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Nobel para Annie Ernaux premia autora que evitou armadilhas da autoficção

Autora francesa, nascida em 1940, fala de si como outra pessoa e se destaca ao entrelaçar intimidade com questões sociais


07/10/2022 04:00 - atualizado 06/10/2022 23:24

Ilustração da escritora francesa Annie Ernaux
É profundamente humana a prosa de Ernaux, porque não se exime de constatar nossa miséria, nossas culpas e vergonhas. Ao trazer essa dimensão ao plano literário, não abdica de pensar a coletividade (foto: EM)

 

Stefania Chiarelli*

Especial para o EM

 

O Nobel de Literatura para Annie Ernaux gera repercussão, aumentará vendas, põe o nome da escritora ainda mais em evidência. É merecido. Sua literatura é fascinante. A escritora, nascida em 1940 em Lillebonne, na região francesa da Normandia, desde os anos 1970 constrói uma obra que entrelaça aspectos da intimidade e questões sociais. Fora da escala da grandiloquência, sua literatura apresenta o oposto: Ernaux celebra o pequeno, põe a lupa no detalhe, cultiva a capacidade de pensar o que parece desprezível ou comum. Uma lista, algumas fotos, um gesto banal são pontos de partida para reflexões nunca óbvias, embora ancoradas no prosaico e no cotidiano.

 
Leia: Francesa Annie Ernaux vence o Nobel de Literatura

A escritora cresceu em uma família de operários. Fez os estudos em Rouen e Bordeaux, cidade em que se tornou professora de literatura durante três décadas. De origem modesta, galgou muitos degraus na escala social. Em “O lugar”, lançado em 1983, na França, se concentra na morte do pai, ocorrida muitos anos antes, e lembra como foi determinante o analfabetismo do avô paterno, elemento definidor do estrato social que ocupavam e dado estruturante de sua literatura.

 

A partir desse livro se afasta da ficção mais convencional e principia a narrar a própria vida, abandonando o gênero romance e se instalando em uma fronteira que propositalmente confunde o biográfico e o ficcional. É da própria autora a definição de que faz uma autossociobiografia, espécie de reconstituição crítica do passado. Como em “O acontecimento”, de 2000, em que retoma o episódio do aborto feito aos 23 anos, no momento em que na França pré-maio de 1968 o procedimento ainda não era legal, penalizando com prisão as mulheres que decidissem interromper a gestação.

 

Como em outros de seus livros, a força desse relato é evidente no mundo de hoje, em oportuna e necessária discussão sobre o direito das mulheres ao aborto, ou pela contundente reflexão que faz a respeito da barreira erguida entre os membros de uma família a que não foi dada a oportunidade de estudar. É um sentimento de vergonha o que experimenta em relação aos pais a partir do momento em que se escolariza. Eles se dedicam ao pequeno comércio; ela será professora e escritora. Como lidar com o abismo criado entre eles? “A vergonha” (1997), lançado no Brasil este ano, aborda o percurso do fazer-se escritora Para uma filha da classe operária, afastar-se do mundo provinciano dos pais e construir-se como intelectual só é possível por meio do estudo. Daí a centralidade da escola como espaço de formação do sujeito e possibilidade de ascensão social: nesse lugar, a menina envergonhada e pautada por preceitos conservadores verá abrir-se um mundo desconhecido e cheio de possibilidades.

 

A casa estará associada ao dialeto, linguagem que expressa a tradição e a visão de mundo dos mais velhos. Falar o “patoá” – variante marcada pela oralidade e distinta da língua oficial – é compartilhar uma mesma experiência. Falar a língua francesa equivale a se esforçar para pertencer a um universo oposto ao familiar, rompendo com seu universo original. O dialeto, nesse sentido, é a “língua presa ao corpo”, que não obriga a pensar nas palavras: uma dimensão linguística que revela a permanente tensão entre a língua francesa e o léxico utilizado em família. Transitar entre esses dois mundos evidencia a condição de trânsfuga de classe, conforme as próprias palavras da autora.

