Jornal Estado de Minas

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Não foi sem guerra: independência do Brasil tem história sangrenta

 Não foi uma emancipação pacífica. Pouco valorizada pela historiografia oficial, a sangrenta história da Independência do Brasil tem violentas guerras entre Portugal e o Rio de Janeiro, após o 7 de setembro de 1822,  das quais participam negros, indígenas, camponeses e mulheres, como Maria Quitéria e Maria Felipa. 





 

Em três grandes teatros de operação – Bahia, Norte e Cisplatina– entre 1822 e 1823, as guerras da Independência mobilizaram mais de 60 mil soldados e causaram a morte de 3 mil a 5 mil pessoas, segundo estima o historiador Hélio Franchini Neto, especia- lista nas batalhas do período, autor de “Redescobrindo a Independência, uma história de batalhas e conflitos muito além do 7 de Setembro” (Benvirá, 2022).


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Tampouco o projeto de independência que prevaleceu foi único e incontestável naquele período. Outras independências que sonharam com outras formas de Estado federalista e republicano foram igualmente gestadas nas províncias deste que, desde 1815, deixara de ser colônia e fora alçado à condição de Reino do Brasil unido a Portugal e Algarves. 

 

Três principais projetos de Estado para o Brasil foram idealizados naquelas primeiras décadas do século 19. O primeiro almejava um Império luso-brasileiro, de monarquia constitucional, com o poder centralizado em Portugal, pretendido pelas Cortes Gerais e Extraordinárias da nação portuguesa,  que eram Cortes Constituintes ou Primeiro Parlamento Soberano, como desdobramento da Revolução Libe- ral do Porto (1820). 





 

O segundo projeto mirava um império da América portuguesa, com poderes centralizados no monarca, perspectiva defendida pelo príncipe regente Dom Pedro, vocalizando as aspirações das províncias do Centro-Sul. E, por fim, havia a proposta federalista, com autonomia das províncias, liderada por Pernambuco. 

 

Com a proclamação da Independência e vencidas pelo Império do Brasil as guerras que se seguiram contra Portugal, o primeiro projeto foi sepultado. Concluída a ruptura emancipatória,  foi a vez de os dois programas políticos que estiveram unidos na luta contra os portugueses se confrontarem. Partiam de pressupostos antagônicos: um vasto império centralizado da América portuguesa ou províncias sobe- ranas para construir autonomamente os seus destinos? Em análise do período, as duas perspectivas foram consideradas por Raymundo Faoro em “Os donos do Poder” (Companhia das Letras): por um lado, respaldado no ideário da soberania popular, re- gulação constitucional dos poderes e pacto social, esteve o “liberalismo irado”, derrotado; por outro, o projeto vitorioso, que Faoro denominou de “liberalismo da transação”, defendido pela corte no Rio de Janeiro.

 

A proposta de federalismo pernambucano pretendia, como anota o historiador Evaldo Cabral de Mello, que, desfeita a unidade do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, a soberania revertesse às províncias, “onde propriamente residia”. Seria, portanto, no âmbito das províncias autônomas, que localmente seria negociado um pacto constitucional ou caso este não lhes conviesse, constituírem-se separadamente, sob o sistema que melhor lhes parecesse. 





 

Assim se manifestara Frei Caneca,  mencionado pela historiadora Heloísa Starling no texto “História não é destino”, que abre a nova edição de “A outra Independência – Pernambuco, 1817-1824” (Todavia, 2022), de Evaldo Cabral de Mello:  “Quando aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga, no seu exaltado entusiasmo, aclamaram a S.M.I. (Sua Majestade Imperial), e foram imitados pelos aferventados fluminenses, Bahia podia constituir-se república; Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Piauí, fede- ração; Sergipe d’El Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional; Rio Grande do Sul, estado despótico”. 

