Jornal Estado de Minas

PENSAR

Primeira leitura: 'Falas curtas', de Anne Carson



“Fala Curta Sobre as Esperanças”

Espero em breve viver numa casa toda 
de borracha. Imaginem como seria fácil se deslocar 
de um cômodo a outro! Um bom pulo e já 
chegamos. Um amigo meu teve as mãos derretidas 
por uma bomba incendiária durante a guerra. 




Agora, mais uma vez, ele vai aprender a 
passar adiante o pão na hora do jantar. 
Aprender é viver. Aliás, estou querendo convidá-lo hoje à noite. 
Aprender tem o mesmo gosto da vida. 
Ele diz coisas assim.
 
*
 
“Fala Curta Sobre Destinos de Viagem”

Viajei até um lugar em ruínas. 
Havia três portões escancarados 
e uma cerca quebrada. 
Não eram escombros de nada em especial. 
Um lugar chegou ali e se espatifou. 
Depois disso ficou sendo um lugar em ruínas.
 A luz batia nele.
 
*
 
“Fala Curta Sobre Van Gogh” 

Eu bebo para entender o céu amarelo 
o enorme céu amarelo, dizia Van Gogh. 




Quando olhava o mundo enxergava os pregos 
que prendem as cores às coisas 
e via a dor dos pregos.
 
*
 
“Fala Curta Sobre a Leitura”

Alguns pais detestam ler mas
adoram levar a família em viagem. 
Alguns filhos detestam viagens mas adoram ler. 
Engraçado como é frequente se encontrarem 
no mesmo automóvel. 
Vislumbrei os estupendos ombros nitidamente definidos das Rochosas 
por entre parágrafos de Madame Bovary. 
Sombras de nuvens percorriam lânguidas o imenso pescoço de pedra, 
delineavam os flancos plantados de abetos. 
Desde então não posso ver pêlos em carne feminina sem me perguntar: Decíduos.




 
*
 
“Fala Curta Sobre a Minha Tarefa”

Minha tarefa é carregar os fardos secretos desse mundo. 
As pessoas assistem curiosas. 
Ontem de manhã quando o sol nasceu, por exemplo, 
vocês poderiam me ver no quebra-mar com uma carga de gaze. 
Também carrego ideias despropositadas e pecados em geral, 
ou qualquer ação infeliz que tenha cabido a vocês nesta hora. 
Podem acreditar. 
O animal que trota 
pode restaurar o vermelho
dos corações vermelhos.
 
*
 
“Fala Curta Sobre o Hedonismo”

A beleza me deixa sem esperança. 
Nem pergunto mais por que, só quero ir embora. 
Quando olho para a cidade de Paris 
me dá vontade de enlaçá-la com as pernas. 




Quando vejo você dançar sinto uma imensidão impiedosa, 
como um marujo no meio de uma calmaria. 
Desejos redondos feito pêssegos brotam em mim a noite inteira, 
já não colho mais o que cai.

*
 
Tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman 
 
 

Sobre a autora


A canadense Anne Carson nasceu em Toronto, em 1950. Poeta, ensaísta, professora de letras clássicas e tradutora, tendo traduzido para o inglês peças de Eurípides, Sófocles e poemas de Safo, tem o seu nome incluído nos últimos anos entre as apostas ao Prêmio Nobel de Literatura. Vencedora dos prêmios Lannan Award, o Pushcart Prize, o Griffin Trust Award for Excellence in Poetry, uma bolsa Guggenheim e o MacArthur “Genius” Award, Carson tem livros publicados no Brasil, entre eles “O método Albertine” (Jabuticaba, 2017), “Autobiografia do vermelho” (Editora 34, 2021) e este “Falas curtas”, recém-lançado pela editora mineira Relicário. Nas biografias que acompanham seus livros, ela prefere ser definida com a seguinte frase: “Anne Carson nasceu no Canadá e ganha a vida dando aulas de grego antigo” . 
 

(foto: Reprodução)
“Falas curtas”

  • De Anne Carson
  • Tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman
  • Relicário Edições
  • 108 páginas
  • R$ 52,90