Jornal Estado de Minas

PENSAR

Ieda Magri: 'O livro trata dos limites entre verdade e imaginação'

 

Nascida na cidade catarinense de Água Fria, Ieda Magri mora no Rio de Janeiro. Professora de teoria da literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem doutorado em literatura brasileira pela UFRJ. Escreveu os romances “Uma exposição” (Relicário), “Ninguém” (7 Letras), “Olhos de bicho” e “Tinha uma coisa aqui” (7Letras), além do ensaio “O nervo exposto: João Antônio, experiência e literatura” (Lume). “Um crime bárbaro”, publicado pela Autêntica Contemporânea, é o seu mais recente romance. A seguir, a autora responde às perguntas do Estado de Minas e da resenhista Stefania Chiarelli.    

 

Leia: Romances focam a brutalidade que atinge adolescentes brasileiras 

Leia: Jarid Arraes: 'O que a literatura pede é intimidade'

 

Qual o ponto de partida de “Um crime bárbaro”?

O ponto de partida é o assassinato de uma menina de 13 anos, numa cidade do Sul do país, e que foi muito próximo de nossa família, sendo rememorado todas as vezes que íamos visitar nossos avós maternos na minha infância e até hoje. As circunstâncias do assassinato são conhecidas de todos, porém o crime não foi suficientemente investigado, os assassinos não foram punidos e a família da vítima não vive mais ali. Quarenta anos depois do crime, tudo parece longínquo, irreal, quase uma lenda urbana e, ao mesmo tempo, quando os moradores do lugar começam a falar do assunto outra vez, tudo fica vivo na memória e o caso parece ainda mais real, mais cheio de hipóteses quanto aos possíveis assassinos e às razões do crime. Cada pessoa conta a história de um jeito, mas todos chegam às mesmas conclusões: foi um crime bárbaro que não tem outro registro senão a memória dos que viveram aquele dia terrível e a tumba onde a vítima está enterrada.





 

Por que você afirma, no primeiro capítulo, que há “um problema que cerca a história” que deseja contar?

Há vários problemas, mas estava me referindo ao fato de o crime não ter sido suficientemente investigado, e os assassinos, punidos, o que se transforma num risco real a qualquer pessoa que queira tornar pública essa história, pois não se sabe o que poderia surgir da vontade de manter o crime escondido. Isso gera os demais problemas e um em especial: como contar essa história sem distorcê-la em nome da ficção e sem colocar as pessoas em perigo? Como contar essa história sem causar mais dor à família da vítima?. Contar uma história real esbarra em limites éticos que precisam ser observados. Ao mesmo tempo, como abrir mão do desejo de reparação de um crime do passado quando sabemos que situações como essa continuam se repetindo nos dias de hoje e que muitos dos assassinos continuam saindo impunes? Além disso, não há registros públicos do crime, uma ficha policial, um arquivo, nada. Então, contar a história real se tornou logo impossível e o livro passa a ter de tratar disto: dos limites que não são visíveis, observáveis, entre verdade e imaginação, entre fato e memória, entre o que poderia ter sido e o que realmente foi.

 

A epígrafe vem de um livro do chileno Alejandro Zambra e, logo nas primeiras páginas, é citado o argentino Ricardo Piglia. O que mais a atrai na literatura latino-americana contemporânea? Poderia citar alguns autores de que você gosta e com quem  se identifica?

