Rogério Faria Tavares*
Especial para o EM
Otto Lara Resende: o falante que amava o silêncio
Mineiro de São João del-Rei, onde nasceu em 1º de maio de 1922, Otto foi o quarto dos 20 filhos do casal Maria Julieta e Antônio de Lara Resende, que estudou no Caraça e era o dono da escola em que o filho fez, como aluno interno, por nove anos, os então chamados cursos primário e ginasial, em atmosfera marcada fortemente pela tradição católica – o que viria a impregnar fortemente a sua literatura.
Asmático, achou que não chegaria aos 20 anos. Aos 11, passou a manter o diário em que registrava suas aflições e suas paixões secretas. Impossível não pensar no Juca, protagonista da novela “Testemunha silenciosa”. Já na adolescência, costumava dizer que seu maior desejo era ser escritor, destino que acabou partilhando com um dos melhores amigos que a vida lhe deu. Foi ainda em sua cidade natal que Otto conheceu Paulo Mendes Campos, quando os dois tinham 15 anos e jogavam basquete em times opostos: este pelo time do Colégio Santo Antônio, aquele pela equipe do Padre Machado. Por essa época, Otto já tinha pronto “O monograma”, composto por nove histórias, todas a respeito da vida num internato.
A mudança para Belo Horizonte se deu em 1938, onde o pai abrira outra escola. Aluno do curso pré-jurídico do Colégio Arnaldo, Otto ingressou na Faculdade de Direito em 1941, não com a intenção de advogar, mas por considerar que essa era uma etapa natural na trajetória dos escritores brasileiros. O começo na imprensa se deu pelas mãos de João Etienne Filho, depois membro da Academia Mineira de Letras, que trabalhava em O Diário, fundado por Dom Antônio dos Santos Cabral, em 1935. Aí, Otto passou a publicar crítica literária, ainda que não se considerasse plenamente apto para a tarefa, como confessou em carta a Álvaro Lins. Ao mesmo tempo, lecionava português, francês e história no colégio do pai.
Mesmo com todas essas ocupações, sua vontade de fazer prosa de ficção não arrefeceu. Em 1944, concluiu outro conjunto de narrativas breves, a que deu o título de “Família” e do qual sobreviveram “O pai”, “A tia” e “O avô”. Um ano depois, já formado, resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro, onde já se encontravam os amigos Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Aí, assumiu de vez o ofício de jornalista. Levado por Edgar Godói da Mata Machado, entrou para o Diário de Notícias, depois para O Globo, quando cobriu a Assembleia Constituinte de 1946. Ao longo de sua carreira, também integrou as equipes do Correio da Manhã, da sucursal da Folha da Manhã, do Diário Carioca, de O Jornal, de Última Hora e de Flan. Ainda atuou na revista Manchete, na Rede Globo e, finalmente, como cronista, na Folha de S.Paulo, onde escreveu crônicas de enorme repercussão na página dois, até falecer, em dezembro de 1992.
Otto também foi funcionário público. Em Belo Horizonte, figurou nos quadros da Secretaria de Finanças. No Rio, passou pela controladoria mercantil da prefeitura e, depois, pela Procuradoria do estado da Guanabara. Adido cultural do Brasil em Bruxelas, na Bélgica, residiu na Europa por três anos, entre 1957 e 1959.
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A estreia com “O lado humano”
Lançado pela Editora A Noite, do Rio, “O lado humano” marcou a estreia de Otto em livro, em 1952, reunindo nove narrativas breves, e apresentando aos leitores um ‘universo em formação’, onde as primeiras manifestações do que voltaria, com mais força, cinco anos depois, já aparecem com clareza, como se percebe, especialmente, em “A pedrada”. Aqui, os protagonistas – dois garotos e uma garota – lançam pedras contra um homem a quem chamam repetidamente, aos gritos, de “veado! veado!”. A líder do trio, curiosamente, é uma menina conhecida por ‘Juca’, o que causa estranhamento em uma velha que observa a cena de uma janela próxima: “Ué, você tem nome de homem?”, ao que ela responde: “Apelido”, antes de atirar o que lhe restou nas mãos na direção de um poste.
