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Estado de Minas PENSAR

Dora Barrancos traça a trajetória do feminismo na América Latina

Livro minucioso e revelador da historiadora argentina traça cartografia do movimento social e chega ao momento atual, sempre marcado pelo contexto de cada país


30/09/2022 04:00 - atualizado 29/09/2022 23:19

Dora Barrancos
Dora Barrancos morou no Brasil entre 1977 e 1984 como exilada e concluiu o mestrado em educação na UFMG (foto: divulgação)

Não que não tenha havido vozes femininas dissonantes antes do século 19: elas foram como brados, gritos isolados e lancinantes que preconizaram, de forma comovente, como as mulheres também eram seres pensantes, racionais como os homens. É o caso de Juana Inez de la Cruz, nascida no México, em 1648, que, mesmo longe de falar em favor dos direitos das mulheres, pois não havia essa possibilidade no horizonte no século 17, foi “uma crítica sagaz da conduta dos homens, de sua hipocrisia e de suas limitações intelectuais e morais”. Ou de uma longínqua Christine de Pizan, que escreveu “O livro da cidade das damas”, em 1405. Talvez também de muitas outras que tenham se manifestado solitariamente e que a ação dos homens, principalmente dos intelectuais, apagou da história pelo processo denominado de memoricídio. 

 

Nascida em 1940, Dora Barrancos morou no Brasil entre 1977 e 1984 como exilada. Em nosso país, concluiu o mestrado em educação (UFMG) e o doutorado em história (Universidade Estadual de Campinas). No livro, ela faz levantamento minucioso a partir da chamada primeira onda do feminismo europeu, que reivindicava o direito à educação para as mulheres, mantidas em trevas de ignorância, apenas tendo estímulo e acesso aos saberes voltados à manutenção do lar burguês. A etapa seguinte a essa reivindicação será pela criação de escolas e currículos adequados à modernidade. Quanto às trabalhadoras, Dora Barrancos não as esquece um minuto sequer: paralelamente ao chamado, hoje, feminismo burguês, branco, acompanha sua luta através de grupos, coletivos e associações por respeito e melhores condições de trabalho.

 

Mas, longe de ser uma mera cartografia descritiva com pretensões de neutralidade, a autora também marca indelevelmente sua leitura de dados e fatos com um olhar explicitamente político de esquerda, situando as lutas feministas em contextos mais amplos de batalhas por democracia ou reações a regimes autoritários. Cada país da América Latina é esmiuçado em termos de sua história política e singular. Assim, o feminismo latino-americano é desenhado, em traços gerais, em tempos diversos ao europeu e norte-americano – mas portando a mesma agenda: a igualdade jurídica, a equiparação dos direitos políticos, os benefícios da educação, o reconhecimento dos valores da maternidade com a devida proteção das mães e da prole.

 

 O olhar político engajado da autora não esconde, porém, em vários momentos, como os movimentos de esquerda se posicionavam contrariamente em relação às reivindicações feministas das companheiras de luta. Ela mesma, oriunda desse lugar, confessa, no prefácio à edição brasileira, que, até meados de 1970, também pensava, “desajeitadamente” que o feminismo era “individualista, dizia respeito a mulheres burguesas incomodadas, mas relutantes em perceber as várias formas de opressão.”  

 

Surpresas para o leitor  

Dora Barrancos certamente vai surpreender o leitor ao mostrar como forças de direita e esquerda se encontravam, ideologicamente, muitas vezes, no meio do caminho, pois partilhavam da mesma concepção de "patrimonialismo do corpo da mulher". Assim, no século 19, lideranças operárias se manifestavam contra uma participação das mulheres na cena política através do voto, pois rememoravam as cenas de assédio por patrões e capatazes no chão de fábrica. Já os pensadores de direita, liberais, com raras exceções como um Stuart Mill, por exemplo, também manifestavam preocupação quanto a essa participação política por temer que as mulheres negligenciassem seus deveres de esposa e de mãe na organização do espaço doméstico. Este pensamento foi o principal entrave ou “pedreira” simbólica à conquista do voto feminino.

 

Nessa abordagem, os próprios movimentos feministas se dividiram ao longo da história entre a preconização da confiança de que as desigualdades entre homens e mulheres seriam resolvidas dentro do próprio sistema capitalista por leis igualitárias e a ideia de que isso só seria possível com o fim da sociedade de classes. Para demonstrar esse pensamento, uma citação da socialista Clara Zetkin, em 1909, primórdios da Revolução de 1917, na Rússia:

 

“As mulheres socialistas se opõem francamente à crença das mulheres burguesas de que as mulheres de todas as classes devem se unir em torno de um único movimento apolítico e neutral que reivindique exclusivamente os direitos das mulheres.” Na perspectiva de Clara Zetkin, o voto não é a máxima expressão das aspirações, “mas uma arma, um meio de luta para alcançar um objetivo revolucionário: a ordem socialista”.

