“Fala Curta Sobre as Esperanças”
Espero em breve viver numa casa toda
de borracha. Imaginem como seria fácil se deslocar
de um cômodo a outro! Um bom pulo e já
chegamos. Um amigo meu teve as mãos derretidas
por uma bomba incendiária durante a guerra.
Agora, mais uma vez, ele vai aprender a
passar adiante o pão na hora do jantar.
Aprender é viver. Aliás, estou querendo convidá-lo hoje à noite.
Aprender tem o mesmo gosto da vida.
Ele diz coisas assim.
*
“Fala Curta Sobre Destinos de Viagem”
Viajei até um lugar em ruínas.
Havia três portões escancarados
e uma cerca quebrada.
Não eram escombros de nada em especial.
Um lugar chegou ali e se espatifou.
Depois disso ficou sendo um lugar em ruínas.
A luz batia nele.
*
“Fala Curta Sobre Van Gogh”
Eu bebo para entender o céu amarelo
o enorme céu amarelo, dizia Van Gogh.
Quando olhava o mundo enxergava os pregos
que prendem as cores às coisas
e via a dor dos pregos.
*
“Fala Curta Sobre a Leitura”
Alguns pais detestam ler mas
adoram levar a família em viagem.
Alguns filhos detestam viagens mas adoram ler.
Engraçado como é frequente se encontrarem
no mesmo automóvel.
Vislumbrei os estupendos ombros nitidamente definidos das Rochosas
por entre parágrafos de Madame Bovary.
Sombras de nuvens percorriam lânguidas o imenso pescoço de pedra,
delineavam os flancos plantados de abetos.
Desde então não posso ver pêlos em carne feminina sem me perguntar: Decíduos.
*
“Fala Curta Sobre a Minha Tarefa”
Minha tarefa é carregar os fardos secretos desse mundo.
As pessoas assistem curiosas.
Ontem de manhã quando o sol nasceu, por exemplo,
vocês poderiam me ver no quebra-mar com uma carga de gaze.
Também carrego ideias despropositadas e pecados em geral,
ou qualquer ação infeliz que tenha cabido a vocês nesta hora.
Podem acreditar.
O animal que trota
pode restaurar o vermelho
dos corações vermelhos.
*
“Fala Curta Sobre o Hedonismo”
A beleza me deixa sem esperança.
Nem pergunto mais por que, só quero ir embora.
Quando olho para a cidade de Paris
me dá vontade de enlaçá-la com as pernas.
Quando vejo você dançar sinto uma imensidão impiedosa,
como um marujo no meio de uma calmaria.
Desejos redondos feito pêssegos brotam em mim a noite inteira,
já não colho mais o que cai.
*
Tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman
Sobre a autora
A canadense Anne Carson nasceu em Toronto, em 1950. Poeta, ensaísta, professora de letras clássicas e tradutora, tendo traduzido para o inglês peças de Eurípides, Sófocles e poemas de Safo, tem o seu nome incluído nos últimos anos entre as apostas ao Prêmio Nobel de Literatura. Vencedora dos prêmios Lannan Award, o Pushcart Prize, o Griffin Trust Award for Excellence in Poetry, uma bolsa Guggenheim e o MacArthur “Genius” Award, Carson tem livros publicados no Brasil, entre eles “O método Albertine” (Jabuticaba, 2017), “Autobiografia do vermelho” (Editora 34, 2021) e este “Falas curtas”, recém-lançado pela editora mineira Relicário. Nas biografias que acompanham seus livros, ela prefere ser definida com a seguinte frase: “Anne Carson nasceu no Canadá e ganha a vida dando aulas de grego antigo” .
“Falas curtas”
- De Anne Carson
- Tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman
- Relicário Edições
- 108 páginas
- R$ 52,90