 

 

Reflexão sobre a linguagem

 

A partir desse vão instalado entre o íntimo e o coletivo, a grande literatura acontece e Ernaux reserva importante espaço para refletir sobre a linguagem. Trata-se menos de um dizer “eu” e mergulharr nas idiossincrasias, e mais um pensar conjunto, que inclui modos de partilhar a linguagem. Porque a língua inventa o mundo com palavras, como sustenta em “Os anos”, publicado em 2008 na França. A obra, que recebeu o prêmio Marguerite Duras, recupera sua biografia e a história coletiva do país. Traz um início brilhante, ao anunciar que todas as imagens vão desaparecer, desnudando um repertório pessoal em que cabem desde um antigo comercial de televisão a frases terríveis que deveríamos esquecer. De modo paralelo, a autora faz um inventário das palavras que irão sumir, frases que serão esquecidas, que organizaram o mundo conforme o conhecemos. Eis que surge um grande tema que atravessa seu escritos, a memória: “Assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonho e história”. 

 

A narrativa de “Os anos” não se dá em primeira pessoa, mas a partir de um “nós” que estabelece um modo coletivo de narrar. Embora a perspectiva sempre acolha o pessoal, opera-se um descolamento do biográfico – como quando, ao descrever uma foto de infância, a narradora fala de si como uma outra, utilizando o “ela”: “A camisa dela está apertada, a saia com suspensório levantada na frente por causa de uma barriga proeminente, talvez sinal de raquitismo (...)”. Falar de si é falar de uma outra pessoa. Eu é uma outra, parafraseando a conhecida sentença de Rimbaud.

 

Fotografias antigas surgem a cada tanto nesse relato, acolhendo aspectos de si. Mas não nos enganemos, descrever uma foto não equivale a alcançar o que está dentro dela. Nisso reside uma das tantas belezas da prosa de Ernaux, a capacidade de mobilizar nosso olhar para o insuspeitado, como o repertório de gestos, hábitos, modos de falar, de rir, de segurar um objeto. Ernaux pensa a linguagem e pensa o corpo, seja o corpo feminino, como em “O acontecimento”, seja o corpo da família, em seus humores e desavenças, como em “A vergonha”. O resultado é sempre um texto que suscita enorme prazer na leitura, seja porque nos identificamos com as vidas pequenas que a autora escolhe narrar, seja pela perspectiva ampla em que se inserem todos esses fatos. É profundamente humana a prosa de Ernaux, porque não se exime de constatar nossa miséria, nossas culpas e vergonhas. Ao trazer essa dimensão ao plano literário, não abdica de pensar a coletividade. Entre a mulher que escreve os textos e a menina presente nas fotos há uma disjunção. Elas são a mesma pessoa, mas também não são. Entre elas, instaurou-se a palavra, essa, sim, uma conquista que não conhece ponto de retorno.

 

* Professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em estudos de literatura pela PUC-Rio; Stefania Chiarelli é autora do livro “Partilhar a língua: Leituras do contemporâneo” (7Letras). 

 

 

Entrevista / Marília Garcia  
(Tradutora das edições da Fósforo, as mais recentes da obra de Annie Ernaux no Brasil)

 

O que mais chama a atenção na prosa de Annie Ernaux?

A maneira como ela parte de uma linguagem extremamente objetiva, seca e sintética – que traz muitas vezes uma arqueologia de elementos materiais e concretos, de expressões da época, por exemplo, listas de objetos e lembranças, acontecimentos históricos etc – para criar um mundo com máxima potência de emoção, espessura de experiência e transbordamento afetivo. Por outro lado, como ela costura o pessoal e individual com o coletivo e político, mostrando que os dois lados são uma coisa só. 

 

Quais os maiores desafios para transpor a obra para o português? 

