Jornal Estado de Minas

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Jarid Arraes: 'O que a literatura pede é intimidade'

 

Jarid Arraes nasceu em 1991, em Juazeiro do Norte (CE), e mora em São Paulo, onde criou o Clube de Escrita para Mulheres. Além de “Corpo desfeito”, lançou o livro de contos “Redemoinho em dia quente”, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti, os poemas de “Um buraco com meu nome” e a coletânea “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”. Com mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel, Jarid respondeu às perguntas do Estado de Minas e da resenhista Stefania Chiarelli a respeito de “Corpo desfeito”.





 

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Como surge “Corpo desfeito”? O que há de lembranças, observação e imaginação no livro?

“Corpo desfeito” me veio como um ensaio de ideia de conto, mas logo que comecei a trabalhar mais profundamente na linha do tempo dos acontecimentos e desenvolver personagens, percebi que a história pedia mais espaço para ser contada. Em “Corpo desfeito”, quis criar um elemento absurdo, algo de bizarro e intragável, mas que se misturasse a um tema, infelizmente, muito real e comum na sociedade. Ele nasceu de exercícios de observação e pesquisa sobre abuso infantil, algo que venho estudando desde quando cursei psicologia, até documentários e biografias de pessoas que foram crianças abusadas por suas famílias. Há muito da dor verdadeira que conheci nesses casos reais. A parte que vem das lembranças está na ambientação e no imagético do livro; eu busco retratar e apresentar o sertão do Ceará, o Cariri, para os leitores, e com isso minha escrita transborda as ruas que conheci, os dias em que eu atravessava as romarias na cidade para ir até a escola, e o fato de que cresci, de fato, em alguns dos cenários do romance, como a Matriz, onde minha tia-avó tinha um rancho para romeiros e minha bisavó tinha uma loja de estátuas de santos católicos e outros itens religiosos também muito procurados durante as romarias. Eu morei na mesma rua onde vivem Amanda, sua família e sua melhor amiga, e frequentemente falava com seu Lunga, que foi uma figura muito conhecida no Brasil inteiro e que cito no livro. Acho que o fator especial de “Corpo desfeito” como construção estética está justamente nas características tão próprias do Cariri, suas cores, paisagens, o sotaque que faço questão de escrever e os elementos que mostram um mundo muitas vezes novo para quem está lendo.

 

Romances como “Corpo desfeito” e o recente “Dilúvio das almas”, de Tito Leite, revelam um olhar que pontua o desconforto com aspectos da vida no interior. O deslocamento é condição essencial para esses personagens?

Acho que o meu deslocamento do sertão para São Paulo foi um acontecimento importante para que eu me aproximasse ainda mais das minhas origens e decidisse fazer delas parte da minha estética artística e literária. A ambientação é relevante, conta uma história que é única, é claro, mas as questões que abordo na minha escrita estão por toda parte. Cada livro as coloca de sua própria maneira e conversar sobre tudo isso é algo que pede contexto, e a discussão se torna mais complexa de acordo com essa localização. No entanto o sofrimento humano, as perguntas difíceis, a vulnerabilidade, o que é horrível, são todos fatores que fazem parte da própria existência, independentemente da geografia. Por isso a literatura é impactante, porque ela mexe no que há de mais profundo, íntimo e comum a todos nós, mas faz isso utilizando todo o espaço possível para a criatividade, para as diferentes linguagens e texturas que existem no universo de cada história. Para mim é muito importante contar histórias que acontecem no sertão, porque o sertão também é um personagem indispensável para o que me proponho a questionar e retratar, mas sei que, mesmo todas as suas particularidades, o elemento que pode despertar identificação entre os leitores, mesmo os que não sabem como é a vida no sertão, deve estar lá.

 

A escrita poética atravessa seu romance, denotando o cuidado com a linguagem. A criação (a poeta e a romancista) corre em paralelo ou são processos em sepa-rado? O que você consegue dizer pela literatura em cordel que não é dito em um romance ou em um conto?