Para Clara de Andrade Alvim, “é fácil perceber (...) a intenção do autor de captar enxutamente episódios triviais de gente comum do meio urbano, em que se revelam comportamentos falhos, tortuosos, preconceituosos e, às vezes ao contrário, muito virtuosos – o lado humano”. Em “Das Dores”, Otto narra a aproximação amorosa entre Lourenço Marques, um homem casado, e a suburbana Sônia (que, na verdade, é Das Dores), charmosa balconista de uma loja de roupas do Centro. Lírico e suave, o conto flagra uma delicada e fugaz história de amor em meio à agitação e aos ruídos da metrópole. Em “O morto insuspeito”, Josias é o cidadão que se vê atarantado e perdido entre guichês de repartições públicas depois de ler, no jornal, o convite para o enterro de alguém com o mesmo nome que o seu.
Segundo Augusto Massi, os nove contos do livro “remetem ao Rio de Janeiro, início da década de 1950, sob uma atmosfera conservadora e burocrática. Homens e mulheres se contemplam no espelhinho da infelicidade, hesitam entre pequenos poderes e imensos pudores, entre recato público e vida dupla. Otto se insinua pelas frestas ficcionais da classe média, atritando ainda mais as relações entre sociabilidade e sexualidade, vizinho de “A vida como ela é” (1951), de Nelson Rodrigues, e “Novelas nada exemplares” (1959), de Dalton Trevisan.
Em 1957, apareceu “Boca do inferno”, conjunto de sete contos sobre o universo infantil, suas sombras e perversões, todos ambientados no interior. A repercussão da obra foi intensa. Em pouco tempo, recebeu mais de 30 resenhas, a maioria desfavorável, como as assinadas por José Roberto Teixeira Leite, Assis Brasil, Roberto Simões, Temístocles Linhares, Ruy Santos e Reynaldo Jardim. Rubem Braga não conseguiu esconder seu desconforto: “A sucessão desses sete contos é angustiante, o leitor não espera nunca nada de bom – e, afinal, quase sempre acontece o pior. Como em seu livro anterior, ‘O lado humano’, Otto vê a parte miserável, humilhante, embora escreva essas histórias torpes em uma linguagem limpa e cheia de pudor”. Só Eduardo Portella e Hélio Pellegrino emitiram pareceres receptivos. Paulo Mendes Campos escreveu: “Eis aqui um livro de contos e sem literatura. As sete narrativas reunidas em ‘Boca do inferno’ são descarnadas, agressivas e deprimentes como argumentos cinematográficos do neorrealismo italiano. Os enredos esquemáticos pouco importam: o ângulo quase de documentário em que se coloca o narrador dessas sete histórias sobre meninos define o livro”.
Publicada originalmente sob o título de “O carneirinho azul”, em 1962 (na coletânea “O retrato na gaveta”), na novela que Otto depois rebatizou como “A testemunha silenciosa” o protagonista é, mais uma vez, uma criança vivendo em uma cidade pequena. Oprimido pela mesquinhez das relações sociais e familiares de sua Lagedo natal, de onde planeja escapar, assim que possível, o menino ainda presencia um crime sobre o qual não pode falar uma palavra, o que o deixa ainda mais angustiado. De “O retrato na gaveta” também fizeram parte contos como “Os amores de Leocádia”, “O gambá”, “Boa noite, vigia”, “Gato gato gato” e “Todos os homens são iguais”.
Outra novela de Otto, “A cilada”, de 64, saiu primeiro numa coletânea de contos intitulada “Os sete pecados capitais”, organizada por Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, sendo a história sobre a avareza. Considerado por Carlos Heitor Cony como o melhor texto de Otto, nele aparece o personagem Tibúrcio, que entrou rapidamente para a galeria dos tipos mais marcantes da literatura brasileira. Como explica Cristóvão Tezza: “Dessa nítida moldura narrativa vai emergindo a figura grotesca de Tibúrcio, inteiramente composto pelo implacável olhar do povo – e aqui a frase feita, o lugar-comum, o dito popular ou o simples preconceito imemorial vão costurando a imagem do mundo e dos seres, como a única possível; todas as metáforas, breves imagens, sombras bíblicas, paralelos morais ou edificantes vão sendo arrancados dessa voz coletiva e congelada, que soam tão mais verdadeiros quanto mais pitorescos parecem (...)”
Em 1963, com a publicação de seu único romance, “O braço direito”, que ele reescreveria pela vida afora, Otto convida os leitores, de novo, a um passeio por Lagedo, cidade fictícia que já aparecera em “A testemunha silenciosa”. O personagem-narrador é Laurindo Flores, que trabalha no Asilo da Misericórdia cuidando dos órfãos que nele residem. É Ana Miranda quem resume: “O livro nos mostra disputas de poder, humilhações, hipocrisias, avarezas, injustiças, crueldades, doenças, mortes, o mal enfim. (...) Se pretendia escrever uma obra-prima, ele o conseguiu, plenamente. “O braço direito” é um romance precioso, livro de uma vida inteira, um livro único, originalíssimo, repleto de significados, construído com o mais pungente amor pela literatura.”
