Jornal Estado de Minas

PENSAR

João Paulo Cunha: a terceira margem da canção



Dércio Marques, em sua vida pessoal, foi encarnação da utopia. A palavra, que se refere a um não lugar ou a um lugar imaginário capaz de realizar os portentos da justiça, da harmonia e da beleza, caía nele como uma espécie de sobrenome. O artista não teve casa, dizia-se dele que era mesmo “imorável”. Sentia-se, no entanto, como muito poucos, em casa em qualquer lugar em que fosse recebido com afeto. Era dessas almas que habitam o mundo.





Em matéria de arte, não era também fácil de pegar. Contemporâneo de vários movimentos da canção popular de seu tempo, da música de protesto ao novo cancioneiro latino-americano em suas variadas expressões no continente, trazia de cada um deles ao mesmo tempo a identidade e a distinção. Sempre estava além do que se esperava, obrigando a um gesto de reflexão e compromisso.

Em ideologia, também não era simples a tarefa de carimbá-lo. Portador de uma mensagem de revolta, muito mais que de revolução, manifestava em suas obras e atitudes, em estética e política, um ideário de liberdade. Nele estavam presentes impulsos humanistas (a arte era para ele uma manifestação antropológica), de defesa da justiça social e de repúdio a tudo que desumanizava. Sua ligação com a natureza e a espiritualidade eram consequências dessa inspiração poderosa.

Para complicar ainda mais, era um homem de contornos fluidos. Artista dotado de grande talento, nunca se distinguiu pelo cuidado com a obra. Ser político de profunda imantação com o real, por vezes se isolava em posições muito pessoais adiante de seu tempo. Há um custo em se antecipar. Mas há também mérito na coragem, mesmo que isso por vezes obrigue a caminhar sozinho. O que era difícil para um ser de relações, um malungo existencial como Dércio Marques.




 
Dércio Marques: personagem fundamental da cultura brasileira, ainda que pouco conhecido (foto: Giselle Rocha/EM/22/11/99 )
 

O cantor e compositor voltou seu espírito para fontes do continente e de seu povo originário quando isso mal se desenhava no horizonte brasileiro. Cantava Ataualpa Yupanqui, Victor Jara e Violeta Parra, morou em países da América Latina, participou de grupos de música regional. Escreveu um manifesto – algo confuso, mas cheio de iluminações – sobre a identidade do continente e seus desafios.

Percebeu, talvez antes de todos, artistas e pensadores da cultura, que o protesto também era mercado. Mesmo assim, participou de festivais da canção, admirava Geraldo Vandré e fez parte da onda de revolta contra as ditaduras de toda ordem. Mas teve a sabedoria de compreender que dar voz ao povo era mais importante que falar em seu nome.

Quando tudo na trajetória do artista parecia indicar que a síntese de tantos caminhos geraria uma obra marcada pela extrema informação política ou mesmo pela consagração do sucesso, o criador escolhe ou é escolhido pela simplicidade e suas astúcias. Suaviza o canto, retoma referências mais emotivas, convoca a memória afetiva do povo. Tenta criar ordem aceitando o caos. Algo que pode ser definido como fulejo, nome de seu disco mais emblemático.





Ouvir, conversar, pesquisar

Esse caminho de dificuldades em torno do personagem e sua obra é vencido com muita harmonia e afeto em “Dércio Marques: Da Latinoamérica ao Brasil de dentro”. Letícia de Queiroz Bertelli criou um método pessoal, feito de atitudes singelas: ouvir atentamente os discos (hábito que se perdeu e com ele um capítulo indispensável da nossa inteligência), conversar com as pessoas (outro atributo que anda em baixa), e pesquisar com curiosidade atenta e respeitosa.

O resultado é um estudo que revela um personagem fundamental da cultura brasileira, ainda que pouco conhecido. O que é mais um ganho do trabalho: a abertura a outras histórias a serem contadas sobre nosso modo de ser. Além do sucesso, da indústria cultural e mesmo do cânone assentado pela memória e pelo hábito, há muito o que ser contado. Mais do que isso: a ser revisto e revivido. Talvez parte dos impasses pelos quais passamos hoje estejam perdidos numa curva de caminho da nossa majestosa ignorância e certezas falhadas dos rumos da história.

