 18, novos sentidos ao mundo em que viviam passaram a ser expressos pelos colonos. “Declararam direitos, abriram um espaço antes inimaginável para o debate e as negociações políticas, enriqueceram paulatinamente o vocabulário da vida pública, deixando, para o século 19, um conjunto de ferramentas intelectuais e políticas que poderiam ser mobilizadas, selecionadas, reelaboradas e aplicadas para seus propósitos”, afirma Heloísa Starling.  E é em 1817 que esse corpo de ideias entra em ebulição e se concretiza, em Pernambuco, pela primeira vez no Brasil, numa república, abrindo o Ciclo Revolucionário da Independência. 


REPÚBLICA PIONEIRA


Ao chegar-lhe a denúncia de que mais uma conspiração contra a Coroa era urdida naquela província, o português e governador de Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro convocou o Conselho de Guerra no Forte das Cinco Pontas e decretou a prisão de civis, eclesiásticos e de alguns militares envolvidos. No Regimento de Artilharia, os acontecimentos se precipitaram e saíram do script: ao receber a voz de prisão do comandante português, brigadeiro Barbosa de Castro,  José de Barros Lima,  capitão do Regimento de Artilharia conhecido como Leão Coroado, desembainhou a espada e desferiu  golpe mortal contra o superior. Foi o estopim. Os rebeldes tomaram o quartel, impediram o avanço das tropas monarquistas e ganharam as ruas aos gritos de “Viva a pátria! Viva a revolução!”.  Em meio à amotinação e desordens, o  governador português se refugiou na Fortaleza do Brum. Capitulou. 

Na província de Pernambuco, era promulgada a república 72 anos antes que essa fosse implantada no Brasil. Teve curta duração. Mas foi pioneira, inovadora. Entre 6 de março e 19 de maio de 1817,  constituiu um governo provisório e implementou Lei Orgânica de 28 artigos, algo próximo a uma pré-Constituição, a primeira elaborada por brasileiros, de redação atribuída a Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e a frei Joaquim do Amor Divino Rabelo – Frei Caneca – , autor da célebre frase "quem bebe da minha caneca tem sede de liberdade!". 





 Apesar do conjunto de ideias liberais revolucionárias e embora o  Governo Provisório de Pernambuco tenha se manifestado favoravelmente à abolição da escravatura,  a pauta não era consensual entre os revolucionários; limitou-se, nesse sentido, a informar que reconheceria, naquele momento, a “propriedade privada”. Havia muitos fazendeiros envolvidos no movimento, de tal forma que não lhes interessava a abolição do trabalho escravo. Em que pese a diversidade de ideologias entre os revolucionários – de republicanos radicais a monarquistas conservadores –, consensual foi a reivindicação por autonomia provincial. “Houve o desejo de que o novo arranjo político que se formava levasse em consideração as autonomias locais, principalmente as fiscais, um maior equilíbrio entre a arrecadação e o investimento nas províncias”, assinala o historiador George Félix Cabral de Souza, sublinhando ser esta uma reivindicação muito marcante, que transbordou para o movimento independentista, republicano, de base constitucional. 

O governo revolucionário de Pernambuco atraiu para a causa as unidades administrativas coloniais da Paraíba, do Rio Grande do Norte e parte do Ceará. Simultaneamente contrários a Portugal e ao Rio de Janeiro, foi um programa que combinou constitucionalismo, republicanismo e autonomia provincial, em contraposição ao projeto de estado-nação vitorioso da Independência, gestado pelo Rio de Janeiro, que se constituiu centralizado e unitário.