Dois romances recentes giram em torno do impacto da brutalidade na vida de meninas adolescentes. Em “Corpo desfeito”, de Jarid Arraes, ambientado na região cearense do Cariri, Amanda, de 12 anos, vivencia um drama diário. Após a morte da mãe, vive sob a guarda da avó, em uma crescente situação de abusos e ameaças. “Um crime bárbaro”, de Ieda Magri, transcorre em uma pequena comunidade rural de Santa Catarina, em que a narradora recompõe a história do assassinato real de uma menina de 13 anos, estuprada quando voltava sozinha da escola, em 21 de agosto de 1981. Nunca solucionado, décadas depois o crime retorna à memória da narradora, impulsionando lembranças da vida familiar naquela localidade do interior.
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Poeta e cordelista, Jarid Arraes nasceu em 1991, em Juazeiro do Norte, e publicou os poemas de “Um buraco com meu nome” (2021) e o volume de contos “Redemoinho em dia quente” (2019), que recebeu os prêmios APCA e Biblioteca Nacional. Em “Corpo desfeito”, retoma o universo presente nas narrativas breves, um mundo de mulheres que se movem entre janelas fechadas e dores engolidas. Neste seu primeiro romance comparece a matriz genealógica, da compreensão dos acontecimentos a partir de uma linhagem feminina. Avó, mãe e filha se movimentam nesse eixo que tensiona emoções e encena rupturas geracionais – Dona Marlene é uma avó rígida que vai agudizando sua dureza com a neta Amanda a partir do momento em que morre a filha Fabiana, que engravidou de um homem desconhecido aos 16 anos e foi obrigada a desistir dos estudos para trabalhar em busca do próprio sustento.
A trama se passa em uma localidade marcada por intensa religiosidade popular, presente nas romarias e crenças arraigadas em torno da figura de Padre Cícero. Nesse contexto, a avó encomenda uma estátua a um santeiro, exigindo que fosse idêntica à filha morta: na morbidez da fabricação de um simulacro de Fabiana, associa a ela santidade e pureza. A pequena casa vira então cenário de uma encenação macabra, tendo como palco o quarto de reza, espaço da loucura da matriarca, que julga homenagear a morta inspirada por mensagens recebidas em sonho.
O altar escuro habitado pela imagem duplicada da mãe potencializa os efeitos de estranheza – no sentido do conceito formulado por Freud. Sentimentos que oscilam entre o familiar e o estranho surgem também na cena em que Amanda está diante de um espelho, diante de sua imagem distorcida no banheiro da escola: “(...) naquele instante aumentava o meu rosto, meus poros, meus defeitos. Eu era obrigada a me encarar e aceitar que aquilo estava acontecendo comigo. Que eu era aquela pessoa”.
Amanda padece os efeitos do doentio funcionamento da avó e muitas vezes deseja a invisibilidade, habituada que está ao desamor, aceitando “afeição como esmola”. Desfeito de tanto chorar, esse corpo sofre, já que a avó se dedica a disciplinar a neta, começando pela proibição de toda e qualquer forma de vaidade e chegando à violência física: “E vó sabia quando parar. Deixava o tempo exato para que eu me recuperasse e conseguisse me aprumar e fingir pelos dias seguintes, quando minhas pernas estariam cobertas pela farda”. Punições e obsessão por limpeza se tornam moeda corrente, além da fixação pelo uso de vestidos austeros, sempre azuis: “Eu parecia uma criança de filme de terror, daquelas que vestem camisolões e vagam pelas escadas”, afirma. Um corpo vigiado constantemente, mas que em algum momento deve se libertar da sanha delirante da avó.
A despeito de algumas passagens marcadas por certa obviedade, o romance se sustenta na sondagem dessas relações, como na situação da adorada Susi comprada pela mãe com grande dificuldade financeira e jogada no lixo pela avó por considerar suas roupas imorais. Amanda é uma menina que deseja ser como essa boneca, modelo possível de feminilidade na vida árida da província. Mas restam a ela as infindáveis tarefas domésticas e o quarto fechado em que paira a estátua materna. Repressão e desejo compõem os elos entre a boneca Susi, a mãe santificada e uma adolescente que deseja beijar a boca da amiga Jéssica.
