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Drummond: o posfácio de Affonso Romano de Sant'Anna para 'A rosa do povo'

Livro lançado em 1946 é um dos pontos altos da obra de Carlos Drummond de Andrade, e foi incluído na nova edição da Record


28/10/2022 04:00 - atualizado 27/10/2022 23:36

Drummond
Carlos Drummond de Andrade (foto: divulgação)
A obra de Carlos Drummond de Andrade integra um largo “projeto poético-pensante”, em que cada poema, cada livro retoma progressivamente imagens, temas e questões, o que torna a leitura do autor, para além do prazer poético, um complexo exercício de compreensão da própria vida e da inevitável perplexidade humana diante da existência. A análise é de Affonso Romano de Sant’Anna, que assina o posfácio “A flor, a vida, a poesia”, de “A rosa do povo”, quinto livro de poesia de Carlos Drummond de Andrade e que ganha nova edição da Record. São 55 poemas escritos no contexto da Segunda Guerra Mundial, entre 1943 e 1945. 

Um dos primeiros pesquisadores e estudiosos da obra de Carlos Drummond de Andrade – poeta itabirano nascido em 31 de outubro de 1902, que se tornaria um dos expoentes da literatura nacional –, Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em 1937, em Belo Horizonte. Pela atualidade e qualidade do texto, o posfácio do poeta de BH foi mantido neste novo lançamento de “A rosa do povo”, dentro das comemorações dos 120 anos de Carlos Drummond de Andrade. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, “A rosa do povo” é um dos livros mais fortes e politizados de Drummond. Ao mesmo tempo em que o poeta, na descrição do cotidiano e da vida “espandongada” da cidade, registra o medo da guerra e o questionamento em torno da existência; também “uma flor nasceu na rua”, rompe o asfalto e desafia o trânsito; impele o poeta a “assentar-se no chão da capital do país às cinco da tarde para reverenciá-la”. É assim que, para Sant’Anna, da náusea do cotidiano, no áspero chão da capital, nasce uma flor, símbolo da resiliência da poesia, mensageira da esperança. A seguir, “A flor, a vida e a poesia”, o texto original de Sant’Anna para a edição de “A rosa do povo”.

 

“A flor, a vida e a poesia”

 
Affonso Romano de Sant’Anna
 
“A rosa do povo” – publicado em 1945 – é um livro crucial em meio ao conjunto da obra de Drummond. É considerado pela crítica um de seus livros mais fortes, tanto poética quanto politicamente. São 55 poemas escritos em dois anos – 1943-1945, enquanto transcorria a Segunda Guerra Mundial. Nesta época, vivendo no Rio, era chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema, cargo que exercia desde 1934 no governo Vargas. Era já um dos grandes poetas modernistas, embora Manuel Bandeira fosse então o mais festejado.

“A rosa do povo” foi o seu quinto livro de poesia. O primeiro, publicado 15 anos antes, ao contrário deste, tinha um título meio modesto, uma maneira tímida de pedir licença para publicar seus versos. Chamava-se “Alguma poesia” (1930). Editado lá em Minas, teve apenas 500 exemplares, e a tal editora Pindorama era imaginária. Os poemas eram curtos e irônicos. Já “A rosa do povo”, o mais volumoso de seus livros, possui poemas longos, que usam até recursos dramáticos, como “O caso do vestido”. Em vários desses poemas recupera a narratividade, o contar uma história, coisa que sempre existiu na poesia, e que o Modernismo havia refugado. Assinale-se, portanto, que ao publicar “A rosa do povo” o poeta já não vive mais na província, não é tão jovem, deslocou-se do “Brejo das almas” (1934) e como um “José” (1942) atônito na grande cidade já descobriu o “Sentimento do mundo” (1940).

Com efeito, os títulos dos livros têm algo a nos dizer. Neste temos duas palavras emblemáticas: “rosa” e “povo”. É curioso considerar isto, mais de meio século depois, quando o mundo não está mais antiteticamente dividido entre democracia e fascismo, democracia e comunismo. Àquela época, quando se produzia uma literatura utópica e ideologizada, “povo” era uma palavra comum no texto dos poetas e romancistas engajados. Lembre-se, entre tantos, Pablo Neruda, com o monumental “Canto general” (1950) – com largos versos à América –, e Paul Éluard, que, sintomaticamente, havia publicado “Rose publique” (1934).

