Jornal Estado de Minas

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O contexto: partida de Dom João VI para Portugal acelerou mudanças

“Eu ainda me lembro e me lembrarei sempre do que Vossa Majestade me disse antes de partir dois dias antes no seu quarto: Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que hás de me respeitar, do que para algum aventureiro." As palavras de Dom João VI ao filho teriam sido proferidas em 24 de abril de 1821, quando o rei se preparava para retornar a Lisboa, em cumprimento à convocação das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa. Instaladas entre 1821 e 1822,  a partir da Revolução do Porto, deflagrada em 24 de agosto de 1820,  elas foram um movimento liderado pela burguesia mercantil portuguesa. Com a partida do rei, Dom Pedro I foi  nomeado príncipe regente do Reino do Brasil. 



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O registro do diálogo se encontra em correspondência datada de 19 de junho de 1822. Os meses que separam essa carta e a consumação da proclamação da independência, em 7 de setembro de 1822,  registraram uma escalada de tensões entre o príncipe regente e as Cortes Constituintes, também chamadas de Soberano Congresso, expressão de um embate entre a perspectiva portuguesa de “regeneração” do poder de Lisboa, e a brasileira, de que estaria em curso uma “recolonização” do Reino do Brasil. 

“A decisão pela independência não surgiu de repente, da insatisfação de Dom Pedro ou das elites ligadas a ele com as Cortes Constituintes de Lisboa. Suas raízes foram múltiplas. Está relacionada, por um lado, ao sentimento nativista de alguns; por outro, das particularidades culturais que em uma das dimensões passaram a diferenciar brasileiros e portugueses; do processo de efetiva descolonização vivido em 1815, com a criação do Reino Unido; e ainda do temor da “recolonização”, a partir de 1821, com o retorno de Dom João VI para a Europa”, analisa o historiador Hélio Franchini Neto.

A todas essas variáveis, que contribuíram para empurrar o processo emancipatório, soma-se a falência dos reinos. Em Portugal e no Brasil, o alvorecer das ideias liberais e antiabsolutistas veio acompanhado de profundo déficit fiscal dos estados, consideram Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira, autores de “Adeus, senhor Portugal, crise do absolutismo e a Independência do Brasil” (Companhia das Letras, 2022). Em interpretação ampla do processo emancipatório brasileiro, eles articulam as tensões políticas e sociais do período com a questão fiscal da Coroa. 





Já ao final da década de 1810, no contexto das Guerras Napoleônicas e da transferência da corte para o Rio de Janeiro, o desequilíbrio orçamentário era evidente: faltavam pagamentos aos servidores civis e militares e era desenfreada a emissão de papel-moeda, o que gerava inflação e impactava os preços dos alimentos. Cresciam as insatisfações em Portugal e no Brasil. Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira atentam para um duplo movimento de instabilidade: ao mesmo tempo em que impostos e inflação crescentes pioravam a vida da população e insuflavam nas províncias as revoluções de caráter autonomista, também a crise orçamentária em 1820, na qual se  afundava o Reino Unido do Brasil, de Portugal e Algarves,  era um reflexo do desgaste das instituições do antigo regime, incapaz de zelar pelo equilíbrio do tesouro.


"REGENERAÇÃO" E EMBATE


Embora tenha sido um movimento complexo e de inúmeras nuances, pode-se dizer que a Revolução do Porto tenha se caracterizado pela instauração de um novo governo de caráter constitucional e liberal, pondo fim à monarquia absoluta em Portugal. O movimento trouxe a tentativa de Lisboa de recuperar o poder, o que, na visão das elites brasileiras, representaria a recolonização. Assim, as Cortes Constituintes de Lisboa pretendiam garantir para Portugal o governo de um único reino de duas seções, a europeia e a americana; diferentemente da configuração vigente desde 1815, de dois reinos autônomos sob um único monarca. 

Ao solapar a autoridade do Rio de Janeiro, articulando-se diretamente com as províncias, as Cortes Constituintes aprofundavam as instabilidades e conflitos locais no Brasil, que assistira entre as últimas décadas do século 18 e no alvorecer do século 19 às conjurações Mineira, Baiana, dos Suassuna e a Revolução Pernambucana de 1817, que chegara a instalar uma república por curto período, antes de ser esmagada pelas forças da Coroa. 





Da herança colonial, não havia na América portuguesa um elemento de unidade territorial e de nacionalidade, e, sim, a força das localidades, com dinâmicas heterogêneas. E embora a chegada da família real, em 1808, tenha favorecido certa unificação em torno da Coroa no Centro-Sul do Brasil – em particular, Rio de Janeiro e São Paulo –,  o príncipe regente se encontrava à frente de quase duas dezenas de províncias, de onde germinavam distintos projetos políticos e anseios por vinculações ou autonomia, segundo os interesses econômicos e sociais locais. 

A partida de Dom João VI para Portugal, em 26 de abril de 1822, foi precedida de significativa convulsão social.  Com o propósito de desmantelar a estrutura  de governo estabelecida a partir de 1808 no Rio de Janeiro, as Cortes editaram sucessivos decretos, dois deles em setembro de 1821, que precipitariam o endurecimento do confronto com Dom Pedro. Enquanto o primeiro decreto estabelecia Juntas Provisórias de Governo nas províncias e transferia o poder militar aos governadores de Armas, chefes das forças armadas de cada região administrativa, escolhidas diretamente por Portugal, o segundo determinava o retorno do príncipe regente a Lisboa. 

Não apenas no Rio de Janeiro, mas em São Paulo e em Minas, a resistência a tais decretos se mobilizou rapidamente. Nascia assim o projeto de emancipação fluminense, secundado por Minas Gerais e São Paulo. “Teve-se, então, o momento propício para a união entre o regente e o projeto de independência encabeçado por José Bonifácio, que contou também com o apoio de outras tendências políticas, unificadas pelo conflito contra inimigo comum”, afirma o historiador Hélio Franchini Neto. 





Em correspondência ao pai, datada de 15 de dezembro de 1821, Dom Pedro informava as gestões de representantes de Minas Gerais e de São Paulo para que permanecesse no Brasil. Caso contrário, seria declarado algum tipo de independência. 

Personagem central na construção do Dia do Fico, anunciado em 9 de janeiro de 1822, e também do projeto vitorioso de Estado monárquico centralizado da Independência do Brasil, a princesa Leopoldina mantinha estreita interlocução com a diplomacia do Império Austríaco, de seu pai, Francisco I, instalada no Rio de Janeiro e com a qual compartilhava o entendimento de que a presença do príncipe regente seria a única chance de se manter a monarquia no Brasil, o que possibilitaria, futuramente,  restabelecer a unidade com Portugal, já que Dom Pedro I era herdeiro do trono luso. 

Ao Fico seguiram-se atos militares de resistência e expulsão da Divisão Auxiliadora e rechaço da esquadra portuguesa do almirante Francisco Maximiliano de Sousa.  Consolidou-se um centro político no Rio de Janeiro, que passaria a se contrapor às Cortes e a Lisboa, ao mesmo tempo em que alinhava a aliança entre diferentes grupos de interesse nas províncias, unidos em torno da figura de Dom Pedro, mirando algo maior do que as suas próprias diferenças. Autodenominaram-se as Províncias Colligadas (Rio de Janeiro, Minas e São Paulo).