Doze anos depois, retornando às narrativas breves, Otto lançou “As pompas do mundo”, conjunto integrado por sete enredos, entre os quais “Bem de família”, “O elo partido”, “O guarda do anjo”, “Viva la patria”, “A sombra do mestre” e “Mater dolorosa”, além de “A cilada”, aí republicada. Em 1991, lançou a última coletânea, “O elo partido e outras histórias”.
Entrevistado por Paulo Mendes Campos em 1975, para a revista Manchete, ao responder sobre quem era Otto Lara Resende, ele respondeu: “A ideia que faço de mim? Um sujeito delicado e violento. Delicado pra fora, violento pra dentro. Um poço de contradições. Um falante que ama o silêncio. Um convivente fácil e um solitário. (...) Solicitude e esquivança compõem meu espectro. Gosto de partilhar, de participar, sou bisbilhoteiro, abelhudo. Gostaria de ajudar todo mundo. Gostaria de viver todos os lances, estar presente. E gostaria também de estar ausente, sumido, fora do mundo”.
Paulo Mendes Campos: oblíquo e contraditório
Um dos nove filhos de Maria José (leitora voraz e quem lhe apresentaria os grandes autores, sobretudo da literatura portuguesa) e do médico Mário Mendes Campos, da Academia Mineira de Letras, Paulo Mendes Campos nasceu em 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, vindo a morar em Saúde, hoje município de Dom Silvério, na Zona da Mata mineira, dos 2 aos 6 anos, por conta da profissão do pai. De volta à capital do estado, estudou no Barão do Rio Branco e no Colégio Arnaldo. Em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, esteve três anos como aluno do Colégio Dom Bosco, do qual guardou as piores recordações, embora houvesse se dado aí o surgimento de seu interesse pela literatura. Passando o ano de 1937 em São João del-Rei, onde conheceu Otto Lara Resende, estudou no Colégio Santo Antônio. De volta à capital, fez amizade com Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, formando o grupo que ficaria famoso como ‘os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse’, expressão criada por Otto, que também fazia parte dele.
Atraído por áreas distintas, chegou a cursar odontologia, direito e veterinária, sem concluir nenhum deles. Inquieto, iniciou, sem terminar, o curso da Escola de Preparação de Cadetes da Aeronáutica, em Porto Alegre. Incentivado pelo mesmo João Etienne Filho que ajudara Otto no começo da vida, Paulo Mendes Campos passou a escrever em O Diário, onde estreou com um texto chamado “Raul de Leoni, poeta enganador”. Em pouco tempo, tornou-se diretor do suplemento literário da Folha de Minas. Por essa ocasião, já amante, sobretudo, de poesia, decidiu ir ao Rio de Janeiro conhecer o chileno Pablo Neruda, de passagem pela cidade, de onde Paulo nunca mais voltou. Hospedado inicialmente na casa de Fernando Sabino, e, depois, na de Vinícius de Moraes, só pôde morar sozinho bem depois: primeiro, num modesto hotel na Lapa, depois numa pensão no Leme. Indicado por Carlos Drummond de Andrade, trabalhou no Instituto Nacional do Livro. Com a ajuda de Cyro dos Anjos, atuou como fiscal de obras no Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. Ao longo da vida, ainda dirigiria a Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, além de integrar os quadros da Empresa Brasileira de Notícias, hoje Agência Brasil, onde se aposentou como técnico de comunicação social.
Na imprensa carioca, escreveu para mais de 30 periódicos, entre os quais o Correio da Manhã, o Diário Carioca, O Jornal, Jornal do Brasil, O Pasquim e a revista Manchete, consagrando-se como um dos melhores cronistas de sua geração.
Pontaria lírica de alta precisão
Flávio Pinheiro, organizador das obras completas do autor, é quem lança um olhar acurado sobre as suas crônicas, muitas vezes classificadas como ‘prosa poética’: “A degenerescência pegajosa e o apego a súmulas aforísticas comprometeram ao longo do tempo a reputação da prosa poética, mas na literatura brasileira ela alcançou culminâncias com Paulo Mendes Campos. Com horror a vulgaridade e invejáveis recursos vocabulares, sua pontaria lírica era de alta precisão. (...) No cenário brasileiro também frequentado por Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade em suas encarnações de cronistas, Paulo conseguiu um lugar singular, infenso a surtos de diabetes que acometeram o gênero.”