 

A luta pela participação das mulheres na cena política pela conquista do direito ao voto, nos séculos 19 e 20, consumiu energias de várias gerações de mulheres. A autora persegue detalhadamente essa luta contextualizando historicamente em cada país da América Latina, mostrando a formação de coletivos e associações femininas. E faz um levantamento de centenas de nomes de ativistas mulheres que o chamado “memoricídio” apagou da história: isso torna a leitura do livro, às vezes, monótona, mas é o preço a se pagar para se fazer justiça a essas vozes silenciadas pelos homens, intelectuais, políticos e críticos.

 

Também pode surpreender a demonstração de que muitas conquistas políticas feministas tenham sido alcançadas não só em regimes democráticos com a discussão livre de temas, mas também em países que passavam por regimes autoritários. O Brasil mesmo é um exemplo: o direito ao voto feminino foi obtido em 1932, no governo autoritário de Getúlio Vargas. Ou que vários países com regimes de esquerda, como a Nicarágua de Daniel Ortega, não foram exatamente solidários com as reivindicações feministas.

 

Em traços gerais dos feminismos na América Latina, Dora Barrancos situa alguns momentos decisivos em todos os países: um ciclo que vai desde os primórdios entre as décadas de 1900 e 1910 até os anos 1940; depois, um certo estancamento e um reflorescimento nos anos 1970 com uma transformação da agenda, nas reivindicações nos anos 1980 e 1990. E, finalmente um terceiro ciclo, até os dias atuais, com a expansão das manifestações mais livres das sexualidades, “à propensão das agendas mais vernáculas com ecos pós-coloniais, à massividade das reivindicações e a formas mais ousadas e expansivas do protesto antipatriarcal”. 

 

Assim, temos uma Guatemala que sancionou o divórcio por consentimento mútuo em 1894; o Equador, que sancionou o voto feminino em 1929.  E Cuba, pós-revolução, que se adiantou a toda a América Latina e mesmo a boa parte do mundo e aprovou o direito ao aborto em ...1965! Seguiram-se a Cuba o México, em 1976, e o Uruguai, em 2012 – nesta luta que talvez seja a que encontra maior resistência em países de maioria cristã. 

 

Sobre o Brasil, a autora descreve bem o surgimento dos primórdios do movimento com o destaque para Bertha Lutz, grande defensora do voto feminino desde 1919, e de movimentos conservadores de mulheres, como o que apoiou o golpe militar de 1964. Ao abordar a segunda onda, a partir dos anos 1970 e principalmente anos 1980, pelo controle do próprio corpo e contra a violência masculina contra as mulheres, a autora comete o mesmo equívoco de outras historiadoras influenciadas pela mídia brasileira: atribui o surgimento do slogan e movimento mineiro Quem Ama Não Mata à ação das feministas cariocas, em protesto pelo assassinato de Ângela Diniz, em 1977. Mais uma vez, a correção histórica: o slogan surgiu pichado no muro do tradicional Colégio Pio XII, em BH, poucos dias antes do ato público na Igreja São José, em 18 de agosto de 1980, em protesto ao assassinato de duas mineiras por seus respectivos maridos.

 

A obra de Dora Barrancos cobre – aí de forma breve – os movimentos feministas e sua nova agenda por reconhecimento de outras formas de se perceber mulher e de outras sexualidades possíveis fora da heteronormatividade até os dias atuais. Textos adicionais falam das manifestações do “Ele não”, contra a eleição de Bolsonaro em 2018 e o canto-dança “O estuprador és tu”, originado no Chile. Agora, a denúncia da violência contra as mulheres se expande do ambiente doméstico para a responsabilização do Estado, considerado cúmplice, conivente. Os obstáculos ao exercício do trabalho, à falta de proteção de meninas e mulheres: as pedreiras simbólicas e materiais do estado contra as mulheres.

 

Dora Barrancos constata que, em um século de movimento feminista, as transformações ocorreram mais nas próprias mulheres, “que mudaram muito mais que os homens” e faz o convite a eles, principalmente, que se renovem e abandonem seu lugar privilegiado masculino, herdeiro de uma ordem política nada divina, mas injusta, em prol de uma sociedade mais igualitária.

 

Fica o convite. 

 

“História dos feminismos na América Latina”

 

  • De Dora Barrancos
  • Tradução de Michelle Strzoda
  • Editora Bazar do Tempo
  • 288 páginas
  • R$ 75 


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