Aquele tempo, como reconhece Drummond, era “tempo de partido, / tempo de homens partidos”; e ele, segundo suas notas biográficas, em 1945, ano da publicação de “A rosa do povo”, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como codiretor do diário comunista, então fundado, “Tribuna popular”. Verdade seja dita que esse namoro ideológico demorou pouco, pois “afasta-se do jornal, meses depois, por discordar de sua orientação”. Mas vestígios dessa contaminação ideológica estão em poemas onde fala que a “burguesia apodrece”, refere-se ao “mundo capitalista” e, além de louvar a resistência de Stalingrado, tem expectativas sobre a vitória russa em Berlim.


“Rosa” e “povo”


Há algo de antitético ou de poeticamente complementar nisto. O poeta está somando, fundindo as duas palavras, imantando uma com o sentido da outra. E se o livro tem poemas que descrevem o cotidiano, o medo, a guerra e a vida “espandongada” da cidade, por outro lado ele anota que “uma flor nasceu na rua” furando o asfalto e desafiando o trânsito, impelindo-o a assentar-se no chão da capital do país às cinco da tarde para reverenciá-la. Uma flor (ou poesia, esperança) que brota da náusea do cotidiano, como explicitamente está indicado no título do poema “A flor e a náusea”.

“Náusea” é, com efeito, uma palavra importante no pensamento existencialista tão em voga àquela época, e encontra-se no título de um romance de 1938 de Jean-Paul Sartre, “A náusea”. E há uma sintonia entre o significado desta palavra na obra do poeta e na obra do filósofo. Já Heidegger, que foi melhor pensador que Sartre, dizia que o filósofo e o poeta são aqueles que estão mais bem equipados para entender o sentido das coisas. Eles podem reunir o discurso da pólis de seu tempo de uma maneira “re-velante”. E esse discurso, ou lógos, só se torna possível através do verbo poético. Aliás, no livro “Drummond, o gauche no tempo” (Editora Record) tive oportunidade de mostrar a afinidade entre o pensamento metafísico de Heidegger e a obra poética drummondiana.

A rigor, a obra drummondiana ganha mais densidade e maior gravidade quando lida nesta clave. É possível dizer também que sua poesia, manifestando uma lírica e dramática visão do mundo, pode ser analisada como uma grande peça de teatro testemunhando a tentativa e a impossibilidade de inserção plena do indivíduo no mundo. O conflito básico, então, é este:


Eu versus Mundo


Poder-se-ia alegar, é claro, que este seria o conflito básico de todo ser vivo. Mas, no caso deste poeta, o que seria uma circunstância comum transforma-se na reflexão poética sobre o indivíduo e sua perplexidade pessoal, social e metafísica.

É neste sentido que o poeta se instaura como um personagem que se intitula a si mesmo de gauche, ou seja, alguém desajeitado, tímido, conflituado com as coisas que ocupam o centro da cena. Esse gauchisme tem desdobramentos psicológicos, políticos e metafísicos. No primeiro poema de seu primeiro livro ele lança as coordenadas a serem desenvolvidas sistemicamente em sua obra. Ao dizer:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra:
disse: — Vai, Carlos! ser gauche na vida.

ele caracteriza o seu alter ego posto em cena. É alguém (torto) marcado pela sinuosidade, pela elipse, pela curva, por um certo barroquismo de espírito; alguém que (na sombra) foge à luz da cena, que prefere o escuro, o canto, o lado esquerdo do palco para poder melhor espiar o mundo. Espiar, aliás, é o verbo usado preferencialmente nos primeiros livros, quando seu personagem ainda habita a província do próprio ser e olha o mundo de esguelha. Quando se muda para a metrópole do seu tempo, quando descobre o “mundo grande”, o que era um irônico “espiar” converte-se em “olhar”. Há em José o poema “Rua do Olhar” exemplificando isto. Ele não está mais espiando ironicamente da janela, como na província. Está dramaticamente no meio da rua e do mundo, e passará até a usar o verbo “contemplar”, muito mais abrangente e maduro que o simples “espiar” originário.

Retomemos a estrutura da peça teatral subjacente ao seu texto denunciada no conflito básico: Eu versus Mundo. Sua obra, neste sentido, descreve a trajetória de um personagem gauche em três atos:

Eu maior que o Mundo
Eu menor que o Mundo
Eu igual ao Mundo

O primeiro ato, que pode ser emblematizado no verso que se encontra no primeiro poema de seu primeiro livro – “Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração” –, exibe o jovem irônico, que, na província, ainda não experimentou o desgaste do tempo, não vivenciou os grandes conflitos do mundo e para quem o amor é mais um jogo que um drama.