Letícia Bertelli nos abre algumas importantes fontes de desconfiança. Em primeiro lugar, o desafio à narrativa dos vencedores, mesmo que ela seja por vezes confortável ao nosso juízo. Como a entronização de certa MPB de alta qualidade estética e força moral. A enunciação de novas vertentes, como a cultura latino-americana e a arte de Elomar e dos cantadores, torna mais complexa – e melhor – o que já parecia pacificado.





A preocupação com o contexto também traz algumas pistas importantes, numa espécie de crônica social dos grupos de contestação. Acostumados com uma história da cultura que passa necessariamente pelos meios autorizados de produção e divulgação, é importante rever outros mecanismos sociais de mobilização e legitimação em funcionamento.

São formas de convivência artística que passam longe da mídia de suas maquinações, como os festivais e os discos promovidos em programas de auditório, para tangenciar um momento de construção de consensos mais permeável ao debate, ao partilhamento e à troca – não necessariamente pacífica. Bares, jornais alternativos, escolas compunham uma cultura da presença viva. Que, quem sabe, esteja na hora de ser recriada.

Nesse cenário, a vida e obra de Dércio Marques (1947-2012) revelam algumas características que ainda parecem ter o que dizer para o artista e o público dos nossos dias. Em meio a análises muito finas das canções, tanto na construção musical como poética, Letícia Bertelli propõe uma arte sutil da percepção. Ouvir as histórias e a história que estão nas músicas, nas letras e nos discos como discurso íntegro. E não é um acaso que a trajetória do artista se revele transformadora tanto na forma como no conteúdo, campos que, na verdade só se separam na teoria. Na prática da vida, a transição se dá como o movimento do rio, em continuada fluidez. Do canto ideológico e empostado dos primeiros discos às canções mais ingênuas e entoadas com lirismo da obra de maturidade, há algo que movimenta os dois campos do engenho do artista.





Depois de tantas andanças e périplos, de batalhas ideológicas e estéticas, de disputas com um mercado que parece tudo devorar, de reunir e sentir esgarçar laços de comunhão, Dércio encontra um caminho que vai dar na terceira margem da canção. A inteligência parece avançar em direção a um sentido mais profundo e atávico de Brasil, enquanto a expressão busca um modo mais suave e empático de comunicação.

Não seria um trajeto, em outro contexto, seguido por artistas como João Gilberto, que abandona a voz altissonante para inventar a voz do silêncio? Ou Milton Nascimento, que transmigra o canto barroco para a sensibilidade contemporânea? Ou dos compositores do hip-hop, com sua conquista, a partir da margem, do centro da fala mais atenta sobre a realidade social do país?

Há algo de modelar nesse empenho em dar conta da tradição, avançar além dela e a ela retornar com humildade, deixando o caminho para ser trilhado pelos que vêm depois. Às vezes com delicadeza. Outras com raiva.

Em vida, Dércio Marques não completou esse ciclo, na forma do reconhecimento merecido pelo altíssimo nível de sua arte e de seu compromisso com a cultura brasileira. As aporias da nossa música popular, hoje, talvez mostrem que a lição ainda tem validade. Este livro é a prova disso.




 
 
  • O jornalista João Paulo Cunha (1959-2022) trabalhou 18 anos no Estado de Minas, onde ingressou como subeditor do caderno Gerais. Por 17 anos, editou o EM Cultura e o caderno Pensar. Formado em filosofia, comunicação social e psicologia pela UFMG, escreveu os livros “Elomar – O cantador do Rio Gavião” (Duo Editorial, 2009), ensaio sobre a trajetória do músico baiano Elomar Figueira Mello; “Em busca do tempo presente” (Comunicação De Fato, 2011), com artigos publicados no EM; e “Penso, logo duvido” (Lira Cultura, 2019), com artigos publicados no EM, no jornal Brasil De Fato e em cartilhas populares. Também foi um dos colaboradores do livro “Democracia em crise: o Brasil contemporâneo” (Editora PUC Minas, 2017). Presidiu o BDMG Cultural e atuou também na Rede Minas e Rádio Inconfidência.
 
 

(foto: Letra da Cidade/reprodução)
DÉRCIO MARQUES: DA LATINOAMÉRICA DO BRASIL DE DENTRO

. De Letícia Bertelli
. Letra da Cidade
. 240 págs.
. R$ 50. Vendas pelo e-mail somos@institutocare.org.br