A dificuldade mais imediata e reconhecível é de contexto: por exemplo, o uso de expressões e termos do dialeto normando, ou as muitas referências históricas que fora de contexto podem ser difíceis de identificar e traduzir. Mas acho que existe também um tom, uma forma de narrar que é muito objetiva, que é difícil também de traduzir porque se trata de um tom justamente. Por fim, lembro de uma dificuldade na tradução de “Os anos” ligada ao uso do impessoal no livro (é uma espécie de autobiografia impessoal e coletiva, sem o uso do “eu”). Ela usa o pronome “on”, sem tradução muito óbvia em português, e foi um exercício para chegar em modos e formas indefinidas e impessoais dentro do livro.

 

Quais os pontos em comum e as principais diferenças que anota na tradução da obra de Ernaux em relação aos demais livros que você traduziu?

Traduzi outros livros que fazem parte de uma tradição em língua francesa que trabalha com matéria autobiográfica, como Violette Leduc, Mathieu Lindon, Scholastique Mukasonga. Acho que existe uma diferença de tom na linguagem: Ernaux tem uma linguagem bem mais seca e objetiva e também no tipo de projeto, tão bem ancorado nessa arqueologia de objetos, acontecimentos, falas e imagens.

 

Depoimentos
(À Bertha Maakaroun)

 

“Annie Ernaux chegou ao Brasil em um momento de muitas publicações autorreferenciadas, muitas dissertações e teses sobre autoficção. Esse é um tema caro aos franceses, pesquisado por Philipe Lejeune, entre outros, mas que Annie Ernaux elevou a outro patamar. No seu projeto estético e literário, ela ensina que falar de si nunca deve ser um ato isolado, mas um ato político. Ser alguém é sempre estar inserido em um contexto histórico, político e social e isso é o ponto mais importante. As dores de uma vida são sempre ecos de outras dores, de outras vidas. ‘O acontecimento’, por exemplo, ecoa um dos temas mais dolorosos na vida de uma mulher que passa por ele: o aborto. Em breve, Annie Ernaux estará na nossa Flip e todas essas notícias, o acerto da Fósforo, a excelente tradução feita pela poeta Marília Garcia e a presença dela em um dos nosso eventos literários mais importantes são boas notícias em um momento de angústia. A literatura ainda existe e nos salva. Muito bom lembrarmos disso”

 

Socorro Acioli, jornalista e escritora, doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense e autora de “Cabeça de santo”

 

“Ainda que o Prêmio Nobel seja eurocêntrico, e quase sempre privilegie autores das línguas europeias e mesmo autores que vivem na própria Europa, acho que a premiação de Annie Ernaux é bem-vinda. Ela, de fato, tem uma obra impactante, profunda, política, e uma literatura que dialoga com a antropologia, com a sociologia e com a história. Tem um forte viés de classe. Mostra para todos nós que a literatura pode e deve ser um instrumento político, uma arma política”

 

Itamar Vieira Junior, escritor, autor de “Torto arado”

 

“Annie Ernaux é uma das autoras contemporâneas mais importantes e vai ficar por muitos anos em nossa leitura. Eu conhecia a obra dela antes mesmo de ser publicada aqui no Brasil. Adorei. Agora, à medida que a Fósforo vem publicando, estou relendo em português. É uma autora excepcional. Tem um aspecto na obra dela ainda pouco explorado no Brasil, que é o fato de ela pertencer a uma geração e a uma classe social, que está sendo chamada de transclasse, porque é uma mulher que vem de uma origem humilde e, através dos estudos e depois com o sucesso como escritora, fez essa transposição de classe. Hoje habita a intelectualidade francesa e agora mundial. Gosto muito desse conceito, me identifico pessoalmente. Ela soube fazer lindamente, da literatura, o lugar para essas pessoas que pela educação e estudos transformam a sua própria vida e sofrem com uma certa falta do sentimento de pertencimento. Muito feliz com o prêmio dela”

 

Simone Paulino, da Editora Nós 


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