O segundo ato instaura-se com o sintomático título do livro “Sentimento do mundo”, onde no poema “Mundo grande”, fazendo uma autocrítica, ele considera: “Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor.” Aí confessa que precisa de todos, quer ir para a rua, para o meio do mundo, abandonar as ilhas, porque na solidão de indivíduo desaprendeu a linguagem com que os homens se comunicam.

Reveladoramente, o terceiro ato, “Eu igual ao Mundo”, é cristalizado à altura de “A rosa do povo”, quando no poema “Caso do vestido” um dos versos diz: “O mundo é grande e pequeno.”

Nessas alturas, o gauchisme crônico do personagem se manifesta de diversas maneiras. Aliás, no primeiro poema de “A rosa do povo”, retomando este tema, que estará presente em toda sua obra, refere-se “ao fatal meu lado esquerdo”. Verdade é que está tentando vir para o meio do palco, do mundo, estar com o povo na história, numa rua que começa em Itabira e vai dar em qualquer parte da América; verdade é que está recuperando a história de sua família, da fazenda, de sua província, antes tão ironizada. Descobriu o desgaste do tempo, que morremos diariamente, e que a idade madura já se prenuncia em rugas e certa sensibilidade ao frio. Encontra, então, na figura lírica e dramática de Carlito, um duplo, uma máscara, um disfarce: “ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança.”

Quando ao princípio disse que “A rosa do povo” é um livro crucial na sequência das obras drummondianas, estava não apenas aludindo à sua importância poética e histórica, mas encaminhando a ideia de que ele é a ampla porta para se ingressar no estágio seguinte de seu projeto poético, quando, a partir de “Claro enigma”, assume um tom mais limpidamente metafísico, produzindo uma poesia menos ligada ao presente, aos fatos do cotidiano e mais interessada na essência da vida. Não estranha que ele aprofunde a partir de então o seu diálogo com o “nada”, como forma de estudar o “tudo” pelo seu avesso.

Neste livro em que várias vezes aparece a palavra “povo” e a palavra “rosa”, gostaria de chamar a atenção, por exemplo, para um sutil e pequeno poema, na verdade, um sonetilho, chamado “Áporo”:

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Parece enigmático à primeira leitura. Descobrindo-se, no entanto, que “áporo” é uma palavra que tem três significados: é o nome de um inseto, tipo de escaravelho que cava terra adentro; é também um teorema sem solução e, enfim, o nome de uma orquídea, o texto começa a se esclarecer.

Como um inseto, um ser minúsculo, gauche, acostumado à escuridão, onde noite, raiz e minério se entrelaçam, o indivíduo encontra-se numa situação labiríntica, aporética. Mas é cavando, a despeito da irracionalidade da vida e dos fatos, é lutando contra a treva, contra a aporia, contra os teoremas da razão, que, antieuclidianamente, a orquídea (ou indivíduo), enfim, se forma.

Como se vê, a temática da flor está aí subjacente. E como ele dirá em “Anúncio da rosa”: “Imenso trabalho nos custa a flor”.


A flor, a vida, a poesia


A publicação deste e de outros livros de Drummond separadamente funciona como uma espécie de porta para se entrar num universo complexo e labiríntico. Este, como todos os seus livros, podem ser lidos isoladamente e exercerão, cada qual ao seu modo, a sedução sobre o leitor. Contudo, não se deve perder de vista que este é um poeta na alta acepção do termo. Ele havia falado certa feita num texto intitulado “Autobiografia para uma revista”: “Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos”.

Em outros termos, repito que, embora se possa e se deva ler seus livros isoladamente, é fundamental ter em consideração que sua obra é um largo “projeto poético-pensante” – conforme expressão heideggeriana. Cada poema, cada livro está retomando imagens, temas e questões progressivamente.

Neste sentido, ler Drummond é mais do que um prazer poético, é também um sofisticado exercício de compreensão da própria vida e da irremissível perplexidade humana. 
 
 
“A rosa do povo”
Carlos Drummond de Andrade
Record
238 páginas
R$ 60
Nas livrarias a partir da próxima semana 


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