Tenho um processo muito detalhado de escrita, de escolha de palavras. Tudo é muito intencional. As palavras e expressões que uso e que fazem parte do sotaque caririense são parte fundamental da minha linguagem artística. Também trabalho de tal forma que chego a me questionar se um dia aquele texto teria finalização, porque sempre sinto a necessidade de continuar o processo de releitura, edição, revisão e coloração do vocabulário que uso. Vejo que isso vem da minha formação como leitora com a poesia, tanto a de cordel quanto a poesia em seus outros diversos formatos. Cresci lendo poetas, ouvindo literatura de cordel, e acho que o poema é parte de como experimento a vida. Quanto às diferenças na escrita de cada gênero, acho que tudo pode ser dito em qualquer estética, seja em estrofe metrificada e rimada ou em prosa. O que a literatura pede é intimidade.





 

Considera que “Corpo desfeito” problematiza a construção do amor materno como algo incondicional?

“Corpo desfeito” com certeza mostra que o que se chama de “amor materno” está cercado por condições. Estou muito mais interessada em discutir o que é desconfortável, feio e muitas vezes escondido. Acho que devemos isso às crianças que sobrevivem dentro de famílias violentas, omissas, ausentes ou autoritárias. A realidade é muito complexa e a vida fictícia de Amanda nos revela os emaranhados das relações familiares na sociedade. O romance é também um recurso para expor nossa face mais assustadora.

 

Por que decidiu criar o Clube de Escrita para Mulheres? Qual a importância dessa iniciativa e qual a realização que a deixou mais feliz?

Em 2015, quando criei o Clube da Escrita Para Mulheres, me sentia muito sozinha descobrindo o mercado editorial e o mundo literário como escritora independente. A minha intenção era  construir um ambiente de tro- ca, de apoio e de discussão sobre as experiências das mulheres na literatura brasileira, desde o momento da escrita, até os eventos literários e premiações. Então, o Clube rapidamente se  tornou esse movimento de tro- ca genuína, em que sempre vi escritoras apoiando umas às  outras, e a partir do Clube muitas coisas bonitas se tornaram realidade. Há dois momentos que considero representativos do que esse projeto é: a primeira participação de uma mulher no Clube, quando ela chega e diz que escreve, mas sente vergonha ou medo de mostrar o que cria, e que até não se sente no direito de se nomear escritora – e isso acontece em todos os encontros, porque sempre há participantes chegando pela primeira vez –, e também o momento em que uma mulher decide que vai publicar o que escreve, depois de participar dos encontros, de conversar, de dar e receber suporte, e aí ela coloca seu livro no mundo (ou sua zine, seu e-book, seu cordel, etc.) e vemos uma transformação incrível e inspiradora. Tenho muito amor por esse projeto e muito orgulho de mantê-lo vivo há sete anos, sempre gratuito.

 

Acredita que, de alguma forma, “Corpo desfeito” a ajudou a chegar aos contos de “Redemoinho em um dia quente”? O que une os dois livros? 

O processo, na verdade, foi o contrário, já que o livro de contos veio antes. Os contos de “Redemoinho em dia quente” representam minha confiança nas escolhas estéticas e temáticas que faço na minha escrita. Eles são a concretização de um desejo livre, porque eu me permito escrever aquilo que tenho vontade e o que me move. “Corpo desfeito” é fruto de algo que se mostrou muito claramente em meu livro de contos e acho que os dois livros caminham juntos, eles fazem sentido estando próximos e representam esse processo muito intencional de escrever o sertão que conheço e apresentá-lo do meu jeito. Isso inclui a palavra, a estética e o incômodo que se transforma em histórias. 



TRECHO

“Corpo desfeito”
(de Jarid Arraes)

 

Continuo proibida de sair. Só tenho paz quando ela vai à feira. Fora isso, estou sempre trancafiada naqueles olhos. Ela me vigia o tempo inteiro. Não sei como consegue me enxergar, com todo esse problema de não acender a luz. Ando pela casa com uma única vela e deixo que ela queime até o final, até a cera esfriar na minha mão. Nunca uso pires, quero segurar na mão. Quando a cera me queima, eu sinto que alguma coisa viva está acontecendo comigo.

 

Não sabia como tinha chegado naquele estado, mas não era a primeira vez que os feitos de vó me faziam ultrapassar todos os meus limites. E eu nem sabia quais eram meus limites, ninguém me ensinou como me equilibrar nas beiras de meu corpo.