A partir de 1950, convidado por Jean Manzon, passou a redigir roteiros para o cinema, atividade a que se dedicou por toda a vida. Em 1968, fez enorme sucesso com “Roberto Carlos em ritmo de aventura”, sob direção de Roberto Farias. Oito anos depois, assinou o roteiro de “Poema barroco”, sobre a vida de Aleijadinho, para a série “Caso Especial”, da Rede Globo; e, mais tarde, dos sete episódios de “Ciranda cirandinha”, exibido pela emissora entre abril e outubro de 1978. Como tradutor, verteu para o português obras de Charles Dickens, Júlio Verne, Emily Dickinson, Oscar Wilde, John Ruskin e Jorge Luís Borges, além de contos de Shakespeare.
O primeiro de seus 15 livros apareceu em 1951. “A palavra escrita” foi uma coletânea de poemas lançada pelas Edições Hipocampo, de Thiago de Melo e Geir Campos. A respeito dele, escreveu Ivan Marques: “No livro de estreia de Paulo Mendes Campos, por exemplo, os decassílabos e as formas fixas convivem com os poemas em prosa e em versos livres. A mistura incoerente se expõe, quase como um manifesto poético, já na composição que abre o volume, o admirável “Neste soneto”, no qual o criador do ‘verso certo’ (construído nos moldes do árcade Tomás Antônio Gonzaga) confessa sua atração pelo ‘verso errado’, chegando à conclusão de que as falas de seu canto não cabem ‘dentro de forma fácil e segura’ – pois “minha emoção é muita, a forma é pouca”.
Em “O domingo azul do mar”, de 1958, Paulo reuniu textos publicados originalmente em jornais, revistas e antologias. Dois anos depois, com “O cego de Ipanema”, começou a editar volumes contendo as crônicas antes estampadas na imprensa, entre os quais se destacaram “Homenzinho na ventania”, de 1962, “O colunista do morro”, de 1965, “Hora do recreio”, de 1967 e “O anjo bêbado”, de 1969.
Em 1981, pela Civilização Brasileira, lançou “Diário da Tarde”, idealizado em seu sítio na serra fluminense, logo após a aposentadoria no serviço público, como o conjunto de 20 edições de um jornal imaginário, capaz de agrupar textos de naturezas distintas em seções fixas que ganharam nomes como Artigo Indefinido, O Gol é Necessário (onde aborda uma das maiores paixões de sua vida, o esporte), Poeta do Dia, Bar do Ponto, Pipiripau, Grafite, Suplemento Infantil e Coriscos. Para Leandro Sarmatz, “a grande proeza de Paulo Mendes Campos – seu feito inédito e intransferível – parece ter sido o de acomodar, com total expertise, uma matéria tão variada nestas centenas de páginas do “Diário da Tarde”. A partir de notas e materiais já veiculados, rearranjados sob o guarda-chuva que tanto pode ser o periódico quanto o diário íntimo, ele soube conservar, como um colecionador de si mesmo, uma miniatura da própria obra ao longo do tempo. A poesia e a crônica, o ensaio e o autoexame, as brincadeiras verbais e a observação do cotidiano, além do Rio, do futebol, do humor, este livro contém um pouco disso tudo, oferecido como uma espécie de breviário de sua arte”.
Seu último livro foi “Trinca de copas”, de 1984, surgido sete anos antes de sua morte, em junho de 1991. Doado pela família ao Instituto Moreira Salles (IMS), onde também está o arquivo de Otto, é no acervo de Paulo que se encontram mais de 4 mil recortes de jornal e seus célebres 55 cadernos, onde, segundo a pesquisadora Elvia Bezerra, “ele registrou alguns lembretes do cotidiano e poucas, mas valiosas, notas biográficas. O que ressalta são as anotações de ideias para desenvolver em crônicas; de frases, dele e dos outros; reflexões, planos de antologias, fichamentos de leituras. Sim, fichamentos de leitura, como os de um estudante aplicado. E listas. Muitas listas, não tivesse ele mesmo declarado em entrevista que a filologia era sua vocação natural”.
É Paulo quem melhor se define. A passagem está em “Meditações imaginárias”, do livro “Cisne de feltro – Crônicas autobiográficas”, de 2001: “(Devo) a Minas Gerais, a minha sede, o jeito oblíquo e contraditório, os movimentos de bondade (todos), o hábito de andanças pela noite escura (da alma, naturalmente), a procrastinação interminável, como um negócio de cavalos à porta de uma venda”.
* Jornalista e doutor em literatura, é presidente da Academia Mineira de Letras