“Boneca viva”
Essa complexa triangulação que flerta com o insólito se faz presente também na menção a outra boneca, na figura da menina morta de “Um crime bárbaro”. A bela Soeli Volcato, nome fictício para uma pessoa real, ensaia para desfilar no concurso de “boneca viva”, festividade comum em festas do interior daquele tempo. Não à toa, a narradora estabelece o paralelo entre o corpo violado e uma boneca morta, imagem assustadora naquele lugarejo pacato, em que uma vida regida por leis próprias se desenrola em torno da terra. Os avós trabalham no campo; a adolescente sonha sair do interior e trabalhar na cidade grande. Mas nunca fará essa travessia. Há uma brutalidade enorme no meio do caminho.
Nascida em Águas Frias (SC), Ieda Magri é professora de literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e publicou no campo da prosa “Tinha uma coisa aqui” (2007), “Olhos de bicho” (2013), “Ninguém” (2016) e “Uma exposição” (2021) – este último também marcado pela evocação da matriz familiar e a ligação com os ciclos de uma realidade camponesa.
Em “Um crime bárbaro”, a autora novamente exercita a pergunta sobre o quanto se pode expor (de si própria, dos outros, da menina), indagando as formas de acessar aquele acontecimento ocorrido há mais de 30 anos. Existiria um ethos, princípio que estabelece o limite de como mobilizar o passado, identificando pessoas reais e mergulhando em feridas ainda abertas? Fato é que por vezes a cena da violação e a descrição pormenorizada do corpo mutilado de Soeli Volcato beiram o insuportável, sendo talvez desnecessário dizer outra vez o que já foi mencionado em detalhes antes.
Tão importante quanto descobrir uma suposta verdade é indagar o caminho para chegar a ela: ter medo, investigar às cegas, retroceder, prosseguir, constituindo aquilo que chama de “viagem de investigação”. Preencher lacunas é lidar com a própria insuficiência da memória enquanto doadora de sentidos. O que lembro de fato aconteceu assim? “É por isso que esta história acaba sendo mais a minha história daquele crime do que a história do crime”, sustenta.
O suicídio de uma aluna no presente da enunciação, em que a narradora é professora universitária, faz eclodir lembranças unindo filhas mortas e mães desesperadas. O clima é de angústia, de mulheres que já deviam ter chegado em casa, homens truculentos, silêncios constrangedores, salas abafadas e palavras entrecortadas. Cada um lembra um pouco, cada um esqueceu bastante. Menos a mãe da menina morta, incapaz de se refazer internamente. Após o crime, junto à avó da narradora, sua vizinha, constrói uma pequena capela no lugar da cena do crime, depositando flores na igrejinha preenchida por santos de sua devoção. A própria tia a toma por santa, atribuindo-lhe milagres. Soeli queria ser boneca viva, e depois de assassinada vira uma espécie de santa. Amanda sonhava ser como Susi, mas sua vida se dá entre surras e a devoção a uma mãe-estátua.
Em ambos os textos se percebe a presença de uma matriz local, seja nas marcas da oralidade, como a designação de “mainha” e a menção aos currulepes (calçados artesanais feitos de couro) em Arraes ou na referência aos hábitos domésticos em Magri, da batata-doce assada na primeira hora da manhã ou do chimarrão passado de mão em mão nas rodas familiares. Longe de compor um efeito exótico ou enveredar pela matriz documental, esses traços permitem uma aproximação maior ao cotidiano dessas meninas, que se encontram a meio caminho entre o desejo da sandalinha bonita e o primeiro salto alto.
“Virginia Woolf disse que a mulher relembra através da mãe”. A afirmativa presente no romance de Magri funciona como trampolim do relato e também pode reverberar a narrativa de Arraes. Depositárias da memória, as mães ecoam informações que correm nas artérias familiares. Nelas, o sangue é muitas vezes literal e vai manchar muitas trajetórias, pois o ciclo de violência não termina, atingindo sucessivas gerações. Nos romances de Arraes e Magri figuram essas meninas cheias de sonhos e desejos, massacradas não por um destino inescapável, mas pelas mãos da própria família e da sociedade que as pune, já que para muitos elas constituem o lado mais fraco. Bonecas descartadas e mortas; estátuas ocupando o lugar de filhas assassinadas. Em sua dimensão simbólica, bonecas e estátuas nos falam do modo como são tratadas essas pequenas mulheres que mal tiveram tempo de enjoar dos brinquedos, impelidas a interromper bruscamente certas etapas da vida. Diante delas, se posta o sofrimento, a agressão e a morte, uma realidade que grita o final do tempo da inocência, na ficção e na vida real.
* Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na UFF e autora de “Partilhar a língua – Leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022)
“Um crime bárbaro”
- De Ieda Magri
- Autêntica Contemporânea
- 160 páginas
- R$ 54,90
“Corpo desfeito”
- De Jarid Arraes
- 128 páginas
- R$ 49,90