Quase tudo da literatura latino-americana me atrai. Também porque minha pesquisa na universidade é em torno da circulação dessa literatura hoje, da convivência ou não entre essas duas línguas, a portuguesa e a espanhola, do modo como uma literatura circula e se insere na outra. Então, estou sempre atenta ao que aparece na cena contemporânea latino-americana. Isso começou com a leitura de Roberto Bolaño, que, num certo sentido, abriu o interesse pela leitura de escritores latino-americanos de depois do boom. E se desdobrou em traduções cada vez mais frequentes de autores contemporâneos no Brasil, para além de Borges, Cortázar, do próprio Piglia e outros nomes já bastante conhecidos. Posso citar a importante coleção da Rocco Otra língu”, com curadoria de Joca Reiners Terron que, infelizmente, foi interrompida; a coleção Nos.Otras, da Relicário, e outros livros de fora dessa coleção, como os da chilena Diamela Eltit ou a poesia da argentina Alejandra Pizarnik; o trabalho da editora Moinhos, especialmente com a tradução de Silvia Massimini Felix do livro espetacular “As aventuras da China Iron”, de Gabriela Cabezón Cámara, entre outros; o catálogo da Autentica Contemporânea, que publicou este meu livro na companhia de latino-americanos excelentes como Federico Falco e Cristina Rivera Garza; a coleção Archimboldi da editora Papéis Selvagens; as várias publicações da editora Todavia. Enfim, estamos lendo muitos escritores latino-americanos e isso é enriquecedor. Ainda que timidamente, muito pelo esforço de tradutores e editores ou professores universitários como Paula Abramo, Anibal Cristobo, Florência Garramuño e Gonzalo Aguilar, nossa literatura também vai ganhando espaço na América Latina de língua espanhola.

 

Tanto em “Uma exposição” quanto em “Um crime bárbaro”, a narradora-protagonista retorna à casa da infância, espaço de contradições e muito afeto. É possível pensar que sua escrita gira em torno de formas de voltar para casa? 

Esse livro do Alejandro Zambra, “Formas de voltar pra casa”, funciona mesmo como um guia nesses dois últimos livros meus. Passei metade da vida acossada pelo medo de ter de voltar pra casa por fracassar na tentativa de viver longe. E, de repente, esse livro e outras circunstâncias de minha vida afetiva e profissional me fizeram voltar e olhar para o que aquele lugar, aquele passado, aquelas pessoas significam pra mim. Foi uma volta amorosa à família, com gosto de acerto de contas também, e que operou uma mudança significativa em mim. Concordo muito com uma frase do romance “Planícies” (Autêntica), de Federico Falco, traduzido por Sérgio Karam: “contar uma história modifica quem a conta”. Acho que é exatamente o que acontece quando efetivamente encaramos a volta pra casa.





 

O gesto de reconstituir crimes reais tem estado presente em narrativas brasileiras contemporâneas. Como lidar com essa referencialidade e ao mesmo tempo pensar a linguagem que dá conta da violência?

É uma tarefa difícil, mas acho que aprendemos bastante nos últimos anos com as várias polêmicas em torno do realismo e do neorrealismo e mais ainda depois das últimas eleições, com a avalanche de fake news: não existe linguagem neutra e contar uma história é sempre assumir um ponto de vista. Com a literatura, aprendemos também que há um ponto em que a linguagem “fala” apesar de nós, além de nós, em certa medida por si mesma, nos levando a descobrir coisas que estavam obscuras, tanto dos fatos que investigamos como de nossa relação com eles e com nós mesmos. 

Em “Uma exposição”, precisei aprender a lidar com a violência que, por exemplo, uma fotografia de um boi sendo morto pode mostrar sem véus, sem nenhum tipo de encobrimento. Como contar e como mostrar sem ferir demais a sensibilidade do outro, de quem lê e que, portanto, prossegue frase a frase? Qual o impacto que tem cada palavra, uma depois da outra? E a fotografia, como fazer com que comunique uma cena sem ser agressiva demais? Em “Um crime bárbaro”, as cenas são chocantes até mesmo pra mim que as escrevi e revisei tantas vezes, mas acho que não há meios de contar uma história violenta sem que a linguagem o seja. 

 

 

TRECHO

 

“Um crime bárbaro”
(de Ieda Magri)

 

Pensou que era uma das meninas mais bonitas do lugar, ia desfilar de boneca viva com um vestido novo, cheio de detalhes prateados, e usaria salto alto pela primeira vez na vida. (...) Seria livre, estudaria para ser professora e iria morar em Coronel Freitas. Quando acabasse o ensino médio, adeus interior.

 

Uma força antiga que vem das vozes de mães e avós já desfeitas em pó. No tempo que vivi ali, lutei com essas vozes sem compreendê-las. Só agora, mais velha, posso ver através da minha mãe as mães passadas. A voz da regra e da norma e do bom comportamento.