 

Não à toa se justifica a Confederação do Equador (1824): terminadas as guerras pela Independência no teatro da Bahia e do Norte, Pernambuco, pela segunda vez, implantou uma república, em resposta à dissolução por Dom Pedro da Assembleia Constituinte eleita. “A historiografia da Independência tendeu a escamotear a existência do projeto federalista, enca- rando-o apenas como produto de impulsos anár- quicos e de ambições personalistas, antipatrióticas, semelhantes aos que tumultuavam pela mesma época a América espanhola”, sustenta Cabral de Mello.

 

Concebida em torno dos interesses do Rio de Janeiro, o projeto vitorioso da Independência consolidou um estado em escala da América portuguesa continental, estendendo-se do Rio da Prata ao Amazonas, centralizado e escravocrata, regido por um monarca de origem lusa e herdeiro do trono de Portugal.





 

 “D. Pedro logrou adquirir para o Império todos os territórios da América portuguesa do Reino do Brasil, com base em uma série de ações: o convencimento, negociações, promessas, coação e também o uso da guerra, que é o elemento que complementa. Sem as guerras da independência, os acordos políticos não seriam suficientes para manter a unidade e o respeito à autoridade do Rio de Janeiro”, considera o historiador Hélio Franchini Neto. 

 

Nas palavras de Heloísa Starling: “A Independência determinou a especificidade política do Estado que se formou no Brasil e de seu sistema de governo definido por uma monarquia constitucional representativa. Centralizador em excesso e fortemente conservador, esse projeto está na matriz da configuração do Estado brasileiro – manteve a escravidão, a monarquia e a dominação senhorial. Ao seu redor, floresceu a nossa sociedade autoritária, violenta, desigual e hierárquica”.

 

 

INDENIZAÇÕES

 

Por meio do Tratado de Amizade e Aliança, assinado em 29 de agosto de 1825 entre Dom João VI e Dom Pedro I,  Portugal, derrotado nos teatros de ope- ração, reconheceu o Império do Brasil. A data, entretanto, ficou marcada por uma segunda convenção secreta, firmada no mesmo dia, por meio da qual estipulava-se que o Império do Brasil pagaria a Portugal uma indenização no valor de 2 milhões de libras inglesas. Foi apenas em 1826, por ocasião da reabertura da Assembleia Legislativa brasileira, que tal convenção foi cravada de duras críticas. 





 

“Como as finanças iam mal, inclusive pelos grandes custos da mobilização militar, os recursos tiveram que ser emprestados de bancos ingleses. Em muitos livros de história, essa indenização aparece como a origem da dívida externa brasileira. Criou-se, então, uma imagem de que o segredo se destinava a esconder uma negociata contrária aos interesses do Brasil, ao que se somou ponto importante da simbologia para a época, o acordo pelo qual D. João VI assumia o Império e transferia o poder ‘voluntariamente’ a Dom Pedro”, anota Hélio Franchini Neto, que tende a relativizar tal interpretação. Para outros historiadores, tratou-se de um negócio de filho para pai, além de um acinte aos combatentes, mortos e feridos que consolidaram a Independência nos campos de batalha da Bahia, Piauí, Maranhão e Cisplatina. 

 

Duzentos anos depois, a pesquisa historiográfica sinaliza para um outro processo emancipatório: de muitas mortes, guerras, escravidão, pelourinhos, quilombos e insurreições, resistência indígena ao genocídio, sangue e lágrimas, que passaram ao largo das margens “plácidas” do Ipiranga. Tal foi a natureza de um processo complexo, desenhado em artificial exuberância heroica e nacionalista, em óleo sobre tela, por Pedro Américo, em 1888, sob o título “Independência ou morte”. Assim como a origem da família real portuguesa, a representação daquele “brado” também é europeia e  se inspira na tela “1807, Friedland”, de Ernest Meissonier, que retratou Napoleão Bonaparte após a vitória dos franceses sobre os russos. O mesmo Napoleão que, na passagem de 1807 e 1808, avançando sobre a Europa com o ideal antiabsolutista, ameaçara lusos com a invasão, empurrara a família real para o Rio de Janeiro, provocando  transformações com influência fundamental em todo o processo que desembocaria na Independência do Brasil.